A hora e a vez de Augusto Matraga

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Matraga não é Matraga, não é nada. Matraga é Estêves. Augusto
Estêves, filho do Coronel Afonsão Estêves, das Pindaíbas e do Saco-da-
Embira. Ou Nhô Augusto — o homem — nessa noitinha de novena, num
leilão de atrás da igreja, no arraial da Virgem Nossa Senhora das Dores do
Córrego do Murici.

Procissão entrou, reza acabou. E o leilão andou depressa e se extinguiu,
sem graça, porque a gente direita foi saindo embora, quase toda de uma vez.

Mas o leiloeiro ficara na barraca, comendo amêndoas de cartucho e
pigarreando de rouco, bloqueado por uma multidão encachaçada de fim de
festa.

E, na primeira fila, apertadas contra o balcãozinho, bem iluminadas pelas
candeias de meia-laranja, as duas mulheres-à-toa estavam achando em tudo um espírito enorme, porque eram só duas e pois muito disputadas, todo-o-
mundo com elas querendo ficar.

Beleza não tinham: Angélica era preta e mais ou menos capenga, e só a
outra servia. Mas, perto, encostado nela outra, um capiau de cara romântica
subia todo no sem-jeito; eles estavam se gostando, e, por isso, aquele povo
encapetado não tinha — pelo menos para o pobre namorado — nenhuma
razão de existir. E a cada momento as coisas para ele pioravam, com o
pessoal aos gritos:

— Quem vai arrematar a Sariema? Anda, Tião! Bota a Sariema no leilão!...

— Bota no leilão! Bota no leilão...

A das duas raparigas que era branca
— e que tinha pescoço fino e pernas
finas, e passou a chamar-se, imediatamente, Sariema — pareceu se
assustar. O capiau apaixonado deixou fuchicar, de cansaço, o meio-riso que
trazia pendurado. E o leiloeiro pedia que houvesse juízo; mas ninguém queria
atender.

— Dou cinco mil-réis!...

— Sariema! Sariema!

E, aí, de repente, houve um deslocamento de gentes, e Nhô Augusto,
alteado, peito largo, vestido de luto, pisando pé dos outros e com os braços
em tenso, angulando os cotovelos, varou a frente da massa, se encarou com
a Sariema, e pôs-lhe o dedo no queixo. Depois, com voz de meio-dia, berrou
para o leiloeiro Tião:

— Cinquenta mil-réis!...

Ficou de mãos na cintura, sem dar rosto ao povo, mas pausando para os
aplausos.

— Nhô Augusto! Nhô Augusto!

E insistiu fala mais forte:

— Cinquenta mil-réis, já disse! Dou-lhe uma! dou-lhe duas! Dou-lhe
duas — dou-lhe três!...

Mas, nisso, puxaram para trás a outra — a Angélica preta se rindo,
senvergonha e dengosa — que se soverteu na montoeira, de braço em braço,
de rolo em rolo, pegada, manuseada, beliscada e cacarejante:

— Virgem Maria Puríssima! Úi, pessoal!

E só então o Tião leiloeiro achou coragem para se impor:

— Respeito, gente, que o leilão é de santo!...

— Bau-bau!

— Me desprezo! Me desprezo desse herege!... Vão coçar suas costas em
parede!... Coisa de igreja tem castigo, não é brinquedo... Deix'passar!... Dá
enxame, gente! Dá enxame!...

Alguns quiseram continuar vaia, mas o próprio Nhô Augusto abafou a
arrelia:

— Sino e santo não é pagode, povo! Vou no certo... Abre, abre, deixa o
Tião passar!

Então, surpresos, deram caminho, e o capiau amoroso quis ir também:

— Vamos embora, Tomázia, aproveitando a confusão...

Sagarana- A hora e a vez de Augusto MatragaOnde histórias criam vida. Descubra agora