Um coração como o seu - Livro 1 - AMOSTRA

That look

O chacoalhar da carruagem faz minhas costas doerem, meus lábios estão cortados por causa do frio que enfrentamos durante os dois dias de viagem. Olho para o lado e analiso o rosto sereno de Remy, que dorme tranquilamente. Eu a invejo por isso, por conseguir ficar tranquila mesmo quando tudo ao seu redor é desconfortável. Outra rajada de vento entra pelas frestas e eu me encolho, viro-me para a janela e suspiro de alívio quando noto que já é possível enxergar as torres mais altas do castelo.

Hoje, finalmente, chegaremos ao nosso destino, a Corte Central do Reino de Mesgár para a grande Festa das Cortes. A festa dura uma semana e todos os dias pela noite há comemorações, é a junção de todas as cinco Cortes que formam o Reino de Mésgar – Corte Norte, Corte Sul, Corte Leste, Corte Oeste e a principal delas, a Corte Central. Antigamente essa festa acontecia todos os anos no mês de setembro, mas com os ataques cada vez mais constantes e certeiros do reino inimigo, agora a festa tem a sua data alternada todos os anos. Fiquei surpresa quando fui convocada meses atrás para acompanhar a família senhoril da Corte, já que sempre em eventos assim recebo a ordem de permanecer no castelo sem qualquer desculpa de saída. Este ano, ao contrário dos outros, depois da semana da festa, as famílias dos Senhores não voltarão para suas Cortes, pois o Rei convocou reuniões com o Conselho para discutirem o que fazer com a situação atual do nosso mundo. 

Cresci ouvindo histórias sobre como os reinos viviam em paz e prosperidade, mas nunca vivi nenhuma dessas coisas. O mundo em que vivemos é separado em quatro reinos: o Reino de Mésgar, o Reino de Cornell, o Reino de Néftar e o Reino de Bouder. Este último é o maior de todos, seu território total corresponde a junção dos outros três reinos, porém a sua terra é morta. O Reino de Bouder, milênio atrás, era conhecido pela crueldade com o seu povo, então os reis e rainhas dos três reinos que dividem a mesma faixa territorial, Mèsgar, Cornell e Néftar, juntaram seus poderes e lançaram uma maldição sobre Bouder, transformando todo seu território em pedra, sem nenhum tipo de vida. E por isso seus exércitos atacam todos os outros reinos em busca de suprimentos e vingança, nos fazendo viver em uma guerra constante. O que era para ser um basta na crueldade, gerou muito mais ódio no coração daquele povo.

Foi em um dos ataques de Bouder, dez anos atrás, em que perdi meus pais. Aquela foi uma das investidas mais horrendas que aconteceu em Mésgar, o objetivo do exército inimigo era matar os senhores de cada corte, trazendo o caos para o Reino de Mésgar, porém somente meus pais foram mortos naquela noite, os Senhores da Corte Norte, a única Corte do Reino que ficou desestabilizada. E eu fui deixada para trás, esquecida em meio as cinzas de um castelo em chamas. 

Meu tio Célian me encontrou dois dias depois, mas Dandara – sua esposa – não deixou que ele avisasse ao Conselho que eu estava viva. Ela fez uma proposta para mim: me deixaria viva, se eu permitisse que meu tio assumisse o posto de Senhor da Corte Norte. O meu direito de sucessora em troca da vida. Em seus olhos vi que na verdade eu não tinha escolha nenhuma, se não aceitasse sua proposta ela me mataria de qualquer jeito. Escolhi a vida, e deixei que ela convencesse meu tio que eu mesmo tinha ofertado de bom grado o poder que era meu por direito. 

Durante a minha adolescência, no auge dos meus quinze e dezesseis anos, pensei em vários planos para desmascará-los e contar ao Conselho que eu estava viva, mas com o tempo notei que meus esforços eram totalmente inúteis. Hoje, com meus vinte e um anos, desisti de tentar mudar um futuro que já está estabelecido e apenas me conformei com o posto que me foi dado. 

De Arabella, a sucessora da Corte Norte, passei a ser uma simples criada particular de Dandara e sua filha Remy, que não merece nem mesmo a menção de um nome.

Encosto-me no banco duro e fecho os olhos tentando acalmar o furor revoltado dentro de mim quando sinto meu sangue se aquecer ao pensar neste assunto. Antes o desejo por justiça queimava e me impulsionava a lutar, mas hoje essas chamas apenas doem. Parte minha ainda quer lutar, mas outra parte, maior e mais realista, apenas me convence a abaixar a cabeça e aceitar, e é essa parte que eu venho escutando nos últimos anos.