II - O leprosário

312 95 604
                                    


 Na manhã daquele dia que nascia lentamente no céu alaranjado da Bahia, eu sentia ainda cedo o cheiro do café sendo passado na hora, na cozinha da casa do pescador. Lentamente abri meus olhos, meu corpo ainda estirado no saco de dormir que me fez vezes de cama durante a noite, na sala, pois a casa do pescador possuía apenas quatro cômodos, e era a segunda maior da vila. Havia uma cozinha, o quarto do casal, um outro para os quatro filhos, e a sala. Naquele vilarejo, não havia família mais rica do que aquela, mas apenas pela noite e o começo do dia que vivenciei naquele local, lembrei da casa de minha mãe, e do amor de minha família, e me flagrei pensando, ainda bem cedo, sem mover meu corpo recém-acordado e inerte enquanto o aroma do café sendo feito acariciava minhas narinas, que não havia existência mais rica do que aquela, a simples. 

O amor, a parceria. Pessoas que pescavam lado a lado desde a infância até a idade avançada, seres vivendo em uma comunidade quase auto sustentável, trabalhando por seus sustentos de modo precário, mas existindo, resistindo. A vida como um todo é sobre evoluir, resistir e fazer conexões, tudo que existe além disso pode provocar a extinção. Ouvi a respiração de Vesper um pouco mais forte, perto de mim. 

Virei-me de lado lentamente, e meus olhos trilharam seus cabelos dourados, caindo sobre seu rosto de pele pálida, agora bastante queimada pelo sol. As sardas se perdiam em pequenos pontinhos marrons sobre seu nariz e bochechas, feito pequenas constelações brilhando anos-luz de distância, entrecobertas pelo céu vermelho que anuncia as tempestades. Sorri sem querer, mas logo me corrigi. Não era mais um direito meu suspirar por essa garota, ela não era mais minha. Nunca foi, as pessoas não se pertencem jamais. Talvez o "ela não me amava mais" seja o que meu orgulho está me impedindo de dizer, mas é a verdade.


Sentei-me então, lentamente. Os filhos do pescador pareciam ainda dormir, apenas sua esposa estava na cozinha, preparando o café da manhã cuidadosamente para não acordar a família e os visitantes, era uma mulher preciosa, havíamos conversado bastante. Peguei minha moleskine, na qual eu fizera anotações até pegar no sono, e escolhi uma página em branco. Apertei a ponte do nariz e com um suspiro baixinho, dei uma última olhada no corpo adormecido de Vesper. Comecei a rabiscar rapidamente com o lápis algo que invadiu minha mente suavemente, palavra por palavra, como uma revelação:


Como provocação do acaso, nossos caminhos se descruzaram.

Não estamos mais aqui.

Estamos presentes em corpo, mas nossos espíritos voam longe.

Talvez explorem terras desconhecidas,

outros sabores e cheiros que ainda não experimentamos.

Ou estão vivendo aventuras no passado,

de cabelos longos e perfumes doces,

como se tudo que existiu em nós não passasse de desencanto.

O que hoje leva as cinzas, do que um dia foi um incêndio,

e talvez, antes do incêndio, uma fortaleza,

confortável, aconchegante e segura. Feita de risos e de sonhos.

E como móbiles que pendem do teto, balançando a favor do vento,

nossos corações vagam agora em direções opostas,

nos fazendo crer que algumas coisas, embora ainda tentemos,

nunca voltam para o seu lugar.


Guardei o caderno com o que prometi pra mim ser o último poema para Vesper McNamara. Nosso pequeno grupo – relativamente pequeno, havia nossa equipe de seis pessoas, três cinegrafistas, quatro atores e um maquiador que também era figurinista – se despediu, agradeceu a hospedagem e deixamos para eles - Aimeé deixou - algum pagamento com os dólares que convertemos em reais, e pela expressão do pescador ao receber aquele dinheiro, acredito que tenha sido um valor muito superior ao que ela acreditava entregar. Aimeé não se importava em gastar nem em euros, que dirá em reais, a moeda tinha menor valor econômico, afinal. Toda minha imagem lúdica sobre uma vila quase auto sustentável foi convertida em algo como "o capitalismo é uma merda".


Seguimos a pé para a região, agora bem melhor explicada a nós pelos pescadores, onde ficava o leprosário abandonado. Haviam dezenas de histórias na pequena vila a respeito do lugar, alguns diziam que depois de ser um leprosário em meados de 1700, também havia sido um sanatório com práticas hediondas no final do século XIX. Haviam dezenas de histórias sobre aparições, fantasmas e eventos sobrenaturais que presenciaram os moradores ao longo de suas vidas, e também relatavam fatos vividos por seus avós, tataravós. 

Até as crianças tinham alguma coisa pra contar sobre o lugar, mas um consenso era absoluto: Eles não gostavam de se aproximar de lá, ninguém ia lá, e os que precisavam passar por perto, sempre voltavam assombrados. Nem preciso dizer que parte do nosso grupo estava bastante assustada, especialmente Rajiv, o editor e continuísta, que era bastante supersticioso e teve medo dessa viagem desde o começo. Havia também uma lenda local sobre um espírito bom que ajudava os pescadores e as crianças, e que trazia prosperidade para a vila.


Ainda assim, acreditávamos serem apenas lendas locais. De todo modo, o projeto precisava ser executado. Enquanto caminhávamos, Rajiv e Castor, nosso produtor, não paravam de comentar entre si que todo filme de terror começa com um grupo de jovens americanos estúpidos indo em um local onde todos dizem ser assombrado, ignoram os avisos dos locais e acabam todos mortos no final. Castor alegava que pelo menos um ou dois acabam sobrevivendo no final, e então passaram a discutir quem seria dentre nós os sobreviventes. Aos poucos, os atores e câmeras começaram a participar das apostas, e o que era aterrorizante acabou ganhando uma ligeira nota de divertimento. Rajiv dizia que ele e eu não sobreviveríamos, a velha história de sempre o negro e o indiano acabarem mortos primeiro. 

Eu ria baixo, mas não participava. Ainda me comovia um pouco a situação com Vesper de mais cedo, e minha mente estava imersa em todo folclore sobre a região mágica que estávamos explorando. Não notei quando chegamos, mas apenas pela minha imersão intelectual. Ali estavam as ruínas ainda conservadas do nosso objetivo. O mato era alto e chicoteava nossas pernas enquanto nos aproximávamos. À medida que chegávamos mais perto, a grama parecia se tornar mais seca, mais sem vida, até que quando finalmente chegamos perto o bastante, notamos que o que a certa distância antes parecia ser um anexo, era na verdade uma pequena capela. Decidimos explorar primeiro ali.


A porta um dia foi dupla, mas um dos lados da madeira podre havia caído, ficando pendurada e permitindo um adulto grande - como eu - passar por ali com facilidade. Entramos na capela. O ar ali parecia um pouco mais leve do que do lado de fora. Decidimos deixar nossos pertences pesados e sacos de dormir ali, e fomos explorar o imenso prédio de dois andares, delimitar suas regiões, verificar onde ficariam as câmeras, os microfones e o mais importante: explorar e conhecer o território. O interior era como eu esperava, nada vivia ali. Tudo era uma imensidão cinza e sombria. Até as plantas que tentaram esticar seus braços pelas paredes descascadas e mofadas haviam secado há algum tempo, deixando manchas escuras e de aparência sanguínea por todo o térreo. Havia um imenso buraco no teto que dava pra imaginar o andar de cima. Quando todos se reuniram no que parecia ter sido um imenso hall de entrada, as portas que abrimos com dificuldade bateram com um estrondo, nos fechando ali dentro e nos separando da luz solar.

Um galeão de sonhosOnde histórias criam vida. Descubra agora