III - O pranto

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Em meio ao breu latente que entranhava em nossas peles e nos fazia arrepiar, apenas um solitário raio de sol serpenteava pelo buraco no teto, dando-nos a entender que no andar de cima haveria também outro buraco, este maior, provendo a nós um mínimo de conforto. Era o vento, haveria de ser e só podia ser. Não haveria outro motivo para aquelas portas pesadas, que resistiram a séculos de tempestades, sal marinho e ao sol escaldante da Bahia, terem fechado com aquela violência, nos prendendo no leprosário. 

Naquele momento sequer sabíamos se estávamos presos ou não, mas a sensação de cárcere tomara conta de nossos corações no exato instante no qual adentramos aquelas ruínas. Talvez já estivesse conosco antes mesmo de entrarmos, mas desde que colocarmos os pés em seu solo amaldiçoado. Sim, eu disse amaldiçoado. Não há maneira melhor de descrever o contexto. Em um ato impulsivo, segurei a mão de Vesper, que apertou a minha de volta também sem pensar. 

Quando literalmente a poeira baixou – a porta batida havia levantado bastante – nos separamos rapidamente, intimamente desejando que ninguém tivesse visto. Ninguém encarava nosso rompimento com muita seriedade ainda. Havíamos feito isso dezenas de vezes antes, mas nós sabíamos que esta havia sido a última. 

Meu grupo e a equipe se entreolhavam, todos confusos, ninguém com coragem o bastante pra admitir que estava morrendo de medo. Vi Aimeé segurar com força o braço de Joey, e a nossa diretora começou imediatamente a olhar para locais onde não havia ninguém, cautelosa, com aqueles olhos cinzas que ela tinha, estreitos como os de um predador.

-Se alguém estiver aqui conosco que não podemos ver, viemos em paz. Não vamos perturbar seu descanso. - Ela disse, e Vesper riu baixinho. Olhei com seriedade pra ela em repreendimento, e neguei com a cabeça.

Aquele foi o último local onde nos sentimos seguros.

Começamos a explorar o edifício. Cada centímetro quadrado daquele lugar exalava morte e abandono. O corredor inferior por onde escolhemos começar nos levou até algumas salas que pareciam ter sido clínicas. Tudo havia sido muito saqueado e, ainda assim, o lugar não estava vazio. Haviam restos retorcidos de ferro em toda parte, toalhas imundas e malcheirosas, limo e musgo em todas as paredes, e o chão era o lar de todo o reino funge e monera

Toda a podridão e aparência macabra do lugar era agravada pelo sal marinho presente no ar, que com sua ação irreversível, corroía tudo em que tocava. O cenário era perfeito, mas o ambiente era opressivo. Encontramos um cômodo imenso ao final do corredor, descendo algumas escadas. No centro havia uma enorme mesa metálica que não estava tão enferrujada quanto os outros objetos que vimos antes. 

Decidimos deixar uma câmera neste local, pois ele merecia uma cena promissora. Estávamos falando baixo, talvez por respeito, talvez por temor. Ainda assim, falávamos, distraídos, decidindo coisas sobre o filme. Apenas eu notei aquele choro baixinho vindo de algum lugar, e segui sem companhia para buscar sua origem. Pensei que poderia ser alguma criança do vilarejo que haveria se perdido naquela região remota. Subi as escadas e ingressei em um corredor ainda não explorado por nós. 


Alguma iluminação vinha das janelas altas e imundas que haviam nas paredes descascadas. Destroços cobriam o caminho, e cacos de azulejo que um dia foram brancos estavam perigosamente quebrados e espalhados em toda parte, deixando o concreto enegrecido e úmido exposto por todo meu trajeto. Pisei com cuidado, mesmo usando botas, esquivando dos detritos. O choro era suave, não havia nenhuma nota de desespero, somente profunda angústia. A medida que eu me aproximava, sentia o calor do ambiente se converter em frio, como se meu corpo mergulhasse na vertical em um rio pacífico, que ainda não me afogava.


Finalmente, cheguei ao final do corredor, de onde o pranto parecia ecoar. Mal pousei meus dois pés na soleira da porta metálica - a única porta no final do corredor - o choro cessou completamente, me abandonando em meio ao silêncio esmagador. Olhei em volta por instinto, e não havia nada ali, exceto os detritos no corredor, que agora olhando de seu final, parecia bem mais longo do que quando entrei. Tentei abrir a porta, mas esta estava trancada, embora a maçaneta estivesse bastante corroída, e talvez por isso eu não conseguia girá-la. A ausência de qualquer som que não fosse produzido por mim naquele momento me inquietou. 

Era como se o choro viesse me fazendo companhia desde que me atraiu até ali, mas agora havia me abandonado. Quando decidi virar de costas e voltar para o meu grupo, ouvi claramente uma voz atrás de mim, melodiosa, sussurrante: -É melhor que te vás.


O que me deixou alerta foi que a voz disse isso em português. Imediatamente girei em meus calcanhares, produzindo ruído no chão. Não havia ninguém ali, absolutamente ninguém. No entanto, de dentro da porta para a qual eu acabara de dar as costas, um rugido grotesco e não-humano ecoou. O susto foi tão grande que quase me joguei no chão. Caí de joelhos pateticamente, sentindo um caco de porcelana cortar dolorosamente minha pele. Meu sangue escorreu para o meio da sujeira, mas mesmo com a dor lancinante que provém de um corte assim, levantei-me com agilidade e corri para o final do corredor, onde encontrei Josephine me procurando.


-Joey, cara tem alguma coisa... - eu me apoiava nos joelhos recuperando o ar de ter corrido tanto e tão rápido, apontando com uma das mãos para a direção da porta e balançando o dedo  trêmulo.

-Eu ouvi. Vamos sair daqui A.J, está escurecendo, é melhor passarmos a noite na capela. Vem, você fez um corte feio aí. - Joey disse, e me apoiou, mesmo sendo bem menor que eu, até o lado de fora do leprosário. Meus companheiros de viagem já estavam todos do lado de fora.


Nos arrumamos na capela, tiramos bancos quebrados e escombros e armamos nossos sacos de dormir no chão, que forramos com lona. Jantamos, nos limpamos com a água que possuíamos, repassamos roteiro e filmagem e foi feito um curativo em meu joelho. Na hora de dormir, decidimos que duas pessoas fariam a guarda na porta, enquanto as demais repousariam. Revezaríamos a cada três horas. Joey e Rajiv se ofereceram para o primeiro turno de vigia, porém deitei-me bem perto de onde os dois estavam sentados em pedras grandes, na porta da capela. 


Acredito que era aproximadamente meia-noite quando novamente tive a sensação de mergulhar em um rio gelado. Eu estava quase adormecendo quando ouvi novamente aquela voz perto de mim, quase colada ao meu ouvido: -Não deverias tentar abrir a porta como sei que tens em mente. Nada de bom sairá de lá. Abri os olhos imediatamente, e procurei em volta movendo o pescoço com intensidade, mas a única coisa que pude ver foi a silhueta de uma mulher se escondendo no confessionário nos fundos da capela.

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No próximo capítulo: Quem é a mulher que está avisando Auden do perigo? Ela tem boas intenções? 

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