O sol se punha aos poucos no horizonte, tingindo toda a paisagem litorânea de tons alaranjados e vibrantes. A areia macia já era a cama de muitos de meus companheiros, ensolados e bêbados, embriagados de maresia e cervejas baratas brasileiras. Os mais sóbrios montavam as poucas barracas que possuíamos. A esta altura, Josephine já havia convencido Aimeé e os demais que deveríamos permanecer na praia até decidirmos o que fazer, mas as gravações das coisas voando e se empilhando sobre a mesa naquela sala onde instalamos a câmera haviam convencido a maioria permanentemente. Estavam agora todos cientes do sobrenatural.
Aimeé Charpentier era loira, não muito alta, filha de franceses abastados e de temperamento dificílimo. Era uma boa mulher, cheia de seus charmes e truques. Conseguia para nós qualquer financiamento que desejávamos e bem, caso não conseguisse, ela tirava do próprio bolso.
Ela e Josephine já estavam juntas quando as conheci, e eram um casal saudável, por mais incrível que parecesse. Tinham longas conversas, resolviam os problemas que surgiam com diálogo, tinham carinho e cuidado quando falavam uma com a outra, nunca se xingavam ou ofendiam, mesmo com raiva. Josephine por sua vez era calma, paciente e sábia. Equilibrava harmonicamente o temperamento vulcânico de Aimeé. Eram a projeção eurocentrada do relacionamento perfeito. Bem diferente de mim e Vesper, que tivemos um relacionamento bem próximo ao tóxico. Joey e Aimeé eram, na ocasião, meu ideal de relacionamento perfeito nos tempos modernos.
A loira dizia que já havia tomado providências para que ficássemos confortáveis durante as gravações, mas se recusava a dizer o que havia resolvido. Eventualmente, Joey e eu trocávamos olhares desconfiados, cientes de que, cedo ou tarde, precisaríamos resolver o que fazer a respeito de nossa descoberta, ainda segredo entre nós. Procurei estar a sós com o mar, sentando-me na beira da praia e sentindo novamente as ondas percorrerem a pele de meus pés. Intimamente, ansiava pelo retorno dela. Não de Joey, mas da mulher que me instigara tanto em tão pouco tempo. Como se lesse meus pensamentos, em um momento eu estava a sós, e no outro ela estava sentada ao meu lado.
Ao sentir sua presença, sorri sem emitir som algum. Ela também sorriu, pude ver pela visão periférica. Não era capaz de compreender minhas próprias decisões, pois o tanto que eu ansiava vê-la, era também o tamanho de meu nervosismo em começar a falar. Não sabia exatamente como ela reagiria quando eu lhe contasse o que realmente aconteceu. Apesar de ser um começo inapropriado para uma conversa o que acabei escolhendo, eu precisava começar de alguma maneira.
-Tu sabes como morreste? - E minha voz saiu grave, pois eu não falava nada havia bastante tempo, mergulhando nas águas infinitas de meus pensamentos. Ela ficou em silêncio também, e quando finalmente a encarei, seu sorriso se desfez.
-Uma explosão. - Ela respondeu seca. Séria. Parecia tão perdida em seus pensamentos quanto eu estivera.
-O navio foi atacado? - Haviam inúmeras chances de ter sido algo desta natureza. Havia uma quantidade colossal de riquezas a bordo.
-Não houve ataque algum contra o navio, pelo menos não no começo. Porém não me recordo. - Ela informou ainda fechada. Parecia ser um assunto delicado, mesmo pós-mortis. Fiquei eu em silêncio, escolhendo as palavras. Não sabia exatamente se ela desejava recordar-se. Algumas memórias são destinadas ao calabouço do esquecimento, por oferecerem perigo à sanidade dos pensamentos.
-O navio se chamava Santa Rosa. O Galeão Santa Rosa. Isso te recorda algo? - Minha voz praticamente sussurrava, hesitante. Eu sentia o suor umedecer as palmas de minhas mãos devido o nervosismo. Ela por sua vez estreitava os olhos lentamente, franzindo as sobrancelhas como se forçasse uma memória. E de repente, seu rosto iluminou-se.
-Sim! É este o nome de meu navio! - E seu sorriso brilhou mais do que o sol, aquecendo meu peito e tomando minh'alma por completo. -Como sabes Á-Jóta? Como descobriste? - Sua animação me contagiava. Sorri também, com orgulho do que eu nem sabia o que era.
-Apenas fiz uma breve pesquisa. - Dei de ombros timidamente. -Tua nau levava consigo o quinto da coroa Portuguesa. - Completei.
-Disso recordo-me! - Ela concordou animadamente. -Mas o tesouro não chegaria até o Rei, aquele verme. - E isso ela disse sussurrando, porém ouvi claramente.
-Fostes tu quem explodiste o navio? - Minha vez de perguntar com urgência e animação.
-Não! Isso foi quase um acidente. - Ela respondeu, e nos encaramos pelo mesmo motivo.
-Te recordas? - Minha voz era esperançosa.
-Um pouco, não o bastante. Ocorreu uma briga, perdeu-se o controle... - Minha companhia fantasmagórica levava a mão à testa e parecia tentar forçar seus pensamentos. Pensei que poderia ajudá-la.
-Teu nome. Vamos tentar recordar teu nome. Tens alguma ideia de como era? - Era irracional que, mesmo diante da possibilidade de encontrar um tesouro centenário no fundo do oceano, eu me importava mais com quem havia sido aquela mulher. Ela pensou por alguns momentos, e depois sorriu de lábios fechados.
-Tenho plena convicção de que começa com a letra C. - Me respondeu de modo simples.
-A letra C? Certo, vejamos nomes que poderiam ter sido usados na época. Catarina? - Arrisquei, e ela fez uma expressão de nojo. -Ok, sem Catarina, vejamos...
-O que é óquêi? - Ela me interrompeu, e por alguns momentos me flagrei processando a ideia de que ela realmente não tinha grandes chances de conhecer essa expressão.
-Significa "certo", "tudo bem", algo assim. - Arrisquei uma resposta não tão acadêmica.
-Entendi. - E a mulher pensou por alguns segundos, enrolando um cacho fantasma em seu dedo fantasma. -Oquêi, sem Catarina! - Me disse animada, e eu sorri de modo mais bobo do que gostaria.
-Clarice? - Tentei de novo.
-Não mesmo. - Ela negou com a cabeça daquele seu jeito intenso.
-Vou falar alguns e verificas se te identifica. - Ofereci, e ela concordou com a cabeça parecendo ligeiramente entediada.
-Cecília? - Ela negou novamente com a cabeça. -Clara? - Ela riu debochada, e eu também. -Cláudia? - Ela fez cara de nojo de novo. -Célia? - Ela revirou os olhos. -Charlotte? - Não sei como aprendeu isso, mas me mostrou o dedo do meio, rindo cínica. -Carmen? - E finalmente obtive sua atenção.
A mulher inclinou a cabeça para o lado parecendo confusa, porém sua expressão era nostálgica, parecia viajar por terras distantes e inexploradas. Parecia reconhecer toda a existência de seu ser. Apesar de ver seus lábios desenharem meio sorriso, contemplei seus olhos brilharem intensamente, como se lágrimas pudessem brotar dali a qualquer momento. Eu já havia observado que uma vez próxima à praia, seu corpo parecia mais visível, mais real. Porém agora, com essa descoberta, ela parecia ainda mais palpável. Tanto, que escorreguei minha mão pela areia e cobri a mão dela com a minha, sentindo novamente o toque frio e espectral de sua alma. Tocando, literalmente, a alma daquela mulher. E então ela sorriu para mim, e não apenas aceitou meu toque, como entrelaçou seus dedos nos meus.
-Obrigada Á-Jota. É um prazer, minha graça é Carmen.
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Obrigada por ler até aqui! E aí gente, o que acharam do capítulo? Deixa aí nos comentários!
Agora AJ sabe o nome da sua fantasma favorita :>
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Um galeão de sonhos
RomanceAuden Jones tem uma alma sensível, escreve poesias e estuda cinema em Columbia. Arte é sua vida, então iria a qualquer lugar por ela. Em meio à uma expedição em um leprosário abandonado, a fim de gravar um longa-metragem com sua equipe, Auden conhec...