Vier #4

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15 de Janeiro de 2018

Era a última seção de testes de novatos para a Gaia Instituto de Dança e embora Alana tenha se saído bem e se destacado muito além da média, leva um melodioso "não", pelo fato de estar tentando pela primeira vez.

Toca piano?

O que? ― Olhei para a mulher que me dirigia à pergunta em alemão.

Perguntei se toca piano. Suas mãos... são grandes.

Olhei minhas mãos e até tinha me esquecido que sabia tocar. Minha interlocutora já olhava distante para o lado ao ver que não tive reação.

Ah, sim, toco, mas não pratico muito.

Estávamos sentadas no chão do palco do teatro, eu e mais umas dez meninas, aguardando os papéis de liberação, pois fomos praticamente escorraçadas da peça.

De uma coisa eu tinha certeza sobre aquilo, se eu quisesse algum dia dançar na Gaia, deveria estar disposta a perder para ganhar. Esse jogo me atraía muito. Eu sei que não tem coisa mais clichê do que dizer que brasileiro não desiste nunca, mas sim, nós somos insistentes e sabemos perder. Mas é um perder para ganhar depois, sempre!

Outra coisa, a Gaia não podia fugir da regra! Eu fui para Viena avisada que eles não aceitam ninguém da primeira vez que tentam. Isso é que é palavra. Mas o que eu faria? Eu já tinha premeditado isso, claro. Minhas economias dão exatamente um ano vivendo sem trabalhar e assim eu tentaria novamente ano que vem e tiraria aqui em Viena um ano sabático, apenas me dedicando à dança. Ou então poderia voltar para o Brasil e terminar a faculdade e aí retornar.

O que fazer?

Alana Tess. ― clamou alguém o meu nome e me levantei.

Um rapaz me acenou e me guiou por um corredor cujo cheiro era de madeira velha, mas tudo era muito bem polido. A sala era ampla, amadeirada até demais. Ao fundo uma outra porta estava aberta dando acesso ao que parecia ser uma antessala.

Sente-se. ― disse ele secamente após entrarmos.

Ao canto um piano. Não era qualquer piano. Era um piano de calda Steinway and Sons, ebony, aparentemente remodelado.

É de 1924, remodelado, se estiver se perguntando. ― disse o rapaz ao mesmo tempo que me olhava de rabo de olho ao escrever algo num papel.

Sim, imaginei.

Ele me dirigiu um dos formulários para que assinasse.

Ano que vem te aguardamos aqui, será diferente para você tentar pela segunda vez, acredite.

As palavras deles me atingiram certeiras e acreditei no que ele havia dito. Ano que vem tentaria e seria com um gosto diferente, com certeza. Ele pede licença e sai da sala dizendo que falta algum papel.

Fico ali sentada, a aguardar, e respirar aquele cheiro de madeira antiga, clássica. Nunca tinha entrado numa sala daquelas, era madeira do chão ao teto, uma acústica irrepreensível.

O rapaz demora!

Até que me acometeu num ímpeto uma vontade, uma força súbita e violenta. Levanto-me e encaro o piano. Sento-me diante dele e sinto as teclas com os dedos. Fechos os olhos e sinto algo mágico. É como se houvesse ali alguma energia.

Começo a tocar o que me vem primeiro à mente. Pareço estar sendo levada a outra dimensão. Algo me toma conta e começo a executar a música.

A mão esquerda executa colcheias, enquanto que a direita, tercinas e semicolcheias. No início as notas soam ininterruptas, mas consigo manter a leveza e a suavidade, aumentando ao poucos a tensão sobre as teclas e inclinando vez ou outra meu tronco para frente com uma expressão atônita na face.

Cadência, esta era a palavra.

Tocar Fantaisie Impromptu de Chopin não era tarefa fácil e eu sabia que não a executava perfeitamente. O mais interessante de tocá-la era que na segunda parte tudo quase que se repetia, porém com mais suavidade. Como assim também na vida, queremos convencer as pessoas de algo, mas somos muito bruscos inicialmente. Da segunda vez que tentamos fazemos com suavidade e carinho, calma e tranquilidade, e o resultado é a perfeição.

Seria assim também minha segunda chance na Gaia. Fantaisie Impromptu é sobre isso, uma obra de arte perfeita.

Chego então até 80% da música e minhas mãos já tensas com a falta de prática começam a pedir algum arrego. Ouço passos de alguém atrás, faço menção em me virar, mas sou impedida.

Continue. ― Uma voz feminina grave num alemão arrastado me dirige a palavra.

Continuo a música e me ocorria que não ia parar. Nunca, em hipótese alguma interrompa Chopin, nunca!

Sinto a presença da mulher atrás a me observar e continuo a dar continuidade à parte final da música, que por si só é abrupto e aberto, não há conclusão resoluta. O final não é explicado e lógico. Não é um final feliz de forma alguma.

Um dó sustenido maior!

Ao término respiro fundo e ajeito a postura. Quando me viro não encontro ninguém senão o rapaz que tinha partido me observar em pé ao lado da mesa. Ele me dá um sorriso de canto, ao passo que me levanto e me ponho diante dele, extasiada pela música e pela energia que tinha aquela sala. Era como se ali havia algo a mais acontecendo em outra dimensão.

Bom... ― me olhou diferente e continuou. ― Mudança de planos. Você fará novos testes.

Novos testes? Como assim?

Vá até este endereço hoje a noite, como informa aí e seja pontual.

Eu pego o papel da mão dele e olho o endereço. Instruções do que vestir e o que levar também são informados. Agradeço e saio sem olhar para trás. 

O que acabou de acontecer?

Em VienaOnde histórias criam vida. Descubra agora