Capítulo III

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Zona Rural de Utinga, Chapada Diamantina, Bahia, entre 1985 e 1986.

 

I

Chico custava acreditar nos acontecimentos das últimas semanas. Enquanto uma garrafa de cachaça, olhando o sol sumir no horizonte diante de sua varanda, pensava em tudo o que sabia acerca daquela coisa canina que o perseguia desde criança. Não queria ter de revisar sua memória em busca de lembranças as quais tanto queria apagar de sua mente.

Mas, o fato de seu sobrinho ter sido brutalmente assassinado, o peito aberto e o coração devorado por uma fera sobrenatural, dois homens serem queimados por um fogo invisível e sua filha ter se comportado como uma prostituta, tudo isso lhe dava o que pensar.

Estava, talvez, enlouquecendo com tanta coisa. Desde aquela noite, sempre que tentava formular uma tese, recordava-se da morte do pai. Na verdade, sentia a presença do genitor ao seu lado, sempre resmungando, pronto para lhe aplicar uma boa surra por seus atos de moleque.

Quando se recuperara do choque, tratara de cobrir a nudez da filha com sua camisa, gritando a todos que dessem um jeito de levarem os corpos para perto da casa e que alguém fosse chamar a polícia o quanto antes. Não se preocupava com o estado dos que sobreviveram, mas com a segurança de sua família.

Foi com alívio que vira que todos estavam bem, embora temerosos. A esposa e Maria rezavam para a Nossa Senhora, a pedido da menina. Temiam muito por um mal que desconheciam. E ficaram aliviadas ao verem o fazendeiro retornar com o corpo desfalecido de Marta nos braços, embora quase banhado em sangue.

— O que houve? — indagou a mulher, sentindo dor nas costas ao realizar um movimento mais brusco.

— Depois explico — respondeu ele, passando com rapidez pela sala e levando a filha para o banheiro.

Não houve como Joana seguir o marido, pois teve de se sentar, sentindo as pernas fraquejarem.

— Antônia! — chamou Chico, aos berros. — Antônia!

Uma mulher de ascendência negra surgiu, aflita, o terço nas mãos.

— Dê um bom banho nela! — mandou, com firmeza.

A seguir ele saiu do banheiro e voltou para junto da esposa, sentando ao seu lado e chamando a filha mais nova para junto dele, abraçando-a.

— Cadê Astolfo? — questionou a índia.

— Ele ainda está desaparecido — mentiu, fazendo uma careta para a esposa, que compreendera a verdade.

Quando a polícia chegou, todos contaram o que havia visto, o que gerou muita confusão, quase resultando em prisões, contudo a garota, que despertara com um grito alto e assustado, confirmara a história. Os rastros de um grande animal, as marcas de dilacerações causadas por dentes e garras e o forte cheiro de enxofre e rosas nos locais dos acontecimentos confirmaram todos os relatos inacreditáveis.

E assim se passaram sete semanas.

Houve alguns ocorridos estranhos depois, porém nada que fosse comparado ao daquela noite. Foram apenas os cães que surgiram mortos e ressecados, de modo misterioso, alguns bois foram acometidos de uma loucura tal que ameaçavam os peões, ocorrendo sacrifícios para evitar acidentes graves. Coisas que eram de natureza inexplicável, contudo não tão assustadoras quanto a aparição da besta sanguinária.

Alguns empregados, os mais supersticiosos — e ajuizados — pediram demissão no decorrer das primeiras semanas, alegando estarem numa terra amaldiçoada e profanada pelo Capeta. Temiam que a coisa que mataram Astolfo também os matasse, arrancando-lhes o coração ainda em vida. Outros, que pensavam em partir também, permaneceram mediante aumento de salário.

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⏰ Última atualização: Oct 31, 2014 ⏰

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