Capítulo II

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Zona Rural de Utinga, Chapada Diamantina, Bahia, 1985.

 

I

Os bois e as vacas foram postas no curral. Os vaqueiros comemoravam euforicamente a longa viagem de uma fazenda a outra e tudo o que queriam era uma boa noite de descanso por ali mesmo, na casa destinada aos empregados solteiros, os peões, como eram chamados em sua maioria.

O Sr. Francisco, ou Chico, como preferia ser chamado, assistiu com alegria o rebanho ser trancafiado ali. Havia sido uma boa compra aquela, algo lucrativo num futuro não muito distante. Os novilhos que adquirira logo seriam bois e vacas que renderiam muito mais do que fora investido, principalmente naquela região transitória entre a Chapada e o Sertão Nordestino, onde poucos haviam conseguido tantas riquezas no decorrer dos anos.

Correu o olhar para a grande casa em que morava, com orgulho. Os berrantes haviam anunciado a sua chegada e com toda a certeza a esposa e as filhas o aguardavam com ansiedade. Imaginava o café fresco, o bolo de fubá, o queijo, o requeijão, a mandioca cozida, a manteiga, o pão caseiro, o leite quente, aquelas guloseimas que a mulher e as cozinheiras faziam tão bem.

Passara dias vendo os traseiros de cavalos e bois, ouvido a prosa dos empregados, sentindo o cheiro da merda dos animais, enfrentado uma onça, sacrificado um cavalo, apartado briga, sido seduzido por prostitutas nos bares que parou na ida, na busca do rebanho bovino. Tudo o que queria era passar algum tempo com a família, sentir o corpo da esposa.

Chico tinha quarenta e nove anos, mas estava muito bem para a idade, mantendo o vigor e o porte perfeitos para percorrer a região montado em seu cavalo baio, carregando seu rifle de caça e o berrante. Seus olhos castanho-claros tinham o mesmo brilho de sempre, porém com a experiência que se adquire com o decorrer do tempo; os cabelos acinzentados, prensados no chapéu de couro, o rosto severo e moreno, marcado pelo sofrimento que teve de enfrentar.

Deu algumas ordens e foi para a enorme casa, atiçando o cavalo a correr mais, ferindo-o com suas esporas. Freou-o já bem próximo da varanda e desceu, sem amarrá-lo, afinal o animal lhe era obediente. Subiu as escadas de madeira, que rangeram. Tirou o chapéu, deixando os cabelos livres.

— Pai! — gritou uma menina de pouco mais de doze anos, surgindo na porta, usando um vestido florido.

O fazendeiro abaixou-se e abriu os braços, para abraçá-la. Largou o chapéu no chão.

Foi um abraço gostoso e apertado, digno de um amor entre pai e filha.

— Tudo bem com você e a mamãe, meu anjo? — indagou ele, a voz carinhosa, o que contradizia seu jeito tão severo.

— Sim, pai — respondeu a menina de olhos negros. — O bebê chutou na barriga dela! E eu senti!

— Que bom!

Joana, a terceira esposa de Chico, estava grávida de sete meses. Era de ascendência indígena, com leves traços africanos e europeus, herdando o melhor de cada um, tornando-se uma mulher linda e sensual, sem ser, contudo, vulgar. Além disso, era muito carinhosa com os enteados, a pequena Maria e a adolescente Marta, que já tinha seus recentes dezoito anos.

Os dois se conheceram dois anos após a morte da segunda esposa do fazendeiro, quando este fora para o Amazonas, ver de perto a venda de um pequeno lote de bois e cabras. Como estava com tempo, levou os filhos também.

Terminado o leilão, aproveitou para alguns passeios, visitando algumas aldeias e vilas indígenas, conhecendo um pouco mais da cultura. Numa dessas aldeias lhe ocorreu duas coisas.

A primeira, como já revelado, foi conhecer Joana, uma mestiça de mãe índia e pai ribeirinho — este com traços euroafricanos —, o que resultou num amor à primeira vista. Isso tardou seu retorno, deixando seu capataz a cargo de tudo neste tempo. Dedicou-se a enamorar a jovem, sendo correspondido; não demorou muito e ambos passeavam por Manaus, pelos rios, e a índia servia de guia tanto para ele quanto para as filhas.

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