Ele acordou, novamente, no meio da madrugada. Sentiu um arrepio desagradável lhe tomar a espinha. Era a mesma hora de sempre. Ele insistiu em se convencer de que era somente o seu relógio biológico que se havia acostumado a acordar naquele horário, mas não dava para se acalmar. Ele tinha de cor um repertório de filmes em que eventos macabros ou misteriosos aconteciam sempre na mesma hora, e tinha certeza de que era o que acontecia, agora.
Levantou-se, andou um pouco pela casa, sempre à espera de algo inesperado. Sonolento, escorregou na escadaria, mas se segurou. Desceu calmamente. Espreitava pelos cantos da casa, na certeza de que encontraria alguém que não devesse estar ali. Deu um pulo ao notar que parecia não estar enganado. Havia mais alguém na casa.
E seguiu esse alguém como uma sombra, desferindo-lhe um forte golpe na nuca.
"Mamãe?"
E agora? Ela estava ali, caidinha da silva, e a culpa era toda sua. Aquele corpo desanimado lhe aumentava o pavor: será que, por uma paranóia idiota, ele teria matado a própria mãe? Mas não podia!!! Não podia ser!
Checou o pulso. Nada!
Conferiu a respiração. Nada!
Deus do céu! ele não podia ter matado a própria mãe!
Não, não é que ele não aceitasse isso. E não aceitava, claro! Mas, enquanto o sono se desvanecia, tornava-lhe a razão. O verdadeiro problema era bem outro: sua mãe morrera havia dois anos! Como poderia ela estar ali, agora? E, pior, como poderia ele ter matado alguém que já não vivia havia anos?
Pensou ele que só poderia estar sonhando. O corpo da mãe teria estado decomposto, não quentinho como ele notava. Aliás, não estava o corpo tomado pela decomposição, mas não tinha nada de quente. Teria, mesmo, ele matado a defunta?
Também isso não fazia sentido. Mas, e se fizesse? Será que ela passaria a retornar para puxar seu pé, no meio da noite? Ou voltaria para lhe pôr de castigo por seu mau comportamento?
Ou será que era possível que ele matara a sua mãe também da vida espiritual? Será que ele acabara com toda a sua existência?!?!
Olhou novamente para aquela figura pálida caída ao chão. Ela não parecia em nada cadavérica. Aliás, começava, até, a se levantar. Ele piscou os olhos, e os esfregou, também. Não podia crer: quando ela morreu, ele pensou que nunca mais a veria em vida.
Caramba! Teria ele também morrido?!?!
Súbito, correu escadaria acima, em direção do quarto, e não viu nada. Seu corpo não estava lá. Ufa! Ele não morrera enquanto dormia. Voltou lá para baixo, para encontrar sua mãe. Ela não estava mais lá na cozinha. Foi para a sala, onde a encontrou chorando.
"Mamãe?", ela não respondia. "Mamãe, me perdoe! Eu não sabia que era você. Eu não queria bater na senhora." Mas ela não parecia chorar de tristeza. "Mamãe?" Ele se aproximou, e ela lhe deu um forte abraço. Um forte e muito quente abraço. Ele se sentiu muito culpado, pois quase a havia matado novamente, dessa vez sem querer, dois anos depois. Desde então, sempre acordava na hora exata em que a matara. Ao pensar nisso, sentiu que o abraço esquentava rapidamente. E esquentava mais, e mais.
Tentou livrar-se daquele abraço quente. Sua mãe começava a rir aos berros, gargalhando mais e mais, e o abraço não afrouxava. Ele, então, tentando se livrar, viu o seu corpo caído ao pé da escada. Como poderia não ter notado? Quanto mais ele tentava se livrar, mais altas eram as gargalhadas. Quanto mais tentava rezar, mais o abraço o apertava. Quanto mais se desesperava, mas o abraço o queimava. E assim foi até se tornar tão insuportável, tão terrível, que não era capaz de sentir mais nada.
E então passou. Tudo se apagou. Nada mais havia além do silêncio. E ele sentiu que teria de esperar, que nada mais poderia fazer além de esperar, indefinidamente. Eternamente. Porque não pudera esperar pela herança; porque ele não pudera esperar nada durante toda a vida. Porque ele nada mais poderia fazer em sua existência, enquanto não aprendesse a esperar.
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Esse conto foi o primeiro que escrevi com esse conceito do inferno personalizado. Foi publicado no blog Literatura Errante em 2009.
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