Maria

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Maria era a cara do recato. A roupa sóbria, os botões sempre fechados como os da Clarice de Caetano, o sorriso tímido e reservado. Tinha uma aura de menina quieta, tinha o jeito de quem cresceu no mato.

Sua reserva já conhecida fazia dela um mistério vivo. Adentrar seu misterioso mundo era para quem podia um privilégio. Fazia-se ilustrativa do imaginário masculino, resultando na sentença certa e garantida: essa é pra casar!

Maria era a flor mais delicada. Seu olhar doce, a pele límpida e sedosa. Desde pequena encantava a todos, com seus modos de menina moça. Já aos 16, continuava a encantar com seu jeito de moça menina.

Popular como poucos, Maria era quase unânime. Algumas poucas meninas não eram fãs de Maria, mas o despeito diante de tanta doçura pega mal, e elas disfarçavam contrariadas. Alimentavam em segredo a certeza de que Maria era uma sonsa. Mas, Maria não dava um só passo em falso. Não dava chance de se lhe apontar um só mal.

Maria era arrebatadora. Fina e firme como a lâmina de uma guilhotina, falava pouco, mas o suficiente. Nada mais que o necessário. Batia tão forte que nem se sentia, num morde-e-assopra que nem soprava nem mordia. Não dava trela a marmanjo, não dava o serviço para as meninas.

Afinal, de que serviria todo o recato de Maria, se todos lessem o livro de sua vida? Maria era tão simples, que sequer se desconfiava que ela escondia algo. Era tão evidente, que, de fato, dela nada se sabia.

Ninguém via Maria com nenhum rapaz. Na verdade, via, sim. Conversando, animadamente, ou estudando, ou discutindo política. Não, namorando. Alguns fofoqueiros tentavam adivinhar com quem ela namoraria às escondidas. Seria o Jorginho? Ou Carlos, o do cabelo liso caindo na testa? Não, deve ser alguém de outro bairro, como aquele bonitinho que trazia ela de carro, de vez em quando. Certamente, seria um sujeito um pouco mais velho. Ou mais novo, quem sabe?

Ninguém via Maria de quiquiqui, também, com meninas. Tinha suas amigas, mas era, com elas, quase tão recatada quanto com seus amigos. Era amizade de mulher, claro. Ia em duplas ou trios, ou grandes grupos, ao banheiro, como qualquer outra menina. Trocava dicas de maquiagem, endereço de salão de beleza, segredo de penteado e hidratação.

Maria era linda, doce, delicada e feminina. E homossexual. Claro que não dava na vista. Não que se escondesse, embora mantivesse segredo. Mas, é que não fazia qualquer força. Era natural, como qualquer outra menina. Ela sabia que gostava de meninas, e que meninos não lhe apeteciam. Sempre soube.

Ela não era indiscreta como seria um rapaz. Se as amigas lhe descobrissem, talvez não se sentissem invadidas, pelo menos não tanto. Era muito cuidadosa.

Não se exibia como, nem para para os meninos, porque não queria essa atenção. Gostava de suas companhias, e da liberdade que eles tinham. Mas, não queria ser nem parecer um garoto.

Maria gostava de ser menina. Gostava do próprio corpo, com reservas, como toda garota saudável. Ela não queria cura, porque sabia que não era doença. Mas, não conseguia se abrir, pois a rejeição à sua orientação sexual costumava ser chocante.

E foi.

Maria cansou de Platão e do amor no mundo das idéias. Queria poder amar abertamente. Não aos brados, mas, livre. Queria ser normal: amar sem censura. Maria queria se declarar.

Nervosa e eufórica, Maria se preparou para o grande momento. Nada grande, para não assustar. Nada indiscreto, para não chamar a atenção de quem não devia. Mas, preparou poema próprio, uma garrafa de vinho branco, petiscos apropriados. Simulou que iria uma turma, mas, só convidou Dani. E Dani foi, como pardal, para a arapuca do amor que lhe armou Maria.

Duas ou três taças bebidas, Maria chegou mais perto. Dani, já ficando alta, mal reparou na aproximação, que dirá na intenção?

Mais uma taça, e a coragem começa a aparecer. Junto com ela, a ocasião. Elas riem com o prazer de suas companhias, divertem-se como crianças. Dani pergunta se o pessoal não vem. Maria diz não saber. Mas, quem se importa? É a hora, Maria arrisca chegar mais junto. O beijo vai acontecer, falta muito pouco. Dani parece se deixar levar, mas, na verdade, congela. O beijo de Maria cai no vazio da reação fria de Dani.

Maria sente o pavor lhe tomar, um rubor lhe toma a fronte. Mas, Maria se domina. Tenta trazer Dani para si, num abraço quase fraterno. Dani descongela, mas, fica mais fria. Dani recua à aproximação de Maria.

Dani sabe que a maioria das garotas de sua idade vivem, ou já têm vivido alguma experiência homossexual. Sabe até dentre as amigas algumas que dizem ter experimentado. Às vezes, acha que por status, algumas dizem. Mas, pela mesma razão, Dani se recusa. Não que ela não seja heterossexual, não é isso. Mas, muito mais pesou o temor de ser descoberta. Não poderia dar mais um passo sequer.

Maria tenta dialogar. Dani se levanta. Maria pede desculpas, arrependida mais do pedido do que da tentativa frustrada. Dani não diz palavra. Maria chora. Chora Maria.

Amanhã, todos sabem. Dani não precisa revelar Maria, mas, precisa desvelar sua esquiva. Precisa se reafirmar mulher, e mulher que gosta de homem, pensa Dani, recusa mulher. Precisa, também, espalhar seu sucesso: desejada até por garotas. É a mais, entre as mais mais!

Maria, não chora. Ela não vale a pena. Vá viver, e um dia achará alguém que lhe mereça.

Mas, a semana passa. Depois de ser apontada por todos, Maria não apareceu mais na escola. Maria não é mais vista em qualquer parte. Maria se esconde.

Até a manhã em que Maria é encontrada. Deitada sobre a calçada. Sarjeta? Quem eras tu, Maria? Caída diante da escola. Bêbada, talvez? Não. Fria, Maria ainda preserva o doce aroma de seu perfume, mas, não mais a pulsação de suas veias. Para a surpresa geral de todos na escola. Numa mão, um poema de amor que não pôde entregar a Dani. Na boca, um bilhete de ódio, que diz: "morte aos gays"!

Pablo de Araújo Gomes, dezembro de 2014

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Você não precisa ser LGBTQI+ para combater o preconceito

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Esse texto faz parte de um outro livro de contos, meu, que deverá ser publicado em breve. Não se preocupem, que procurarei manter a todos(as) devidamente informados(as).

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