Culpado

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Abriu os olhos, sentindo que não dormira nada desde que os havia fechado. E, no entanto, demonstravam o contrário o despertador tocando e sua esposa cobrando que desligue o despertador.

Desligou o despertador.

Mas, pareceu que seu corpo não acordara. Precisava de uma força que não encontrava, para levantar-se. Permitiu-se ficar deitado só mais um pouco, como se isso fosse escolha sua.

— Melhor levantar. Você vai pegar no sono de novo.

Ele achou melhor não dizer nada, até porque já estava sonhando novamente quando foi interpelado. Viu que haviam passado dez minutos do toque do despertador.

— E procura um médico. Você passou a noite inteira roncando, novamente!

Aquilo era ruim. Ele já havia feito uma cirurgia pesada no nariz para corrigir isso, anos atrás, quando a situação material era mais confortável. Agora, não tinha recursos para bancar isso. Ok, tinha o plano de saúde. Pode rir. Contar com o plano costuma ser ruim. No caso dele, não seria grande problema, mas, havia uma tal taxa para usar o serviço, uma coparticipação, que ele simplesmente não teria como pagar.

Levantou, a custo, seu corpo pesado. Não que fosse gordo, mas, vinha ganhando peso nos últimos tempos, após as circunstâncias o obrigarem a parar suas atividades físicas. Mas, pior foi pior pisar o chão com os pés doendo. Ainda assim, sentido a dor a cada pisada, foi andando. Tinha que preparar o café antes do filho acordar. Depois que ele levantasse, era impossível fazer qualquer coisa.

Serviu banana e maçã, as últimas frutas da fruteira. Pegou o pão guardado no congelador, e suspirou: "Dá pro café de hoje, amanhã e depois". O queijo já não duraria tanto tempo. Montou os sanduíches do dia, e pôs a queijeira na pia, para lavar. Torceu para sua esposa ter dinheiro para a feira, pois só teria quando virasse o mês, em uma semana. Lembrou de quando podia contribuir mais com a feira e lamentou sua nova condição. Requentou o café que sobrara do dia anterior, pois era suficiente e ninguém estava podendo se dar ao luxo de desperdiçar.

Nada de extraordinário se sucedeu nos próximos instantes. Tomou o café da manhã em família, o que é bom. Televisão desligada, claro, pois ele não suportava mais ouvir falar de crise econômica, nem de corrupção, nem das mancadas diárias do presidente. Esse último, aliás, um espetáculo à parte. Se tivesse contribuído para colocá-lo lá, se obrigaria a assistir aos noticiários todos os dias, para não se deixar esquecer de não reelegê-lo. Mas, quem o elegera não parecia se envergonhar, e os eleitores que não conseguiam seguir justificando suas merdas simplesmente pararam de acompanhar, e para eles "a política acabou" quando acabou a eleição, agora é tempo de "torcer pelo país", e se você fica reclamando você está "torcendo contra". É até constrangedor repetir esse discurso tosco e politicamente analfabeto!

Antes do banho, bobeou. A aliança caiu no vaso enquanto a água da descarga levava os dejetos. Não acreditou! Simbólico, para dizer o mínimo. Não importava o quanto ele e sua esposa estivessem se esforçando para fazer o casamento durar, não importava o quanto ambos tivessem certeza de que não se deixariam, a sensação era de que o seu casamento estava se diluindo com o tempo, como o asfalto que a prefeitura coloca nas vias importantes da cidade: não duram uma temporada de chuva.

E sua vida estava chuvosa. Aquela chuva meio fina e persistente que dura dias e contribui para manter tudo alagado, logo após um ano de tempestade quase ininterrupta. Eles haviam tolerado muito, juntos. Ela havia feito muitos sacrifícios, para que ele pudesse tentar viver um sonho... e fracassar retumbantemente! Ela segurara a pressão, porque ele não podia dar conta, e isso os afastou por um tempo. O fracasso os juntou novamente, agora dois estranhos exaustos tentando se entender. Claro que não podiam atribuir as dificuldades do casamento à crise, mas, com certeza, a crise atuara na relação, como a umidade atua nesses móveis de hoje em dia, que ficam inchados, moles, inúteis. Eles se esforçavam muito para fazer dar certo, substituir as peças, reconstruir a relação. E seguiriam se esforçando mais, com certeza. Mas, faltava algo que haviam perdido no caminho. Faltava aquele companheirismo, a cumplicidade, aquela leveza que era sua grande marca, anos atrás.

Ligou o chuveiro, chateado. Se fosse para ficar sem aliança, poderia ter vendido pelos dois mil reais que ela valia. Mas, isso jamais houvera sido opção, pelo valor sentimental. Com aquela aliança ele noivara, e com ela mesma se casara, num dos dias mais belos de sua vida, junto com os nascimentos dos filhos. Que droga de água gelada!

Pegou o xampu, e o depositou de volta na prateleira. Só renderia mais dois usos, e teria que fazer render uma semana. Droga! Já havia molhado o cabelo. Não iria pro trabalho com a cabeça cheirando a cachorro na chuva! Pegou novamente o recipiente, pôs um pouco de água dentro e misturou. Colocou uma pequena quantidade na cabeça, quase insuficiente. Para quem tinha o hábito de lavar o cabelo todos os dias, lavar só mais uma vez até a semana seguinte parecia fora de cogitação. Considerou raspar a cabeça.

Mas, não havia tempo, naquele momento. Talvez, mais tarde. Pegou o toquinho de sabonete. Havia outro guardado, mas, só pegaria quando aquele estivesse totalmente dissolvido, ou quando estivesse impossível se lavar com ele. Na verdade, nem faltava tanto para isso. Mas, teria que fazer render.

Ao fim do banho, enxugou-se somente o suficiente para não molhar a casa, e se enrolou na toalha. O pé molhado escorregou na chinela, e a tira partiu. Proferiu um palavrão em voz baixa, porque o filho estava aprendendo todas as palavras que ouvia, e foi se vestir. Abriu o guarda-roupas, e maldisse a adoção de fardas brancas. Todas quatro que tinha estavam amarelas debaixo dos braços, um presentinho do desodorante sem cheiro que ele adotara para evitar os enjoos da esposa, durante a gravidez.

Vestiu a calça, pensando que ela não podia ficar suja, se continuasse chovendo. Afinal, a outra rasgou.

Lá fora, começa a chover e ele espera sinceramente que a cidade não alague. O carro está com alguma infiltração, e quando passa por alagamentos vira uma piscina. E a maldita água só entra! Para tirar, é na base do pano e balde (da última vez, encheu dois baldes), e o carpete permanece úmido, não importa o quanto se enxugue.

Pronto para sair, pega a marmita e chama a família para o carro. Hora de sair. Que bom que o carro ligou de primeira! Era tempo de deixar os filhos na escola. Saindo da escola do filho, se dá conta de que esqueceu a carteira com seus documentos em casa. Pelo dinheiro que está lá, tão pouco, não fará grande diferença. Pelo cartão com limite estourado, também não. Mas, agora qualquer blitz era um motivo para grande preocupação! Não dá tempo de voltar para buscar. Pegue para o trabalho que detesta, mas, que, ainda paga suas contas.

"É...", pensa ele, "tem gente que passa fome, tem gente que não tem família, tem gente que não tem carro, tem gente que trabalha sob sol e chuva, ou nem mesmo tem emprego... eu tenho tudo isso, e ainda reclamo da vida!".

Tirou o pé da embreagem e acelerou suavemente, sentindo-se culpado. E, assim, viveu mais um dia.

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