2 • Utopia

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Com os batimentos cardíacos acelerados e uma desestabilizadora falta de ar, meu corpo ergueu-se subitamente, assim que despertei. A confusão inundando-me por inteira, foi seguida por uma enxurrada de recordações, do que houvera acontecido antes do desmaio, tudo isso impactando-se brutalmente em minha cabeça. Estava pronta para entrar em desespero outra vez, quando a mão delicada tocou meus ombros e chamou-me atenção.

— Ei, ei, está tudo bem. — A  voz trêmula de Hina, soando estupidamente apressada para tranquilizar-me, trouxe-me de volta à órbita. E com seus braços envolvendo-me com afeto, amplificou isto — Está tudo bem agora.

Regulando minha própria respiração, enquanto sentia a segurança do abraço de minha amiga, olhei, enfim, o que estava a minha volta.

Com a luz fraca do abajur iluminando as paredes tom pastel que nos cercavam, pude situar-me e perceber que conhecia bem aquele cômodo. Era meu quarto. Estávamos em casa. Movendo-me entre os lençóis macios da cama, afastei-me de Hina, saindo de seu abraço, já estável de minhas reações.

O vestido brilhante ainda estava em seu corpo, assim como a maquiagem borrada e o cheiro de álcool impregnado em sua pele, apesar dela parecer um tanto sóbria. No entanto, o mesmo não acontecera comigo. Meu corpo desprotegido, apenas coberto pela lingerie, cheirava ao perfume do sabonete de jasmim em nosso banheiro, evidenciando que havia recebido um belo banho frio de minha amiga.

Olhando através da janela próxima a nós e vendo toda a escuridão que ainda imperava lá fora, constatei que nada mais do que horas haviam passado-se.

— O que aconteceu depois que apaguei? — A pergunta saindo involuntariamente por meus lábios, pegou de surpresa não só à Hina pela firmeza, mas a mim também.

Acomodando-se inquieta para sentar mais perto, seus olhos refletiram a luz baixa e nada além da culpa brilhou em suas órbitas.

— Eu procurei por você, Any, estava tão preocupada… — O tom repleto de remorso e auto depreciativo demonstrava o quão ela se culpara por tudo que acontecera. Porém, antes que sequer pudesse contestá-la, ela prosseguiu — Até que vi a aglomeração e você caída, inconsciente, nunca senti tanto medo. Me perdoe, não deveria ter sido assim.

Subitamente tocando sua mão, para garanti-la que não havia ressentimento ou responsabilidade alguma sobre aquilo, busquei minha fraca voz novamente.

— Não se culpe por aquilo, só existe uma pessoa a ser condenada. — Dando veemência em cada uma de minhas palavras, a assegurei, olhando no fundo de seus olhos e logo em seguida dando-me conta do que falara e, principalmente, da grande questão que aquilo trazia — O que houve com o maldito assediador?

A hesitação explícita de Hina para responder, embrulhou-me o estômago e, de repente, todo o nojo que senti naqueles momentos de horror retornou de forma brutal. Não tratava-se apenas dos momentos de horror que havia se seguido na boate, mas também de toda a chuva de recordações que este me acarretara. Os abusos que havia sofrido durante a infância, e me empenhara todos os dias para apagar de minha vida, retornaram em minha mente naqueles instantes torturantes. Jamais esqueceria o toque nojento e as palavras imundas. Estaria para sempre marcado em mim.

— Não houve como detê-lo entre tantas pessoas e a escuridão da boate, Any. Sinto muito. — As palavras entristecidas por ser responsável de informar-me aquilo, passaram com amargor por seus lábios. Vendo-me permanecer estática, atônita e em completo silêncio, sem realmente saber como reagir à notícia que me havia sido dada, ela logo apressou-se para continuar — Mas, o que importa é que agora está tudo bem!

Encarando-a e deixando explícito em minha face todos os sentimentos depreciativos que me rondavam naquele momento, deixei com que o silêncio e todo o nojo ainda remanescentes tomassem conta de tudo, por breves minutos.

EpifaniaOnde histórias criam vida. Descubra agora