Nessa tarde, Lalino Salãthiel não pagou cerveja para os companheiros, nem foi jantar com seu Waldemar. Foi, sim, para ca sa, muito cedo, para a mulher, que recebeu, entre espantada e feliz, aquele saimento de carinhos e requintes. Porque ela o bem-queria muito, Tanto, que, quando ele adormeceu, com seu jeito de dormir profundo, parecendo muito um morto, Maria Rita ainda ficou longo tempo curvada sobre as formas tranqüilas e o rosto de garoto cansado, envolvendo-o num olhar de restante ternura.
Na manhã depois, vendo que o marido não ia trabalhar, esperou ela o milagre de uma nova lua-de-mel. Enfeitou-se melhor, e, silenciosa, com quieta vigilância, desenrolava, dedo a dedo, palmo a palmo, o grande jogo, a teia sorrateira que às mulheres ninguém precisa de ensinar.
Mas, agora, Lalino andava pela casa e fumava, pensando, o que a alarmava, por inabitual. Depois ele remexeu no fundo da mala. No fundo da mala havia uns números velhos de almanaques e revistas.E Latino buscava as figuras e fotografias de mulheres. E, de via de ser assim... Feito esta, Janelas com venezianas... Ruas e mais ruas, com elas... Quem foi que falou em gringas, em polacas?... Sim, foi o Sizino Baiano, o marinheiro, com o peito e os braços cheios de tatuagens, que nem turco mascate-de-baú... Mas, os retratos, quem tinha era o Gestal guarda-freios: uma gorda... uma de pintinhas na cara.., uma ainda quase menina... Chinelinhos de salto, verdes, azuis, vermelhos... Quem foi que falou isso? Ah, ninguém não disse, foi ele mesmo quem falou... E aquela gente da turma, acreditando em tudo, e gostando! Mas, deve de ser assim. Igual ao na revista, claro...
Maria Rita, na cozinha, arruma as vasilhas na prateleira. Não sabe de nada, mas o arcanjo- da-guarda das mulheres está induzindo-a a dar a última investida, está mandando que ela cante, com tristeza na voz, o: “Eu vim de longe, bem de longe, p’ra te ver...”
....Bem boazinha que ela é... E bonita... (Agora, como quem u se esconde em neutro espaço, Lalino demora os olhos nos quadros de guerras antigas, nessas figuras que parecem as da História Sagrada, no plano de um étero-avião transplanetário, nu ma paisagem africana, com um locomovente rinoceronte...) Mas, são muitas... Mais de cem?... Mil?!... E é só escolher: louras, de olhos verdes... É, Maria Rita gosta dele, mas... Gosta, como toda mulher gosta, aí está. Gostasse especial, mesmo, não chorava com saudades da mãe... Não ralhava zangada por conta d’ele se rapaziar com os companheiros, não achava ruim seu jeito de viver... Gostasse, brigavam?
E na revista de cinema havia uma deusa loira, com lindos pés desnudos, e uma outra, morena, com muita pose e roupa pouca; e Maria Rita perdeu.
....Bom, quem pensa, avessa! Vamos tocar violão...
Depois do almoço, saiu. Andou, andou. E se resolveu.
Foi fácil. Tinha algum saldo, pouco. João Carmelo comprava o carroção e o burrinho. Seu Marra fez o que pôde para dissuadi-lo; depois, disse: — “ Está direito, Você é mesmo maluco, mas mais o mundo não é exato. Se veja...” — O pagamento, porém, tinha de ser em apólices do Estado, ao menos metade. — — Sim sim, está direito, seu Marrinha. Em ótimo! Porque a ação tinha de ser depressinha, depressa, não de dúvidas... E Lalino dava passos aflitos e ajeitava o pescoço da camisa, sem sossego e sem assento.
Com seu Waldemar, foi mais árduo, ele ainda perguntou: — “Mas que é que já vai fazer, seu Lalino?... Quer a vagabundagem inteirada?” —Vou p’ra o Belorizonte... Arranjeizinho lá um lugar de guarda-civil... O senhor sabe: é bom ir ver. Mas um dia a gente volta! — “Mentira pura, a mim tu não engana... Mas deve de ir... Em qualquer parte que tu ‘teja tu ‘tá em ca sa... Podem te levar de-noite p’ra estranja ou p’ra China, e largar lá errado dormindo, que de-manhã já acorda engazopando os japonês!”...
— Adeus, seu Waldemar!
Mas, dez passos feitos, volta-se com uma micagem:
— Adeus, seu Waldemar!... “Fé em Deus, e... unha no povo!”...
Tinha oitocentos e cinqüenta mil-réis. Mas, vendidas as apólices para o Viana, deram seiscentos. Bom, agora era o pior... E, até chegar perto de casa, escarafunchava na memória todos os pequenos defeitos da mulher...
VOCÊ ESTÁ LENDO
A volta do marido pródigo - Sagarana
Short Story"A volta do marido pródigo", conto do livro Sagarana, por Guimarães Rosa