Com o relatório de Lalino, o Major compreendeu que não podia ficar descansado. Tinha de virar andejo. Mandou selar a mula e bateu para a casa do Vigário. Mas, antes da sua pessoa, enviou uma leitoa. Confessou-se, deu dinheiro para os santos, O padre era amigo seu e do Governo, mas, com o raio do Benigno chaleirando e intrigando, a gente não podia ter certeza. Felizmente, estava vago o lugar de inspetor escolar. Ofereceu-o ao Vigário.
— Mas, Major, não me fica bem, isso... Meu tempo está tomado, pelos deveres de pároco...
— E um favor aceitar, seu Vigário! Precisamos do senhor. Não é nada de política. E só pelo respeito, para ficar uma coisa mais séria. E é para a religião. Comigo é assim, seu Vigário: a religião na frente! Sem Deus, nada!...
O padre teve de aceitar leitoa, visita, dinheiro, confissão e cargo; e ainda falou:
— Sabe, Major? Quem esteve aqui ontem foi esse rapaz que agora está trabalhando para o senhor. Também se confessou e comungou, e ainda trocou duas velas para o altar de Nossa Senhora da Glória... E rezou um terço inteiro, ajoelhado aos pés da Santa. O caso dele, com a mulher mais o espanhol, é muito atrapalhado, e por ora não se pode fazer coisa alguma... Mas, havendo um jeito... Como bom católico, o senhor não ignora: a gente não deve poupar esforços visando à reconciliação de esposos. Aliás, só lhe falo nisso porque é do meu dever. O moço não me pediu nada, e isso prova que ele tem delicadeza de sentimentos. Depois, assim, com tanta devoção à Virgem Puríssima, ninguém pode ser pessoa de todo má...
— Com a Virgem me amparo, seu Vigário!
— Amém, seu Major!
E Major Anacleto tocou pelas fazendas, em glorioso périplo, com Tio Laudônio à direita, seu Oscar à esquerda, e um camarada atrás.
Passaram em frente da chácara dos espanhóis. Seu Ramiro baixou à estrada, convidando-os para uma chegada. Mas isso era contra os princípios do Major. Então, seu Ramiro, ali mesmo, fez suas queixas: que o senhor Eulálio, apadrinhado pelo Estevão, viera por lá, a cavalo, somente para o provocar... Não o saudara, a ele, Ramiro, e dera um “viva o Brasil!” mesmo diante da sua porta. E, como a Ritinha estivesse na beira do córrego, lavando roupa, o granuja, o sem-vergonha, tivera o atrevimento de jogar-lhe um beijo... Ele, mais os outros patrícios, podiam haver armado uma contenda, pois se achavam todos em casa, na hora. Mas, como o maldito perro agora estava trabalhando para o senhor Major, não quiseram pegá-lo com as cachiporras... Agora, todavia, tinha que pedir-lhe justiça, ao distinguido Senhor Major Dom Anacleto...
Nisso, o Major, vendo que Tio Laudônio fazia esforços para não rir, ficou sem saber que propósito tomar. Mas o espanhol continuou:
— E creia, senhor Major, não o quero molestar, porém o canalha não lhe merece tantas altas confianças... Saiba o senhor, convenientemente, que ele se há feito muito amigo do filho do senhor Benigno. Foram juntos à Boa Vista, todos acá o hão sabido... Com violões, e aguardente, e levando também o Este vão, que vive, carái! o creio, à custa do senhor Major...
Aí, foi o diabo. Major Anacleto ficou peru, de tanta raiva. Então, o Lalino, andando com o filho do adversário, e indo os dois para a Boa Vista, um dos focos da oposição? Bem feito, para a gente não ser idiota! E, pelo que disse e pelo que não disse, seu Oscar teve pena do seu protegido, seriamente.
E, uma semana depois, quando, encerrada a excursão eleitoral, regressaram à fazenda, a apóstrofe foi violentíssima. Lalino tinha chegado justamente na véspera, e estava contando potocas aos camaradas, na varanda, o que foi uma vantagem, porque o Major gritou com ele antes de ter de briquitar para tirar as botas, o que geralmente aumenta muito a ira de um cristão.
— Então, seu caradura, seu cachorro! O senhor anda agora de braço dado com o Nico do Benigno, de bem, para me trair, hein?!... Mal-agradecido, miserável!... Tu vendeu a mulher, é capaz de vender até hóstias de Deus, seu filho de uma!
— Seu Major, escuta, pelo valor do relatar! Eu juntei com o filho do seu Benigno foi só p’ra ficar sabendo de mais coisas. P’ra poder trabalhar melhor para o senhor... E mais p’ra uma costura que eu não posso lhe contar agora, por causa que ainda não tenho certeza se vai dar certo... Mas, seu Major, o senhor espere só mais uns dias, que, se aVirgem mais nos ajudar, o povo da Boa Vista todo, começando por seu Cesário, vai virar mãe-benta para votar em nós...
Aí, Tio Laudônio fez um sinal para o Major, que se acalmou, por metade. Afinal, o diabo do seu Eulálio podia estar com a razão. Mas o Major tinha outros motivos para querer desabafar:
— Eu não lhe disse que não fosse implicar com os espanhóis? Não falei?! Que tinha o senhor de passar por lá, insultando?
— O diabo! Não é que já foram inventar candonga?!... Não insultei ninguém, seu Major...
—Tu ainda nega, malcriado? O Ramiro me fez queixa...
— Seu Major, só se aqueles estrangeiros acham que a gente dar viva ao Brasil é mexer com eles. Mas eu nunca ouvi ninguém dizer isso... A gente na política tem de ser patriota, uai! O senhor também não é?!
— Deixe de querer se fazer! Mais respeito!... O senhor não pode negar que foi se engraçar com a dona Ritinha, que estava lá quieta na fonte, esfregando roupa...— Ora, seu Major, o senhor não acha que a gente vendo a mulher que já foi da gente, assim sem se esperar, de repente, a gente até se esquece de que ela agora é de outro? Foi sem querer, seu Major. Agora, o senhor me deixa contar o que foi que eu fiz nestes dias...
— Pois conta. Por que é que ainda não contou?!
— Primeiro, fui no Papagaio, assustei lá uns e outros, dando notícia de que vem aí um tenente com dez praças... Só o senhor vendo, aquele povinho ficou zaranza! As mulheres chorando, rezando, o diabo!... Depois sosseguei todos, e eles prometeram ficar com o senhor, direitinho, p’ra votar e tudo!...
— Hum...
— Depois, fui dar uma chegada lá no Mucambo, e, com a ajuda de Deus, acabei com a questão que o seu Benigno tinha atiçado...
Tio Laudônio se adianta, roxo de curiosidade profissional:
— Como é que você fez, que é que disse?
— Ora, pois foi uma bobaginha, p’ra esparramar aquilo! Primeiro, fiz medo no seu Antenor, dizendo que seu Major era capaz de cortar a água... Pois a aguada da fazenda dele não vem do Retiro do irmão do seu Major?... Com seu Martinho, foi mais custoso. Mas inventei, por muito segredo, que o senhor dava razão a ele, mas que era melhor esperar até depois das eleições... Até, logo vi que o seu Benigno não tinha arranjado bem a mexida... A briga estava sendo por causa daqueles dois valos separando os pastos... O senhor sabe, não é? Tem o valo velho, já quase entupido de todo, e o novo. Levei seu Martinho lá, mais seu Antenor... Expliquei que, pela regra macha moderna do Foro, o valo velho não era valo e nem nada, que era grota de enxurrada... E que o valo novo é que era velho... E mais uma porção de conversa entendida... Falei que agora tinha uma nova lei, que, em caso de demandas dessas, tinha de vir um batalhão todo de gente do Governo, p’ra remedirem tudo... E o pagamento saía do bolso de quem perdesse... Quando falei nos impostos, então, Virgem! Só vendo como eles ficaram com medo, seu Major! Então, resolveram partir a razão no meio. Ajudei os dois a fazerem as pazes...
—Valeu. O que você espalhou de boca, de boca o Benigno ajunta... Fazer política não é assim tão fácil... Mas, alguma coisa fica, no fundo do tacho...
— Pois, não foi, seu Laudônio? Faço o melhor que posso, não sou ingrato. Mas, como eu ia contando... Bem, como seu Martinho é homem enjerizado e pirrônico, eu, na volta, fui na cerca que separa a roça dele do pasto do pai do seu Benigno... Dei com pedras e cortei com facão, abri um rombo largo no arame.., e toquei tudo o que era cavalo e vaca, p’ra dentro da roça. Ninguém não viu, e vai ser um pagode! Assim, não tem perigo: quem é pra ficar brigado agora é o seu Martinho com o pai do outro e, decerto, depois, com seu Benigno também...
— Não tenho tanta esperança... — opinou o Major, já conforme. E Lalino concluiu, com voz neutra, angelical:
— Está vendo, seu Major, que eu andei muito ocupado com os negócios do senhor, e não ia lá ter tempo p’ra gastar com espanhol nenhum? Gente que p’ra mim até não tem valor, seu Major, pois eles nem não votam! Estrangeiros... Estrangeiro não tem direito de votar em eleição...
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A volta do marido pródigo - Sagarana
Storie brevi"A volta do marido pródigo", conto do livro Sagarana, por Guimarães Rosa