Em meu trabalho O Futuro de uma Ilusão [1927c], estava muito menos interessado nas fontes mais
profundas do sentimento religioso do que naquilo que o homem comum entende como sua religião
— o sistema de doutrinas e promessas que, por um lado, lhe explicam os enigmas deste mundo com
perfeição invejável, e que, por outro, lhe garantem que uma Providência cuidadosa velará por sua
vida e o compensará, numa existência futura, de quaisquer frustrações que tenha experimentado
aqui. O homem comum só pode imaginar essa Providência sob a figura de um pai ilimitadamente
engrandecido. Apenas um ser desse tipo pode compreender as necessidades dos filhos dos homens,
enternecer-se com suas preces e aplacar-se com os sinais de seu remorso. Tudo é tão patentemente
infantil, tão estranho à realidade, que, para qualquer pessoa que manifeste uma atitude amistosa em
relação à humanidade, é penoso pensar que a grande maioria dos mortais nunca será capaz de
superar essa visão da vida. Mais humilhante ainda é descobrir como é vasto o número de pessoas de
hoje que não podem deixar de perceber que essa religião é insustentável e, não obstante isso, tentam
defendê-la, item por item, numa série de lamentáveis atos retrógrados. Gostaríamos de nos mesclar
às fileiras dos crentes, a fim de encontrarmos aqueles filósofos que consideram poder salvar o Deus
da religião, substituindo-o por um princípio impessoal, obscuro e abstrato, e dirigirmos-lhes as
seguintes palavras de advertência: ‘Não tomarás o nome do Senhor teu Deus em vão!’ E, se alguns
dos grandes homens do passado agiram da mesma maneira, de modo nenhum se pode invocar seu
exemplo: sabemos por que foram obrigados a isso.
Retornemos ao homem comum e à sua religião, a única que deveria levar esse nome. A primeira
coisa em que pensamos é na bem conhecida expressão de um de nossos maiores poetas e
pensadores, referindo-se à relação da religião com a arte e a ciência:
Wer Wissenschaft und Kunst besitzt, hat auch Religion; Wer jene beide nicht besitzt, der habe
Religion!
Esses dois versos, por um lado, traçam uma antítese entre a religião e as duas mais altas realizações
do homem, e, por outro, asseveram que, com relação ao seu valor na vida, essas realizações e a
religião podem representar-se ou substituir-se mutuamente. Se também nos dispusermos a privar o
homem comum [que não possui nem ciência nem arte] de sua religião, é claro que não teremos de
nosso lado a autoridade do poeta. Escolheremos um caminho específico para nos aproximarmos
mais de uma justa apreciação de suas palavras. A vida, tal como a encontramos, é árdua demais para
nós; proporciona-nos muitos sofrimentos, decepções e tarefas impossíveis. A fim de suportá-la, não
podemos dispensar as medidas paliativas. ‘Não podemos passar sem construções auxiliares’, diz-nos
Theodor Fontane. Existem talvez três medidas desse tipo: derivativos poderosos, que nos fazem
extrair luz de nossa desgraça; satisfações substitutivas, que a diminuem; e substâncias tóxicas, que
nos tornam insensíveis a ela. Algo desse tipo é indispensável. Voltaire tinha os derivativos em mente
quando terminou Candide com o conselho para cultivarmos nosso próprio jardim, e a atividade
científica constitui também um derivativo dessa espécie. As satisfações substitutivas, tal como as
oferecidas pela arte, são ilusões, em contraste com a realidade; nem por isso, contudo, se revelam
menos eficazes psiquicamente, graças ao papel que a fantasia assumiu na vida mental. As
substâncias tóxicas influenciam nosso corpo e alteram a sua química. Não é simples perceber onde a religião encontra o seu lugar nessa série. Temos de pesquisar mais adiante.
A questão do propósito da vida humana já foi levantada várias vezes; nunca, porém, recebeu resposta
satisfatória e talvez não a admita. Alguns daqueles que a formularam acrescentaram que, se fosse
demonstrado que a vida não tem propósito, esta perderia todo valor para eles. Tal ameaça, porém,
não altera nada. Pelo contrário, faz parecer que temos o direito de descartar a questão, já que ela
parece derivar da presunção humana, da qual muitas outras manifestações já nos são familiares.
Ninguém fala sobre o propósito da vida dos animais, a menos, talvez, que se imagine que ele resida
no fato de os animais se acharem a serviço do homem. Contudo, tampouco essa opinião é
sustentável, de uma vez que existem muitos animais de que o homem nada pode se aproveitar,
exceto descrevê-los, classificá-los e estudá-los; ainda assim, inumeráveis espécies de animais
escaparam inclusive a essa utilização, pois existiram e se extinguiram antes que o homem voltasse
seus olhos para elas. Mais uma vez, só a religião é capaz de resolver a questão do propósito da vida.
Dificilmente incorreremos em erro ao concluirmos que a idéia de a vida possuir um propósito se
forma e desmorona com o sistema religioso.Voltar-nos-emos, portanto, para uma questão menos
ambiciosa, a que se refere àquilo que os próprios homens, por seu comportamento, mostram ser o
propósito e a intenção de suas vidas. O que pedem eles da vida e o que desejam nela realizar? A
resposta mal pode provocar dúvidas. Esforçam-se para obter felicidade; querem ser felizes e assim
permanecer. Essa empresa apresenta dois aspectos: uma meta positiva e uma meta negativa. Por um
lado, visa a uma ausência de sofrimento e de desprazer; por outro, à experiência de intensos
sentimentos de prazer. Em seu sentido mais restrito, a palavra ‘felicidade’ só se relaciona a esses
últimos. Em conformidade a essa dicotomia de objetivos, a atividade do homem se desenvolve em
duas direções, segundo busque realizar — de modo geral ou mesmo exclusivamente — um ou outro
desses objetivos.
Como vemos, o que decide o propósito da vida é simplesmente o programa do princípio do prazer.
Esse princípio domina o funcionamento do aparelho psíquico desde o início. Não pode haver dúvida
sobre sua eficácia, ainda que o seu programa se encontre em desacordo com o mundo inteiro, tanto
com o macrocosmo quanto com o microcosmo. Não há possibilidade alguma de ele ser executado;
todas as normas do universo são-lhe contrárias. Ficamos inclinados a dizer que a intenção de que o
homem seja ‘feliz’ não se acha incluída no plano da ‘Criação’. O que chamamos de felicidade no
sentido mais restrito provém da satisfação (de preferência, repentina) de necessidades represadas
em alto grau, sendo, por sua natureza, possível apenas como uma manifestação episódica. Quando
qualquer situação desejada pelo princípio do prazer se prolonga, ela produz tão-somente um
sentimento de contentamento muito tênue. Somos feitos de modo a só podermos derivar prazer
intenso de um contraste, e muito pouco de um determinado estado de coisas.
Assim, nossas possibilidades de felicidade sempre são restringidas por nossa própria constituição. Já
a infelicidade é muito menos difícil de experimentar. O sofrimento nos ameaça a partir de três
direções: de nosso próprio corpo, condenado à decadência e à dissolução, e que nem mesmo pode
dispensar o sofrimento e a ansiedade como sinais de advertência; do mundo externo, que pode
voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas; e, finalmente, de nossos
relacionamentos com os outros homens. O sofrimento que provém dessa última fonte talvez nos seja
mais penoso do que qualquer outro. Tendemos a encará-lo como uma espécie de acréscimo gratuito,
embora ele não possa ser menos fatidicamente inevitável do que o sofrimento oriundo de outras
fontes.
Não admira que, sob a pressão de todas essas possibilidades de sofrimento, os homens se tenham
acostumado a moderar suas reivindicações de felicidade — tal como, na verdade, o próprio princípio
do prazer, sob a influência do mundo externo, se transformou no mais modesto princípio da
realidade —, que um homem pense ser ele próprio feliz, simplesmente porque escapou à infelicidade
ou sobreviveu ao sofrimento, e que, em geral, a tarefa de evitar o sofrimento coloque a de obter
prazer em segundo plano. A reflexão nos mostra que é possível tentar a realização dessa tarefa
através de caminhos muito diferentes e que todos esses caminhos foram recomendados pelas
diversas escolas de sabedoria secular e postos em prática pelos homens. Uma satisfação irrestrita de
todas as necessidades apresenta-se-nos como o método mais tentador de conduzir nossas vidas; isso,
porém, significa colocar o gozo antes da cautela, acarretando logo o seu próprio castigo. Os outros
métodos, em que a fuga do desprazer constitui o intuito primordial, diferenciam-se de acordo com a
fonte de desprazer para a qual sua atenção está principalmente voltada. Alguns desses métodos são
extremados; outros, moderados; alguns são unilaterais; outros atacam o problema,simultaneamente, em diversos pontos. Contra o sofrimento que pode advir dos relacionamentos
humanos, a defesa mais imediata é o isolamento voluntário, o manter-se à distância das outras
pessoas. A felicidade passível de ser conseguida através desse método é, como vemos, a felicidade da
quietude. Contra o temível mundo externo, só podemos defender-nos por algum tipo de afastamento
dele, se pretendermos solucionar a tarefa por nós mesmos. Há, é verdade, outro caminho, e melhor:
o de tornar-se membro da comunidade humana e, com o auxílio de uma técnica orientada pela
ciência, passar para o ataque à natureza e sujeitá-la à vontade humana. Trabalha-se então com todos
para o bem de todos. Contudo, os métodos mais interessantes de evitar o sofrimento são os que
procuram influenciar o nosso próprio organismo. Em última análise, todo sofrimento nada mais é do
que sensação; só existe na medida em que o sentimos, e só o sentimos como conseqüência de certos
modos pelos quais nosso organismo está regulado.O mais grosseiro, embora também o mais eficaz,
desses métodos de influência é o químico: a intoxicação. Não creio que alguém compreenda
inteiramente o seu mecanismo; é fato, porém, que existem substâncias estranhas, as quais, quando
presentes no sangue ou nos tecidos, provocam em nós, diretamente, sensações prazerosas, alterando,
também, tanto as condições que dirigem nossa sensibilidade, que nos tornamos incapazes de receber
impulsos desagradáveis. Os dois efeitos não só ocorrem de modo simultâneo, como parecem estar
íntima e mutuamente ligados. No entanto, é possível que haja substâncias na química de nossos
próprios corpos que apresentem efeitos semelhante pois conhecemos pelo menos um estado
patológico, a mania, no qual uma condição semelhante à intoxicação surge sem administração de
qualquer droga intoxicante. Além disso, nossa vida psíquica normal apresenta oscilações entre uma
liberação de prazer relativamente fácil e outra comparativamente difícil, paralela à qual ocorre uma
receptividade, diminuída ou aumentada, ao desprazer. É extremamente lamentável que até agora
esse lado tóxico dos processos mentais tenha escapado ao exame científico. O serviço prestado pelos
veículos intoxicantes na luta pela felicidade e no afastamento da desgraça é tão altamente apreciado
como um benefício, que tanto indivíduos quanto povos lhes concederam um lugar permanente na
economia de sua libido. Devemos a tais veículos não só a produção imediata de prazer, mas também
um grau altamente desejado de independência do mundo externo, pois sabe-se que, com o auxílio
desse ‘amortecedor de preocupações’, é possível, em qualquer ocasião, afastar-se da pressão da
realidade e encontrar refúgio num mundo próprio, com melhores condições de sensibilidade. Sabe-
se igualmente que é exatamente essa propriedade dos intoxicantes que determina o seu perigo e a
sua capacidade de causar danos. São responsáveis, em certas circunstâncias, pelo desperdício de uma
grande quota de energia que poderia ser empregada para o aperfeiçoamento do destino humano.
A complicada estrutura de nosso aparelho mental admite, contudo, um grande número de outras
influências. Assim como a satisfação do instinto equivale para nós à felicidade, assim também um
grave sofrimento surge em nós, caso o mundo externo nos deixe definhar, caso se recuse a satisfazer
nossas necessidades. Podemos, portanto, ter esperanças de nos libertarmos de uma parte de nossos
sofrimentos, agindo sobre os impulsos instintivos. Esse tipo de defesa contra o sofrimento se aplica
mais ao aparelho sensorial; ele procura dominar as fontes internas de nossas necessidades. A forma
extrema disso é ocasionada pelo aniquilamento dos instintos, tal como prescrito pela sabedoria do
mundo peculiar ao Oriente e praticada pelo ioga. Caso obtenha êxito, o indivíduo, é verdade,
abandona também todas as outras atividades: sacrifica a sua vida e, por outra via, mais uma vez
atinge apenas a felicidade da quietude. Seguimos o mesmo caminho quando os nossos objetivos são
menos extremados e simplesmente tentamos controlar nossa vida instintiva. Nesse caso, os
elementos controladores são os agentes psíquicos superiores, que se sujeitaram ao princípio da
realidade. Aqui, a meta da satisfação não é, de modo algum, abandonada, mas garante-se uma certa
proteção contra o sofrimento no sentido de que a não-satisfação não é tão penosamente sentida no
caso dos instintos mantidos sob dependência como no caso dos instintos desinibidos. Contra isso,
existe uma inegável diminuição nas potencialidades de satisfação. O sentimento de felicidade
derivado da satisfação de um selvagem impulso instintivo não domado pelo ego é
incomparavelmente mais intenso do que o derivado da satisfação de um instinto que já foi domado.
A irresistibilidade dos instintos perversos e, talvez, a atração geral pelas coisas proibidas encontram
aqui uma explicação econômica.
Outra técnica para afastar o sofrimento reside no emprego dos deslocamentos de libido que nosso
aparelho mental possibilita e através dos quais sua função ganha tanta flexibilidade. A tarefa aqui
consiste em reorientar os objetivos instintivos de maneira que eludam a frustração do mundo
externo. Para isso, ela conta com a assistência da sublimação dos instintos. Obtém-se o máximo
quando se consegue intensificar suficientemente a produção de prazer a partir das fontes do trabalho
psíquico e intelectual. Quando isso acontece, o destino pouco pode fazer contra nós. Uma satisfação desse tipo, como, por exemplo, a alegria do artista em criar, em dar corpo às suas fantasias, ou a do
cientista em solucionar problemas ou descobrir verdades, possui uma qualidade especial que, sem
dúvida, um dia poderemos caracterizar em termos metapsicológicos. Atualmente, apenas de forma
figurada podemos dizer que tais satisfações parecem ‘mais refinadas e mais altas’. Contudo, sua
intensidade se revela muito tênue quando comparada com a que se origina da satisfação de impulsos
instintivos grosseiros e primários; ela não convulsiona o nosso ser físico. E o ponto fraco desse
método reside em não ser geralmente aplicável, de uma vez que só é acessível a poucas pessoas.
Pressupõe a posse de dotes e disposições especiais que, para qualquer fim prático, estão longe de
serem comuns. E mesmo para os poucos que os possuem, o método não proporciona uma proteção
completa contra o sofrimento. Não cria uma armadura impenetrável contra as investidas do destino
e habitualmente falha quando a fonte do sofrimento é o próprio corpo da pessoa.Enquanto esse
procedimento já mostra claramente uma intenção de nos tornar independentes do mundo externo
pela busca da satisfação em processos psíquicos internos, o procedimento seguinte apresenta esses
aspectos de modo ainda mais intenso. Nele, a distensão do vínculo com a realidade vai mais longe; a
satisfação é obtida através de ilusões, reconhecidas como tais, sem que se verifique permissão para
que a discrepância entre elas e a realidade interfira na sua fruição. A região onde essas ilusões se
originam é a vida da imaginação; na época em que o desenvolvimento do senso de realidade se
efetuou, essa região foi expressamente isentada das exigências do teste de realidade e posta de lado a
fim de realizar desejos difíceis de serem levados a termo. À frente das satisfações obtidas através da
fantasia ergue-se a fruição das obras de arte, fruição que, por intermédio do artista, é tornada
acessível inclusive àqueles que não são criadores. As pessoas receptivas à influência da arte não lhe
podem atribuir um valor alto demais como fonte de prazer e consolação na vida. Não obstante, a
suave narcose a que a arte nos induz, não faz mais do que ocasionar um afastamento passageiro das
pressões das necessidades vitais, não sendo suficientemente forte para nos levar a esquecer a aflição
real.
Um outro processo opera de modo mais energético e completo. Considera a realidade como a única
inimiga e a fonte de todo sofrimento, com a qual é impossível viver, de maneira que, se quisermos ser
de algum modo felizes, temos de romper todas as relações com ela. O eremita rejeita o mundo e não
quer saber de tratar com ele. Pode-se, porém, fazer mais do que isso; pode-se tentar recriar o mundo,
em seu lugar construir um outro mundo, no qual os seus aspectos mais insuportáveis sejam
eliminados e substituídos por outros mais adequados a nossos próprios desejos. Mas quem quer que,
numa atitude de desafio desesperado, se lance por este caminho em busca da felicidade, geralmente
não chega a nada. A realidade é demasiado forte para ele. Torna-se um louco; alguém que, a maioria
das vezes, não encontra ninguém para ajudá-lo a tornar real o seu delírio. Afirma-se, contudo, que
cada um de nós se comporta, sob determinado aspecto, como um paranóico, corrige algum aspecto
do mundo que lhe é insuportável pela elaboração de um desejo e introduz esse delírio na realidade.
Concede-se especial importância ao caso em que a tentativa de obter uma certeza de felicidade e uma
proteção contra o sofrimento através de um remodelamento delirante da realidade, é efetuada em
comum por um considerável número de pessoas. As religiões da humanidade devem ser classificadas
entre os delírios de massa desse tipo. É desnecessário dizer que todo aquele que partilha um delírio
jamais o reconhece como tal.
Não pretendo ter feito uma enumeração completa dos métodos pelos quais os homens se esforçam
para conseguir a felicidade e manter afastado o sofrimento; sei também que o material poderia ter
sido diferentemente disposto. Ainda não mencionei um processo — não por esquecimento, mas
porque nos interessará mais tarde, em relação a outro assunto. E como se poderia esquecer, entre
todas as outras, a técnica da arte de viver? Ela se faz visível por uma notável combinação de aspectos
característicos. Naturalmente, visa também a tornar o indivíduo independente do Destino (como é
melhor chamá-lo) e, para esse fim, localiza a satisfação em processos mentais internos, utilizando, ao
proceder assim, a deslocabilidade da libido que já mencionamos,ver [[1]]. Mas ela não volta as costas
ao mundo externo; pelo contrário, prende-se aos objetos pertencentes a esse mundo e obtém
felicidade de um relacionamento emocional com eles. Tampouco se contenta em visar a uma fuga do
desprazer, uma meta, poderíamos dizer, de cansada resignação; passa por ela sem lhe dar atenção e
se aferra ao esforço original e apaixonado em vista de uma consecução completa da felicidade. Na
realidade, talvez se aproxime mais dessa meta do que qualquer outro método. Evidentemente, estou
falando da modalidade de vida que faz do amor o centro de tudo, que busca toda satisfação em amar
e ser amado. Uma atitude psíquica desse tipo chega de modo bastante natural a todos nós; uma das
formas através da qual o amor se manifesta — o amor sexual — nos proporcionou nossa mais intensa
experiência de uma transbordante sensação de prazer, fornecendo-nos assim um modelo para nossa busca da felicidade. Há, porventura, algo mais natural do que persistirmos na busca da felicidade do
modo como a encontramos pela primeira vez? O lado fraco dessa técnica de viver é de fácil
percepção, pois, do contrário, nenhum ser humano pensaria em abandonar esse caminho da
felicidade por qualquer outro. É que nunca nos achamos tão indefesos contra o sofrimento como
quando amamos, nunca tão desamparadamente infelizes como quando perdemos o nosso objeto
amado ou o seu amor. Isso, porém, não liquida com a técnica de viver baseada no valor do amor
como um meio de obter felicidade. Há muito mais a ser dito a respeito. [Ver [1]].
Daqui podemos passar à consideração do interessante caso em que a felicidade na vida é
predominantemente buscada na fruição da beleza, onde quer que esta se apresente a nossos sentidos
e a nosso julgamento — a beleza das formas e a dos gestos humanos, a dos objetos naturais e das
paisagens e a das criações artísticas e mesmo científicas. A atitude estética em relação ao objetivo da
vida oferece muito pouca proteção contra a ameaça do sofrimento, embora possa compensá-lo
bastante. A fruição da beleza dispõe de uma qualidade peculiar de sentimento, tenuemente
intoxicante. A beleza não conta com um emprego evidente; tampouco existe claramente qualquer
necessidade cultural sua. Apesar disso, a civilização não pode dispensá-la. Embora a ciência da
estética investigue as condições sob as quais as coisas são sentidas como belas, tem sido incapaz de
fornecer qualquer explicação a respeito da natureza e da origem da beleza, e, tal como geralmente
acontece, esse insucesso vem sendo escamoteado sob um dilúvio de palavras tão pomposas quanto
ocas. A psicanálise, infelizmente, também pouco encontrou a dizer sobre a beleza. O que parece certo
é sua derivação do campo do sentimento sexual. O amor da beleza parece um exemplo perfeito de
um impulso inibido em sua finalidade.’Beleza’ e ‘atração’ são, originalmente, atributos do objeto
sexual. Vale a pena observar que os próprios órgãos genitais, cuja visão é sempre excitante,
dificilmente são julgados belos; a qualidade da beleza, ao contrário, parece ligar-se a certos
caracteres sexuais secundários.
A despeito da deficiência [de minha enumeração, ver ([1])], aventurar-me-ei a algumas observações à
guisa de conclusão para nossa investigação. O programa de tornar-se feliz, que o princípio do prazer
nos impõe,ver [[1]],não pode ser realizado; contudo, não devemos — na verdade, não podemos —
abandonar nossos esforços de aproximá-lo da consecução, de uma maneira ou de outra. Caminhos
muito diferentes podem ser tomados nessa direção, e podemos conceder prioridades quer ao aspecto
positivo do objetivo, obter prazer, quer ao negativo, evitar o desprazer. Nenhum desses caminhos
nos leva a tudo o que desejamos. A felicidade, no reduzido sentido em que a reconhecemos como
possível, constitui um problema da economia da libido do indivíduo. Não existe uma regra de ouro
que se aplique a todos: todo homem tem de descobrir por si mesmo de que modo específico ele pode
ser salvo. Todos os tipos de diferentes fatores operarão a fim de dirigir sua escolha. É uma questão de
quanta satisfação real ele pode esperar obter do mundo externo, de até onde é levado para tornar-se
independente dele, e, finalmente, de quanta força sente à sua disposição para alterar o mundo, a fim
de adaptá-lo a seus desejos. Nisso, sua constituição psíquica desempenhará papel decisivo,
independentemente das circunstâncias externas. O homem predominantemente erótico dará
preferência aos seus relacionamentos emocionais com outras pessoas; o narcisista que tende a ser
auto-suficiente, buscará suas satisfações principais em seus processos mentais internos; o homem de
ação nunca abandonará o mundo externo, onde pode testar sua força. Quanto ao segundo desses
tipos, a natureza de seus talentos e a parcela de sublimação instintiva a ele aberta decidirão onde
localizará os seus interesses. Qualquer escolha levada a um extremo condena o indivíduo a ser
exposto a perigos, que surgem caso uma técnica de viver, escolhida como exclusiva, se mostre
inadequada. Assim como o negociante cauteloso evita empregar todo seu capital num só negócio,
assim também, talvez, a sabedoria popular nos aconselhe a não buscar a totalidade de nossa
satisfação numa só aspiração. Seu êxito jamais é certo, pois depende da convergência de muitos
fatores, talvez mais do que qualquer outro, da capacidade da constituição psíquica em adaptar sua
função ao meio ambiente e então explorar esse ambiente em vista de obter um rendimento de prazer.
Uma pessoa nascida com uma constituição instintiva especialmente desfavorável e que não tenha
experimentado corretamente a transformação e a redisposição de seus componentes libidinais
indispensáveis às realizações posteriores, achará difícil obter felicidade em sua situação externa,em
especial se vier a se defrontar com tarefas de certa dificuldade. Como uma última técnica de vida,
pelo que menos lhe trará satisfações substitutivas, é-lhe oferecida a fuga para a enfermidade
neurótica, fuga que geralmente efetua quando ainda é jovem. O homem que, em anos posteriores, vê
sua busca da felicidade resultar em nada ainda pode encontrar consolo no prazer oriundo da
intoxicação crônica, ou então se empenhar na desesperada tentativa de rebelião que se observa na psicose.
A religião restringe esse jogo de escolha e adaptação, desde que impõe igualmente a todos o seu
próprio caminho para a aquisição da felicidade e da proteção contra o sofrimento. Sua técnica
consiste em depreciar o valor da vida e deformar o quadro do mundo real de maneira delirante —
maneira que pressupõe uma intimidação da inteligência. A esse preço, por fixá-las à força num
estado de infantilismo psicológico e por arrastá-las a um delírio de massa, a religião consegue poupar
a muitas pessoas uma neurose individual. Dificilmente, porém, algo mais. Existem, como dissemos,
muitos caminhos que podem levar à felicidade passível de ser atingida pelos homens, mas nenhum
que o faça com toda segurança. Mesmo a religião não consegue manter sua promessa. Se, finalmente,
o crente se vê obrigado a falar dos ‘desígnios inescrutáveis’ de Deus, está admitindo que tudo que lhe
sobrou, como último consolo e fonte de prazer possíveis em seu sofrimento, foi uma submissão
incondiciona
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O MAL-ESTAR NA CULTURA
RandomO processo de desenvolvimento cultural necessário para que as pessoas possam viver em sociedade. A conclusão é a de que não só a civilização, mas a própria cultura humana implicam uma diminuição na felicidade dos indivíduos, tendo como subproduto um...