IV

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A tarefa parece imensa e, frente a ela, é natural que se sinta falta de confiança. Mas aqui estão as
conjecturas que pude efetuar.
Depois que o homem primevo descobriu que estava literalmente em suas mãos melhorar a sua sorte
na Terra através do trabalho, não lhe pode ter sido indiferente que outro homem trabalhasse com ele
ou contra ele. Esse outro homem adquiriu para ele o valor de um companheiro de trabalho, com
quem era útil conviver. Em época ainda anterior, em sua pré-história simiesca, o homem adotara o
hábito de formar famílias, e provavelmente os membros de sua família foram os seus primeiros
auxiliares. Pode-se supor que a formação de famílias deveu-se ao fato de ter ocorrido um momento
em que a necessidade de satisfação genital não apareceu mais como um hóspede que surge
repentinamente e do qual, após a partida, não mais se ouve falar por longo tempo, mas que, pelo
contrário, se alojou como um inquilino permanente. Quando isso aconteceu, o macho adquiriu um
motivo para conservar a fêmea junto de si, ou, em termos mais gerais, seus objetos sexuais, a seu
lado, ao passo que a fêmea, não querendo separar-se de seus rebentos indefesos, viu-se obrigada, no
interesse deles, a permanecer com o macho mais forte. Na família primitiva, falta ainda uma
característica essencial da civilização. A vontade arbitrária de seu chefe, o pai, era irrestrita. Em
Totem e Tabu [1912-13], tentei demonstrar o caminho que vai dessa família à etapa subseqüente, a
da vida comunal, sob a forma de grupos de irmãos. Sobrepujando o pai, os filhos descobriram que
uma combinação pode ser mais forte do que um indivíduo isolado. A cultura totêmica baseia-se nas
restrições que os filhos tiveram de impor-se mutuamente, a fim de conservar esse novo estado de
coisas. Os preceitos do tabu constituíram o primeiro ‘direito’ ou ‘lei’. A vida comunitária dos seres
humanos teve, portanto, um fundamento duplo: a compulsão para o trabalho, criada pela
necessidade externa, e o poder do amor, que fez o homem relutar em privar-se de seu objeto sexual
— a mulher — e a mulher, em privar-se daquela parte de si própria que dela fora separada — seu filho. Eros e Ananke [Amor e Necessidade] se tornaram os pais também da civilização humana. O
primeiro resultado da civilização foi que mesmo um número bastante grande de pessoas podia agora
viver reunido numa comunidade. E, como esses dois grandes poderes cooperaram para isso, poder-
se-ia esperar que o desenvolvimento ulterior da civilização progredisse sem percalços no sentido de
um controle ainda melhor sobre o mundo externo e no de uma ampliação do número de
pessoasincluídas na comunidade. É difícil compreender como essa civilização pode agir sobre os seus
participantes de outro modo senão o de torná-los felizes.
Antes de continuarmos a indagar sobre de que direção uma interferência poderia surgir, o
reconhecimento do amor como um dos fundamentos da civilização pode servir de pretexto para uma
digressão que nos capacitará a preencher uma lacuna por nós deixada num exame anterior,ver [[1]].
Mencionáramos então que a descoberta feita pelo homem de que o amor sexual (genital) lhe
proporcionava as mais intensas experiências de satisfação, fornecendo-lhe, na realidade, o protótipo
de toda felicidade, deve ter-lhe sugerido que continuasse a buscar a satisfação da felicidade em sua
vida seguindo o caminho das relações sexuais e que tornasse o erotismo genital o ponto central dessa
mesma vida. Prosseguimos dizendo que, fazendo assim, ele se tornou dependente, de uma forma
muito perigosa, de uma parte do mundo externo, isto é, de seu objeto amoroso escolhido, expondo-
se a um sofrimento extremo, caso fosse rejeitado por esse objeto ou o perdesse através da
infidelidade ou da morte. Por essa razão, os sábios de todas as épocas nos advertiram enfaticamente
contra tal modo de vida; apesar disso, ele não perdeu seu atrativo para grande número de pessoas.
Apesar de tudo, uma pequena minoria de pessoas acha-se capacitada, por sua constituição, a
encontrar felicidade no caminho do amor. Fazem-se necessárias, porém, alterações mentais de
grande alcance na função do amor antes que isso possa acontecer. Essas pessoas se tornam
independentes da aquiescência de seu objeto, deslocando o que mais valorizam do ser amado para o
amar; protegem-se contra a perda do objeto, voltando seu amor, não para objetos isolados, mas para
todos os homens, e, do mesmo modo, evitam as incertezas e as decepções do amor genital,
desviando-se de seus objetivos sexuais e transformando o instinto num impulso com uma finalidade
inibida. Ocasionam assim, nelas mesmas, um estado de sentimento imparcialmente suspenso,
constante e afetuoso, que tem pouca semelhança externa com as tempestuosas agitações do amor
genital, do qual, não obstante, se deriva. Talvez São Francisco de Assis tenha sido quem mais longe
foi na utilização do amor para beneficiar um sentimento interno de felicidade. Além disso, aquilo que
identificamos como sendo uma das técnicas para realizar o princípio do prazer foi amiúde vinculado
à religião; essa vinculação pode residir nas remotas regiões em que a distinção entre o ego e os
objetos, ou entre os próprios objetos, é desprezada. De acordo com determinado ponto de vista ético,
cuja motivação mais profunda se nos tornará clara dentro em pouco, essa disposição para o amor
universal pela humanidade e pelo mundo representa o ponto mais alto que o homem pode alcançar.
Mesmo nessa etapapreliminar da discussão, gostaria de apresentar minhas duas principais objeções
a essa opinião. Um amor que não discrimina me parece privado de uma parte de seu próprio valor,
por fazer uma injustiça a seu objeto, e, em segundo lugar, nem todos os homens são dignos de amor.
O amor que fundou a família continua a operar na civilização, tanto em sua forma original, em que
não renuncia à satisfação sexual direta, quanto em sua forma modificada, como afeição inibida em
sua finalidade. Em cada uma delas, continua a realizar sua função de reunir consideráveis
quantidades de pessoas, de um modo mais intensivo do que o que pode ser efetuado através do
interesse pelo trabalho em comum. A maneira descuidada com que a linguagem utiliza a palavra
‘amor’ conta com uma justificação genética. As pessoas dão o nome de ‘amor’ ao relacionamento
entre um homem e uma mulher cujas necessidades genitais os levaram a fundar uma família;
também dão esse nome aos sentimentos positivos existentes entre pais e filhos, e entre os irmãos e as
irmãs de uma família, embora nós sejamos obrigados a descrever isso como ‘amor inibido em sua
finalidade’ ou ‘afeição’. O amor com uma finalidade inibida foi de fato, originalmente, amor
plenamente sensual, e ainda o é no inconsciente do homem. Ambos — o amor plenamente sensual e
o amor inibido em sua finalidade — estendem-se exteriormente à família e criam novos vínculos com
pessoas anteriormente estranhas. O amor genital conduz à formação de novas famílias, e o amor
inibido em sua finalidade, a ‘amizades’ que se tornam valiosas, de um ponto de vista cultural, por
fugirem a algumas das limitações do amor genital, como, por exemplo, à sua exclusividade. No
decurso do desenvolvimento, porém, a relação do amor com a civilização perde sua falta de
ambigüidade. Por um lado, o amor se coloca em oposição aos interesses da civilização; por outro,
esta ameaça o amor com restrições substanciais. Essa incompatibilidade entre amor e civilização parece inevitável e sua razão não é imediatamente
reconhecível. Expressa-se a princípio como um conflito entre a família e a comunidade maior a que o
indivíduo pertence. Já percebemos que um dos principais esforços da civilização é reunir as pessoas
em grandes unidades. Mas a família não abandona o indivíduo. Quanto mais estreitamente os
membros de uma família se achem mutuamente ligados, com mais freqüência tendem a se
apartarem dos outros e mais difícil lhes é ingressar no círculo mais amplo da cidade. O modo de vida
em comum que é filogeneticamente o mais antigo, e o único que existe na infância, não se deixará
sobrepujar pelo modo cultural de vida adquirido depois. Separar-se da família torna-se umatarefa
com que todo jovem se defronta, e a sociedade freqüentemente o auxilia na solução disso através dos
ritos de puberdade e de iniciação. Ficamos com a impressão de que se trata de dificuldades inerentes
a todo desenvolvimento psíquico — e, em verdade, no fundo, a todo desenvolvimento orgânico.
Além do mais, as mulheres logo se opõem à civilização e demonstram sua influência retardante e
coibidora — as mesmas mulheres que, de início, estabeleceram os fundamentos da civilização pelas
reivindicações de seu amor. As mulheres representam os interesses da família e da vida sexual. O
trabalho de civilização tornou-se cada vez mais um assunto masculino, confrontando os homens com
tarefas cada vez mais difíceis e compelindo-os a executarem sublimações instintivas de que as
mulheres são pouco capazes. Já que o homem não dispõe de quantidades ilimitadas de energia
psíquica, tem de realizar suas tarefas efetuando uma distribuição conveniente de sua libido. Aquilo
que emprega para finalidades culturais, em grande parte o extrai das mulheres e da vida sexual. Sua
constante associação com outros homens e a dependência de seus relacionamentos com eles o
alienam inclusive de seus deveres de marido e de pai. Dessa maneira, a mulher se descobre relegada
a segundo plano pelas exigências da civilização e adota uma atitude hostil para com ela.
A tendência por parte da civilização em restringir a vida sexual não é menos clara do que sua outra
tendência em ampliar a unidade cultural. Sua primeira fase, totêmica, já traz com ela a proibição de
uma escolha incestuosa de objeto, o que constitui, talvez, a mutilação mais drástica que a vida erótica
do homem em qualquer época já experimentou. Os tabus, as leis e os costumes impõem novas
restrições, que influenciam tanto homens quanto mulheres. Nem todas as civilizações vão
igualmente longe nisso, e a estrutura econômica da sociedade também influencia a quantidade de
liberdade sexual remanescente. Aqui, como já sabemos, a civilização está obedecendo às leis da
necessidade econômica, visto que uma grande quantidade da energia psíquica que ela utiliza para
seus próprios fins tem de ser retirada da sexualidade. Com relação a isso, a civilização se comporta
diante da sexualidade da mesma forma que um povo, ou uma de suas camadas sociais, procede
diante de outros que estão submetidos à sua exploração. O temor a uma revolta por parte dos
elementos oprimidos a conduz à utilização de medidas de precaução mais estritas. Um ponto
culminante nesse desenvolvimento foi atingido em nossa civilização ocidental européia. Uma
comunidade cultural acha-se, do ponto de vista psicológico, perfeitamente justificada em começar
por proscrever as manifestações da vida sexual das crianças, pois não haveria perspectiva de
submeter os apetites sexuais dos adultos, se os fundamentospara isso não tivessem sido lançados na
infância. Contudo, uma comunidade desse tipo de modo algum pode ser justificada se vai até o ponto
de realmente repudiar essas manifestações facilmente demonstráveis e, na verdade, notáveis.
Quanto ao indivíduo sexualmente maduro, a escolha de um objeto restringe-se ao sexo oposto,
estando as satisfações extragenitais, em sua maioria, proibidas como perversão. A exigência,
demonstrada nessas proibições, de que haja um tipo único de vida sexual para todos, não leva em
consideração as dessemelhanças, inatas ou adquiridas, na constituição sexual dos seres humanos;
cerceia, em bom número deles, o gozo sexual, tornando-se assim fonte de grave injustiça. O
resultado de tais medidas restritivas poderia ser que, nas pessoas normais — que não se acham
impedidas por sua constituição —, a totalidade dos seus interesses sexuais fluísse, sem perdas, para
os canais que são deixados abertos. No entanto, o próprio amor genital heterossexual, que
permaneceu isento de proscrição, é restringido por outras limitações, apresentadas sob a forma da
insistência na legitimidade e na monogamia. A civilização atual deixa claro que só permite os
relacionamentos sexuais na base de um vínculo único e indissolúvel entre um só homem e uma só
mulher, e que não é de seu agrado a sexualidade como fonte de prazer por si própria, só se achando
preparada para tolerá-la porque, até o presente, para ela não existe substituto como meio de
propagação da raça humana.
Naturalmente, isso configura um quadro extremado. Todos sabem que ele se mostrou inxeqüível,
mesmo por períodos muito breves. Apenas os fracos se submeteram a uma usurpação tão ampla de
sua liberdade sexual, e as naturezas mais fortes só o fizeram mediante uma condição compensatória, que será posteriormente mencionada. A sociedade civilizada viu-se obrigada a silenciar sobre muitas
transgressões que, segundo os seus próprios princípios, deveria ter punido. Mas, por um outro lado,
não devemos errar, supondo que, por não alcançar todos os seus objetivos, uma atitude desse tipo
por parte da sociedade seja inteiramente inócua. A vida sexual do homem civilizado encontra-se, não
obstante, severamente prejudicada; dá, às vezes, a impressão de estar em processo de involução
enquanto função, tal como parece acontecer com nossos dentes e cabelos. Provavelmente, justifica-se
supor que sua importância enquanto fonte de sentimentos de felicidade e, portanto, na realização de
nosso objetivo na vida, diminuiu sensivelmente. Às vezes, somos levados a pensar que nãose trata
apenas da pressão da civilização, mas de algo da natureza da própria função que nos nega satisfação
completa e nos incita a outros caminhos. Isso pode estar errado; é difícil decidir.

O MAL-ESTAR NA CULTURAOnde histórias criam vida. Descubra agora