Até agora, nossa investigação sobre a felicidade não nos ensinou quase nada que já não pertença ao
conhecimento comum. E, mesmo que passemos dela para o problema de saber por que é tão difícil
para o homem ser feliz, parece que não há maior perspectiva de aprender algo novo. Já demos a
resposta,ver [[1]] pela indicação das três fontes de que nosso sofrimento provém: o poder superior da
natureza, a fragilidade de nossos próprios corpos e a inadequação das regras que procuram ajustar
os relacionamentos mútuos dos seres humanos na família, no Estado e na sociedade. Quanto às duas
primeiras fontes, nosso julgamento não pode hesitar muito. Ele nos força a reconhecer essas fontes
de sofrimento e a nos submeter ao inevitável. Nunca dominaremos completamente a natureza, e o
nosso organismo corporal, ele mesmo parte dessa natureza, permanecerá sempre como uma
estrutura passageira, com limitada capacidade de adaptação e realização. Esse reconhecimento não
possui um efeito paralisador. Pelo contrário, aponta a direção para a nossa atividade. Se não
podemos afastar todo sofrimento, podemos afastar um pouco dele e mitigar outro tanto: a
experiência de muitos milhares de anos nos convenceu disso. Quanto à terceira fonte, a fonte social
de sofrimento, nossa atitude é diferente. Não a admitimos de modo algum; não podemos perceber
por que os regulamentos estabelecidos por nós mesmos não representam, ao contrário, proteção e
benefício para cada um de nós. Contudo, quando consideramos o quanto fomos malsucedidos
exatamente nesse campo de prevenção do sofrimento, surge em nós a suspeita de que também aqui é
possível jazer, por trás desse fato, uma parcela de natureza inconquistável — dessa vez, uma parcela
de nossa própria constituição psíquica.
Quando começamos a considerar essa possibilidade, deparamo-nos com um argumento tão
espantoso, que temos de nos demorar nele. Esse argumento sustenta que o que chamamos de nossa
civilização é em grande parte responsável por nossa desgraça e que seríamos muito mais felizes se a
abandonássemos e retornássemos às condições primitivas. Chamo esse argumento de espantoso
porque, seja qual for a maneira por que possamos definir o conceito de civilização, constitui fato
incontroverso que todas as coisas que buscamos a fim de nos protegermos contra as ameaças
oriundas das fontes de sofrimento, fazem parte dessa mesma civilização.
Como foi que tantas pessoas vieram a assumir essa estranha atitude de hostilidade para com a
civilização? Acredito que seu fundamento consistiu numa longa e duradoura insatisfação com o
estado de civilização então existente e que, nessa base, se construiu uma condenação dela,
ocasionada por certos acontecimentos históricos específicos. Penso saber quais foram a última e a
penúltima dessas ocasiões. Não sou suficientemente erudito para fazer remontar a origem de sua
cadeia o mais distante possível na história da espécie humana, mas um fator desse tipo, hostil à
civilização, já devia estar em ação na vitória do cristianismo sobre as religiões pagãs, de uma vez que
se achava intimamente relacionado à baixa estima dada à vida terrena pela doutrina cristã. A
penúltima dessas ocasiões se instaurou quando o progresso das viagens de descobrimento conduziu
ao contacto com povos e raças primitivos. Em conseqüência de uma observação insuficiente e de
uma visão equivocada de seus hábitos e costumes, eles apareceram aos europeus como se levassem
uma vida simples e feliz, com poucas necessidades, um tipo de vida inatingível por seus visitantes
com sua civilização superior. A experiência posterior corrigiu alguns desses julgamentos. Em muitos
casos, os observadores haviam erroneamente atribuído à ausência de exigências culturais
complicadas o que de fato era devido à generosidade da natureza e à facilidade com que as principais necessidades humanas eram satisfeitas. A última ocasião nos é especialmente familiar. Surgiu
quando as pessoas tomaram conhecimento do mecanismo das neuroses, que ameaçam solapar a
pequena parcela de felicidade desfrutada pelos homens civilizados. Descobriu-se que uma pessoa se
torna neurótica porque não pode tolerar a frustração que a sociedade lhe impõe, a serviço de seus
ideais culturais, inferindo-se disso que a abolição ou redução dessas exigências resultaria num
retorno a possibilidades de felicidade.
Existe ainda um fator adicional de desapontamento. Durante as últimas gerações, a humanidade
efetuou um progresso extraordinário nas ciências naturais e em sua aplicação técnica, estabelecendo
seu controle sobre a natureza de uma maneira jamais imaginada. As etapas isoladas desse progresso
são do conhecimento comum, sendo desnecessário enumerá-las. Os homens se orgulham de suas
realizações e têm todo direito de se orgulharem. Contudo, parecem ter observado que o poder
recentemente adquirido sobre o espaço e o tempo, a subjugação das forças da natureza, consecução
de um anseio que remonta a milhares de anos, não aumentou a quantidade de satisfação prazerosa
que poderiam esperar da vida e não os tornou mais felizes. Reconhecendo esse fato, devemos
contentar-nos em concluir que o poder sobre a natureza não constitui a única precondição da
felicidade humana, assim como não é o único objetivo do esforço cultural. Disso não devemos inferir
que o progresso técnico não tenha valor para a economia de nossa felicidade. Gostaríamos de
perguntar: não existe, então, nenhum ganho no prazer, nenhum aumento inequívoco no meu
sentimento de felicidade, se posso, tantas vezes quantas me agrade, escutar a voz de um filho meu
que está morando a milhares de quilômetros de distância, ou saber, no tempo mais breve possível
depois de um amigo ter atingido seu destino, que ele concluiu incólume a longa e difícil viagem? Não
significa nada que a medicina tenha conseguido não só reduzir enormemente a mortalidade infantil e
o perigo de infecção para as mulheres no parto, como também, na verdade, prolongar
consideravelmente a vida média do homem civilizado? Há uma longa lista que poderia ser
acrescentada a esse tipo de benefícios, que devemos à tão desprezada era dos progressos científicos e
técnicos. Aqui, porém, a voz da crítica pessimista se faz ouvir e nos adverte que a maioria dessas
satisfações segue o modelo do ‘prazer barato’ louvado pela anedota: o prazer obtido ao se colocar a
perna nua para fora das roupas de cama numa fria noite de inverno e recolhê-la novamente. Se não
houvesse ferrovias para abolir as distâncias, meu filho jamais teria deixado sua cidade natal e eu não
precisaria de telefone para ouvir sua voz; se as viagens marítimas transoceânicas não tivessem sido
introduzidas, meu amigo não teria partido em sua viagem por mar e eu não precisaria de um
telegrama para aliviar minha ansiedade a seu respeito. Em que consiste a vantagem de reduzir a
mortalidade infantil, se é precisamente essa redução que nos impõe a maior coerção na geração de
filhos, de tal maneira que, considerando tudo, não criamos mais crianças do que nos dias anteriores
ao reino da higiene, ao passo que, ao mesmo tempo, criamos condições difíceis para nossa vida
sexual no casamento e provavelmente trabalhamos contra os efeitos benéficos da seleção natural?
Enfim, de que nos vale uma vida longa se ela se revela difícil e estéril em alegrias, e tão cheia de
desgraças que só a morte é por nós recebida como uma libertação?
Parece certo que não nos sentimos confortáveis na civilização atual, mas é muito difícil formar uma
opinião sobre se, e em que grau, os homens de épocas anteriores se sentiram mais felizes, e sobre o
papel que suas condições culturais desempenharam nessa questão. Sempre tendemos a considerar
objetivamente a aflição das pessoas — isto é, nos colocarmos, com nossas próprias necessidades e
sensibilidades, nas condições delas, e então examinar quais as ocasiões que nelas encontraríamos
para experimentar felicidade ou infelicidade. Esse método de examinar as coisas, que parece objetivo
por ignorar as variações na sensibilidade subjetiva, é, naturalmente, o mais subjetivo possível, de
uma vez que coloca nossos próprios estados mentais no lugar de quaisquer outros, por mais
desconhecidos que estes possam ser. A felicidade, contudo, é algo essencialmente subjetivo. Por mais
que nos retraiamos com horror de certas situações — a de um escravo de galé na Antiguidade, a de
um camponês durante a Guerra dos Trinta Anos, a de uma vítima da Inquisição, a de um judeu à
espera de um pogrom — para nós, sem embargo, é impossível nos colocarmos no lugar dessas
pessoas — adivinhar as modificações que uma obtusidade original da mente, um processo gradual de
embrutecimento, a cessação das esperanças e métodos de narcotização mais grosseiros ou mais
refinados produziram sobre a receptividade delas às sensações de prazer e desprazer. Além disso, no
caso da possibilidade mais extrema de sofrimento, dispositivos mentais protetores e especiais são
postos em funcionamento. Parece-me improdutivo levar adiante esse aspecto do problema.
Já é tempo de voltarmos nossa atenção para a natureza dessa civilização, sobre cujo valor como
veículo de felicidade foram lançadas dúvidas. Não procuraremos uma fórmula que exprima essa natureza em poucas palavras, enquanto não tivermos aprendido alguma coisa através de seu exame.
Mais uma vez, portanto, nos contentaremos em dizer que a palavra ‘civilização’ descreve a soma
integral das realizações e regulamentos que distinguem nossas vidas das de nossos antepassados
animais, e que servem a dois intuitos, a saber: o de proteger os homens contra a natureza e o de
ajustar os seus relacionamentos mútuos. A fim de aprendermos mais, reuniremos os diversos
aspectos singulares da civilização, tal como se apresentam nas comunidades humanas. Agindo desse
modo, não hesitaremos em nos deixar guiar pelos hábitos lingüísticos ou, como são também
chamados, sentimento lingüístico, na convicção de que assim estamos fazendo justiça e
discernimentos internos que ainda desafiam sua expressão em termos abstratos.
A primeira etapa é fácil. Reconhecemos como culturais todas as atividades e recursos úteis aos
homens, por lhes tornarem a terra proveitosa, por protegerem-nos contra a violência das forças da
natureza, e assim por diante. Em relação a esse aspecto de civilização, dificilmente pode haver
qualquer dúvida. Se remontarmos suficientemente às origens, descobriremos que os primeiros atos
de civilização foram a utilização de instrumentos, a obtenção do controle sobre o fogo e a construção
de habitações.Entre estes, o controle sobre o fogo sobressai como uma realização extraordinária e
sem precedentes, ao passo que os outros desbravaram caminhos que o homem desde então passou a
seguir, e cujo estímulo pode ser facilmente percebido. Através de cada instrumento, o homem recria
seus próprios órgãos, motores ou sensoriais, ou amplia os limites de seu funcionamento. A potência
motora coloca forças gigantescas à sua disposição, as quais, como os seus músculos, ele pode
empregar em qualquer direção; graças aos navios e aos aviões, nem a água nem o ar podem impedir
seus movimentos; por meio de óculos corrige os defeitos das lentes de seus próprios olhos; através
do telescópio, vê a longa distância; e por meio do microscópio supera os limites de visibilidade
estabelecidos pela estrutura de sua retina. Na câmara fotográfica, criou um instrumento que retém as
impressões visuais fugidias, assim como um disco de gramofone retém as auditivas, igualmente
fugidias; ambas são, no fundo, materializações do poder que ele possui de rememoração, isto é, sua
memória. Com o auxílio do telefone, pode escutar a distâncias que seriam respeitadas como
inatingíveis mesmo num conto de fadas. A escrita foi, em sua origem, a voz de uma pessoa ausente, e
a casa para moradia constituiu um substituto do útero materno, o primeiro alojamento, pelo qual,
com toda probabilidade, o homem ainda anseia, e no qual se achava seguro e se sentia à vontade.
Essas coisas — que, através de sua ciência e tecnologia, o homem fez surgir na Terra, sobre a qual, no
princípio, ele apareceu como um débilorganismo animal e onde cada indivíduo de sua espécie deve,
mais uma vez, fazer sua entrada (‘oh inch of nature’) como se fosse um recém-nascido desamparado
— essas coisas não apenas soam como um conto de fadas, mas também constituem uma realização
efetiva de todos — ou quase todos — os desejos de contos de fadas. Todas essas vantagens ele as pode
reivindicar como aquisição cultural sua. Há muito tempo atrás, ele formou uma concepção ideal de
onipotência e onisciência que corporificou em seus deuses. A estes, atribuía tudo que parecia
inatingível aos seus desejos ou lhe era proibido. Pode-se dizer, portanto, que esses deuses
constituíam ideais culturais. Hoje, ele se aproximou bastante da consecução desse ideal, ele próprio
quase se tornou um deus. É verdade que isso só ocorreu segundo o modo como os ideais são
geralmente atingidos, de acordo com o juízo geral da humanidade. Não completamente; sob certos
aspectos, de modo algum; sob outros, apenas pela metade. O homem, por assim dizer, tornou-se
uma espécie de "Deus de prótese". Quando faz uso de todos os seus órgãos auxiliares, ele é
verdadeiramente magnífico; esses órgãos, porém, não cresceram nele e, às vezes, ainda lhe causam
muitas dificuldades. Não obstante, ele tem o direito de se consolar pensando que esse
desenvolvimento não chegará ao fim exatamente no ano de 1930 A.D. As épocas futuras trarão com
elas novos e provavelmente inimagináveis grandes avanços nesse campo da civilização e aumentarão
ainda mais a semelhança do homem com Deus. No interesse de nossa investigação, contudo, não
esqueceremos que atualmente o homem não se sente feliz em seu papel de semelhante a Deus.
Reconhecemos, então, que os países atingiram um alto nível de civilização quando descobrimos que
neles tudo o que pode ajudar na exploração da Terra pelo homem e na sua proteção contra as forças
da natureza tudo, emsuma, que é útil para ele — está disponível e é passível de ser conseguido.
Nesses países, os rios que ameaçam inundar as terras são regulados em seu fluxo, e sua água é
irrigada através de canais para lugares onde ela é escassa. O solo é cuidadosamente cultivado e
plantado com a vegetação apropriada, e a riqueza mineral subterrânea é assiduamente trazida à
superfície e modelada em implementos e utensílios indispensáveis. Os meios de comunicação são
amplos, rápidos e dignos de confiança. Os animais selvagens e perigosos foram exterminados e a
criação de animais domésticos floresce. Além dessas, porém, exigimos outras coisas da civilização, sendo digno de nota o fato de esperarmos encontrá-las realizadas nesses mesmos países. Como se
estivéssemos procurando repudiar a primeira exigência que fizemos, reconhecemos, igualmente,
como um sinal de civilização, verificar que as pessoas também orientam suas preocupações para
aquilo que não possui qualquer valor prático, para o que não é lucrativo: por exemplo, os espaços
verdes necessários a uma cidade, como playgrounds e reservatórios de ar fresco, são também
ornados de jardins e as janelas das casas, decoradas com vasos de flores. De imediato, constatamos
que essa coisa não lucrativa que esperamos que a civilização valorize, é a beleza. Exigimos que o
homem civilizado reverencie a beleza, sempre que a perceba na natureza ou sempre que a crie nos
objetos de seu trabalho manual, na medida em que é capaz disso. Mas isso está longe de exaurir
nossas exigências quanto à civilização. Esperamos, ademais, ver sinais de asseio e de ordem. Não
concebemos uma cidade do interior da Inglaterra, na época de Shakespeare, como possuidora de um
alto nível cultural, quando lemos que havia um grande monte de esterco em frente à casa de seu pai,
em Stratford; também ficamos indignados e chamamos de ‘bárbaro’ (o oposto de civilizado), quando
nos deparamos com as veredas do Wiener Wald cobertas de papéis velhos. A sujeira de qualquer
espécie nos parece incompatível com a civilização. Da mesma forma, estendemos nossa exigência de
limpeza ao corpo humano. Ficamos estupefatos ao saber que o emanava um odor insuportável,
meneamos a cabeça quando, na Isola Bella nos é mostrada a minúscula bacia em que Napoleão se
lavava todas as manhãs. Na verdade, não nos surpreende a idéia de estabelecer o emprego do sabão
como um padrão real de civilização. Isso é igualmente verdadeiro quanto à ordem. Assim como a
limpeza, ela só se aplica às obrasdo homem. Contudo, ao passo que não se espera encontrar asseio na
natureza, a ordem, pelo contrário, foi imitada a partir dela. A observação que o homem fez das
grandes regularidades astronômicas não apenas o muniu de um modelo para a introdução da ordem
em sua vida, mas também lhe forneceu os primeiros pontos de partida para proceder desse modo. A
ordem é uma espécie de compulsão a ser repetida, compulsão que, ao se estabelecer um regulamento
de uma vez por todas, decide quando, onde e como uma coisa será efetuada, e isso de tal maneira
que, em todas as circunstâncias semelhantes, a hesitação e a indecisão nos são poupadas. Os
benefícios da ordem são incontestáveis. Ela capacita os homens a utilizarem o espaço e o tempo para
seu melhor proveito, conservando ao mesmo tempo as forças psíquicas deles. Deveríamos ter o
direito de esperar que ela houvesse ocupado seu lugar nas atividades humanas desde o início e sem
dificuldade, e podemos ficar admirados de que isso não tenha acontecido, de que, pelo contrário, os
seres humanos revelem uma tendência inata para o descuido, a irregularidade e a irresponsabilidade
em seu trabalho, e de que seja necessário um laborioso treinamento para que aprendam a seguir o
exemplo de seus modelos celestes.
Evidentemente, a beleza, a limpeza e a ordem ocupam uma posição especial entre as exigências da
civilização. Ninguém sustentará que elas sejam tão importantes para a vida quanto o controle sobre
as forças da natureza ou quanto alguns outros fatores com que ainda nos familiarizaremos. No
entanto, ninguém procurará colocá-las em segundo plano, como se não passassem de trivialidades.
Que a civilização não se faz acompanhar apenas pelo que é útil, já ficou demonstrado pelo exemplo
da beleza, que não omitimos entre os interesses da civilização. A utilidade da ordem é inteiramente
evidente. Quando à limpeza, devemos ter em mente aquilo que também a higiene exige de nós, e
podemos supor que, mesmo anteriormente à profilaxia científica, a conexão entre as duas não era de
todo estranha ao homem. Contudo, a utilidade não explica completamente esses esforços; deve
existir algo mais que se encontre em ação.
Nenhum aspecto, porém, parece caracterizar melhor a civilização do que sua estima e seu incentivo
em relação às mais elevadas atividades mentais do homem — suas realizações intelectuais, científicas
e artísticas — e o papel fundamental que atribui às idéias na vida humana. Entre essas idéias, em
primeiro lugar se encontram os sistemas religiosos, cuja complicada estrutura já me esforcei por
esclarecer em outra oportunidade. A seguir, vêm as especulações da filosofia e, finalmente, o que se
poderia chamar de ‘ideais’do homem — suas idéias a respeito de uma possível perfeição dos
indivíduos, dos povos, ou da humanidade como um todo, e as exigências estabelecidas com
fundamento nessas idéias. O fato de essas criações do homem não serem mutuamente
independentes, mas, pelo contrário, se acharem estreitamente entrelaçadas, aumenta a dificuldade
não apenas de descrevê-las, como também de traçar sua derivação psicológica. Se, de modo bastante
geral, supusermos que a força motivadora de todas as atividades humanas é um esforço desenvolvido
no sentido de duas metas confluentes, a de utilidade e a de obtenção de prazer, teremos de supor que
isso também é verdadeiro quanto às manifestações da civilização que acabamos de examinar,
embora só seja facilmente visível nas atividades científicas e estéticas. Não se pode, porém, duvidar
de que as outras atividades também correspondem a fortes necessidades dos homens — talvez a necessidades que só se achem desenvolvidas numa minoria. Tampouco devemos permitir sermos
desorientados por juízos de valor referentes a qualquer religião, qualquer sistema filosófico ou
qualquer ideal. Quer pensemos encontrar neles as mais altas realizações do espírito humano, quer os
deploremos como aberrações, não podemos deixar de reconhecer que onde eles se acham presentes,
e, em especial, onde eles são dominantes, está implícito um alto nível de civilização.
Resta avaliar o último, mas decerto não o menos importante, dos aspectos característicos da
civilização: a maneira pela qual os relacionamentos mútuos dos homens, seus relacionamentos
sociais, são regulados — relacionamentos estes que afetam uma pessoa como próximo, como fonte de
auxílio, como objeto sexual de outra pessoa, como membro de uma família e de um Estado. Aqui, é
particularmente difícil manter-se isento de exigências ideais específicas e perceber aquilo que é
civilizado em geral. Talvez possamos começar pela explicação de que o elemento de civilização entra
em cena com a primeira tentativa de regular esses relacionamentos sociais. Se essa tentativa não
fosse feita, os relacionamentos ficariam sujeitos à vontade arbitrária do indivíduo, o que equivale a
dizer que o homem fisicamente mais forte decidiria a respeito deles no sentido de seus próprios
interesses e impulsos instintivos. Nada se alteraria se, por sua vez, esse homem forte encontrasse
alguém mais forte do que ele. A vida humana em comum só se torna possível quando se reúne uma
maioria mais forte do que qualquer indivíduo isolado e que permanece unida contra todos os
indivíduos isolados. O poder dessa comunidade é então estabelecido como ‘direito’, em oposição ao
poder do indivíduo, condenado como ‘força bruta’. A substituição do poder do indivíduo pelo poder
de uma comunidade constitui o passo decisivo da civilização. Sua essência reside no fato de os
membros da comunidade se restringirem em suas possibilidades de satisfação,ao passo que o
indivíduo desconhece tais restrições. A primeira exigência da civilização, portanto, é a da justiça, ou
seja, a garantia de que uma lei, uma vez criada, não será violada em favor de um indivíduo. Isso não
acarreta nada quanto ao valor ético de tal lei. O curso ulterior do desenvolvimento cultural parece
tender no sentido de tornar a lei não mais expressão da vontade de uma pequena comunidade —
uma casta ou camada de uma população ou grupo racial —, que, por sua vez, se comporta como um
indivíduo violento frente a outros agrupamentos de pessoas, talvez mais numerosos. O resultado
final seria um estatuto legal para o qual todos — exceto os incapazes de ingressar numa comunidade
— contribuíram com um sacrifício de seus instintos, que não deixa ninguém — novamente com a
mesma exceção — à mercê da força bruta.
A liberdade do indivíduo não constitui um dom da civilização. Ela foi maior antes da existência de
qualquer civilização, muito embora, é verdade, naquele então não possuísse, na maior parte, valor, já
que dificilmente o indivíduo se achava em posição de defendê-la. O desenvolvimento da civilização
impõe restrições a ela, e a justiça exige que ninguém fuja a essas restrições. O que se faz sentir numa
comunidade humana como desejo de liberdade pode ser sua revolta contra alguma injustiça
existente, e desse modo esse desejo pode mostrar-se favorável a um maior desenvolvimento da
civilização; pode permanecer compatível com a civilização. Entretanto, pode também originar-se dos
remanescentes de sua personalidade original, que ainda não se acha domada pela civilização, e assim
nela tornar-se a base da hostilidade à civilização. O impulso de liberdade, portanto, é dirigido contra
formas e exigências específicas da civilização ou contra a civilização em geral. Não parece que
qualquer influência possa induzir o homem a transformar sua natureza na de uma térmita.
Indubitavelmente, ele sempre defenderá sua reivindicação à liberdade individual contra a vontade do
grupo. Grande parte das lutas da humanidade centralizam-se em torno da tarefa única de encontrar
uma acomodação conveniente — isto é, uma acomodação que traga felicidade — entre essa
reivindicação do indivíduo e as reivindicações culturais do grupo, e um dos problemas que incide
sobre o destino da humanidade é o de saber se tal acomodação pode ser alcançada por meio de
alguma forma específica de civilização ou se esse conflito é irreconciliável.
Permitindo que o sentimento comum assumisse o papel de nosso guia quanto a decidir sobre quais
aspectos da vida humana devem ser encarados como civilizados, conseguimos esboçar uma
impressão bastante clara do quadro geral da civilização; contudo, é verdade que, até agora, não
descobrimos nada que já não fosse universalmente conhecido. Ao mesmo tempo, tivemos o cuidado
de não concordar com o preconceito de que civilização ésinônimo de aperfeiçoamento, de que
constitui a estrada para a perfeição, preordenada para os homens. Agora, porém, apresenta-se um
ponto de vista que pode conduzir numa direção diferente. O desenvolvimento da civilização nos
aparece como um processo peculiar que a humanidade experimenta e no qual diversas coisas nos
impressionam como familiares. Podemos caracterizar esse processo referindo-o às modificações que
ele ocasiona nas habituais disposições instintivas dos seres humanos, para satisfazer o que, em suma, constitui a tarefa econômica de nossas vidas. Alguns desses instintos são empregados de tal maneira
que, em seu lugar, aparece algo que, num indivíduo, descrevemos como um traço de caráter. O
exemplo mais notável desse processo é encontrado no erotismo anal das crianças. Seu interesse
original pela função excretória, por seus órgãos e produtos, transforma-se, no decurso do
crescimento, num grupo de traços que nos são familiares, tais como a parcimônia, o sentido da
ordem e da limpeza — qualidades que, embora valiosas e desejáveis em si mesmas, podem ser
intensificadas até se tornarem acentuadamente dominantes e produzirem o que se chama de caráter
anal. Não sabemos como isso acontece, mas não há dúvida sobre a exatidão da descoberta. Ora,
vimos que a ordem e a limpeza constituem exigências importantes de civilização, embora sua
necessidade vital não seja muito aparente, da mesma forma que revelam indesejáveis como fonte de
prazer. Nesse ponto, não podemos deixar de ficar impressionados pela semelhança existente entre os
processos civilizatórios e o desenvolvimento libidinal do indivíduo. Outros instintos [além do
erotismo anal] são induzidos a deslocar as condições de sua satisfação, a conduzi-las para outros
caminhos. Na maioria dos casos, esse processo coincide com o da sublimação (dos fins instintivos),
com que nos achamos familiarizados; noutros, porém, pode diferenciar-se dele. A sublimação do
instinto constitui um aspecto particularmente evidente do desenvolvimento cultural; é ela que torna
possível às atividades psíquicas superiores, científicas, artísticas ou ideológicas, o desempenho de
um papel tão importante na vida civilizada. Se nos rendêssemos a uma primeira impressão, diríamos
que a sublimação constitui uma vicissitude que foi imposta aos instintos de forma total pela
civilização. Seria prudente refletir um pouco mais sobre isso. Em terceiro lugar, finalmente — e isso
parece o mais importante de tudo —, é impossível desprezar o ponto até o qual a civilização é
construída sobre uma renúncia ao instinto, o quanto ela pressupõe exatamente a não-satisfação (pela
opressão, repressão, ou algum outro meio?) de instintos poderosos. Essa ‘frustração cultural’ domina
o grande campo dos relacionamentos sociais entre os seres humanos. Como já sabemos, é a causa da
hostilidade contra a qual todas as civilizações têm de lutar. Também ela fará exigências severas à
nossa obra científica, e muito teremos a explicar aqui. Não é fácil entender como pode ser possível
privar de satisfação um instinto. Não se faz isso impunemente. Se a perda não for economicamente
compensada, pode-se ficar certo de que sérios distúrbios decorrerão disso.
Mas, se quisermos saber qual o valor que pode ser atribuído à nossa opinião de que o
desenvolvimento da civilização constitui um processo especial, comparável à maturação normal do
indivíduo, temos, claramente, de atacar o problema. Devemos perguntar-nos a que influência o
desenvolvimento da civilização deve sua origem, como ela surgiu e o que determinou o seu curso.
VOCÊ ESTÁ LENDO
O MAL-ESTAR NA CULTURA
RandomO processo de desenvolvimento cultural necessário para que as pessoas possam viver em sociedade. A conclusão é a de que não só a civilização, mas a própria cultura humana implicam uma diminuição na felicidade dos indivíduos, tendo como subproduto um...