Era só um escravo. Nada mais do que isso. Seu valor no mercado era alto, um produto luxuoso e extremamente disputado. Ninguém mais via um espécime tão bem preservado de uma raça já quase extinta: os humanos. Enquanto seus antepassados um dia já viveram em uma civilização próspera, agora o destino mais comum para os remanescentes era cumprir papel como mercadoria de ostentação. Era uma das piores opções de vida dentro daquele vasto universo, considerando que muitas outras espécies ainda tinham opções mais dignas em seus planetas. Poderiam ser viajantes, explorando todos os sistemas interestelares possíveis, ou poderiam ser os comerciantes que abasteciam esses viajantes. Se tivessem sorte, conseguiam um lugar alto no mercado de escravos e viviam na riqueza todos os dias. Eram boas opções, não existia ninguém para julgá-los.
Mas isso não importava para ele. Ele era um escravo, seu destino já estava determinado. Além do mais, um espécime daqueles, com a pele morena e cabelos negros vastos, mostrava os traços característicos de sua cultura já perdida há um bom tempo. Seu valor era inestimável. Parecia feito para encarnar seu papel de objeto, de uma mercadoria de luxo.
Hoje estava em um pedestal, pronto para ser vendido mais uma vez. Já não fazia mais ideia de há quanto tempo nessa situação. Pela mão de quantos donos já passara? Qual fora a última vez em que havia sentido algo mais profundo do que a sua completa falta de vontade de viver? Suas veias foram entupidas de drogas por anos a fio para que tudo o que ele um dia já sentiu ou poderia sentir no futuro fosse apagado forçadamente de seu cérebro. Agora ele era só um objeto caro, completamente ornamental. Naquele momento estava enfeitado como um, coberto por uma túnica dourada e brilhante, com símbolos em vermelho gravados para demonstrar seu alto valor. O tecido leve pregava-se junto ao seu corpo, vez ou outra mostrando sua pele, que fora minuciosamente lavada para a ocasião especial. Estava impecável, pronto para ser exibido em mais uma vitrine.
Pronto para ser objeto do olhar de cobiça de vários compradores, todos ávidos a pagar o maior valor possível para que lhe usassem, as vezes dos piores jeitos imagináveis.
Ser um escravo raro era obviamente mais do que um trabalho. Significava ser uma exposição viva, sem restrições. Mas também não significava que serviria a tarefas baixas como lavar a nave ou preparar refeições. Não. Ser um escravo de luxo era estar ali para matar a curiosidade de seu dono sobre sua já perdida raça, da maneira que precisasse. Mesmo assim, não era um bom destino. Não poderia reclamar se usassem seu corpo como ferramenta, ou mesmo se lhe estimulassem pelo simples prazer de rir de seus instintos primitivos. Poderia até mesmo ser dissecado vivo por algum maníaco, não era nada improvável. Não teria o que fazer. Afinal de contas, o que mais havia em sua vida, se é que pudesse chamar assim? Era tudo o que tinha. Era tudo o que conhecia como mundo e esse era o seu papel nele.
Desvia vagarosamente o olhar para seus próprios braços, evitando ser repreendido por fazer qualquer movimento brusco que afetasse sua exposição. Precisava ser cuidadoso, afinal de contas, as celas tinham detectores de movimento para o caso de alguma das mercadorias vivas tentasse fugir.
Pinturas incertas cobriam seu corpo como desenhos tribais dos quais tinha vagas lembranças. Olhar para elas lhe fazia lembrar da dor que cada desenho lhe causara, mas isso só lhe despertava o máximo de curiosidade que seu corpo quimicamente modificado poderia sentir, ou seja, nenhuma. Sempre tinha esperanças de um dia entender o que aquilo significava. Mas isso seria só mais um mistério, continuaria inexplicável para si.
Escravos são objetos; objetos não fazem perguntas.
Sentia o olhar fixo da multidão de compradores. Já estavam longes os dias em que tinha o desejo de fugir dali. Se acostumara à situação e estava anestesiado o suficiente para que isso não fizesse diferença. Depois de tanto tempo, já até aprendera os códigos para desbloquear as celas, mas dentro ou fora dela seu único destino era ser um escravo e nada mais. Diziam que sua aceitação da própria situação era um ponto positivo para seus compradores, só aumentava seu preço.
Tentava imaginar se algum dos seres que paravam para lhe admirar realmente poderiam comprar-lhe. Nesse ponto da vida, só precisava de um novo dono que lhe desse abrigo. Talvez esse fosse o sentido de toda a sua existência, afinal.
Entretanto, por mais que lhe houvessem apagado praticamente todos os traços de sentimentos e consciência, conseguia sentir alguma coisa. Sim, um leve vazio dentro de si, um vazio desejoso para ser preenchido. Talvez fosse por isso que, mesmo sendo uma mercadoria de qualidade, passasse de dono tão rápido. Tanto lhe apagaram que ele era vazio demais para criar um interesse maior em seus proprietários.
Por mais envolto que estivesse em seus pensamentos, esses foram abruptamente cortados antes que chegasse a uma conclusão. Dessa vez não por falta de vontade, mas sim pela anormal e inesperada chuva de vidro e metal que caia no que pareciam os segundos mais enigmáticos de sua vida.
Rapidamente a cena silenciosa se torna uma mistura de barulhos incessantes, anunciando algo além de toda a movimentação comum do mercado de escravos. Os seres mais ricos daquela parte do sistema solar grunhiam e gritavam por todo o recinto, ele não sabia exatamente o que diziam, mas provavelmente cuspiam ordens alarmadas para que todo aquele caos fosse controlado o mais rapidamente o possível. Na mente dos mercadores, cada ser andando por aquele hangar era uma soma incrível de cifrões e eles não ficariam nada felizes em perdê-los. Apesar disso, ninguém realmente parecia saber o que estava acontecendo além dos problemas óbvios causados pelo teto quebrado. Não havia sinal que indicasse intruso algum ali dentro.
Antes que tivesse chance de entender o que realmente acontecia, o chão se afastou de seus pés e alçou voo. Ou talvez fosse ele que estivesse voando.
Não conseguia pensar em mais nada. Só flutuava como se não tivesse peso, e estava indo rápido. Muito rápido. Subia cada vez mais rápido enquanto o alarme de sua cela ecoava ao longe. Tinha certeza de que não estava sonhando, pois a dor que sentia enquanto seu corpo alçava voo para fora do ambiente oxigenado era real demais. Seus pulmões se comprimiam enquanto o ar não chegava em suas narinas e sua cabeça doía a ponto de explodir. O desespero tomava conta de sua mente naquele momento, suas mãos já estavam em sua garganta sem que percebesse, tentando inutilmente verificar o que havia dado errado.
Quando lágrimas de puro pavor já cobriam seus olhos, a primeira coisa que conseguiu ver foram aqueles fios brancos. Primeiro pareciam teias, mas depois juntavam-se como pelos espessos. Parecia um animal exótico, misterioso. Sua mente entrando em hibernação só processava partes daquele ser: um traje preto e um capacete do qual escorriam os fios brancos.
– Aguente só mais um pouco, ok? – A voz era levemente eletrônica e ressonava em seus ouvidos. Entendia o que estava falando, não era nada muito preciso, mas conhecia aquele idioma.
– hn! – Não tinha capacidade de falar naquelas condições, mas também duvidava que pudesse fazer aquilo algum dia. Mais um grande efeito de todos os processos para ser uma mercadoria. Mesmo que quisesse, não conseguiria refletir sobre aquilo no momento, só desejava voltar a algum lugar que pudesse respirar antes que desmaiasse.
– Já estamos quase lá. Eu não me dei o trabalho de vir aqui para que você morresse tão rápido.
Por mais que estivesse à beira de um colapso, o desespero lhe permitiu entender uma parte do que estava acontecendo em meio a todo o caos. Tanto o teto do hangar quanto da sua cela estava quebrados e fora puxado de lá por aquele ser desconhecido. De alguma maneira os dois estavam flutuando rapidamente em direção ao que parecia um híbrido de navio e nave espacial, com um casco branco reluzente e um pouco curvado. Refletindo completamente um raio de luz de um sol muito distante, aquela figura toda parecia mais etérea do que sólida.
Não se lembrava de mais nada depois disso.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Por baixo do paraíso
Science FictionMuitos anos após a destruição da Terra, os seres humanos remanescentes são tratados como escravos e trocados como mercadorias de luxo. Entretanto, um dos poucos escravos restantes é sequestrado e recebe a chance de viver ao lado de uma tripulação au...