Capítulo 2: Na nave

24 2 2
                                    

Acorda arfando e percebe que novamente seus pulmões enchiam-se de ar. Estava em uma cama, apesar de não poder distinguir entre ela e um ninho. Conseguia sentir um amontoado de penas com a ponta de seus dedos, mas não entendia muito mais do que aquilo. Sua cabeça estava leve demais para quem acabara de perder o que conhecia como mundo, para alguém que teoricamente acabara de ser sequestrado. Claro, não era como se ser um escravo fosse realmente uma vida, só era o que lhe definia até aquele momento.

Depois de abrir e fechar os olhos para se acostumar com o quarto reluzente, consegue forças para sentar-se. Ainda estava tonto e não tinha fôlego, mas precisava tentar descobrir onde estava.

Sem que pudesse reconhecer muita coisa, reserva-se a permanecer sentado para se acalmar. Seu coração ainda não havia voltado a bater normalmente, talvez precisasse de alguns segundos para se lembrar de como era respirar direito. Antes que pudesse qualquer outra coisa, a porta do cômodo se abre e ele se vê encolhido em um dos cantos da cama improvisada, instintivamente preparando-se para a chegada do perigo.

Uma pessoa, ou o que parecia uma, entra segurando uma bandeja com algo aparentemente apetitoso. Seu estômago ronca e, ainda por costume, encolhe-se mais, esperando não ser repreendido.

– Pode ficar tranquilo. Come aqui. – Mais uma vez ouvia seu idioma conhecido. Sentia-se completamente estranho por ser o alvo de algum diálogo que não fosse seguido de chibatadas ou um puxão de cabelo, ainda mais um que em entendesse tudo o que lhe diziam.

Por mais que o ronco em sua barriga persistisse, não se sentia seguro para se mover naquele momento. Lentamente, foi levantando sua cabeça para ao menos olhar aquela figura que se aproximava com passos vagarosos, como se tentasse não lhe assustar. Seus olhos logo se vidraram. Quanto mais olhava, mais ficava perdido. Não parecia um ser, mas sim muitos espectros se unindo em um único lugar. Reconhecia todas as figuras como uma única coisa. Era como se todos os rostos que já vira em sua vida se juntassem em uma só forma. Mas era só desviar o olhar que não conseguia mais imaginar tal figura.

– Uma hora você vai acostumar seus olhos. Deve ser um pouco difícil para o cérebro humano gerar minha imagem.

Balança a cabeça, sem saber o que responder. Quando a figura se senta ao seu lado, o odor agradável de comida ataca suas narinas novamente e desce diretamente ao seu estômago, criando mais um ronco alto. Mesmo assim, permanece no mesmo lugar, esperando para saber o que aquele ser lhe faria.

Não tinha ideia de quanto tempo ficara parado ali, mas não fora pouco. Entretanto, em algum ponto sentiu-se confiante o suficiente para não mais resistir à fome, atacando o que quer que fosse a comida que lhe trouxeram. O sabor era perfeito. Apesar de parecerem só grãos e uma massa esbranquiçada, era como se adivinhasse qual era a sua fome. Salgado, agridoce. Tudo estava ali.

Entre as mordidas que dava na sua refeição, olhava suspeitosamente para a figura ao seu lado. Conseguia distinguir entre os vários rostos talvez alguns traços femininos, por mais estranho que fosse. Não via muitos humanos e não era comum que "feminino" e "masculino" aparecessem com frequência nas outras raças. Mas ali, parecia sim uma mulher. Quanto mais comia, mais conseguia se concentrar nela. Cabelos longos, de uma cor que ainda não conseguia distinguir. Talvez madrepérola, mas em tons de um roxo reluzente. Era como se a luz viesse do próprio cabelo, refletindo em si mesmo.

– Pode ir com calma aí, cara. A comida não vai fugir de você.

– Hn... – Desacelera seu ritmo instintivamente ao receber qualquer comentário. Não era comum estar com alguém enquanto comia, talvez estivesse ansioso. Tinha certa vontade de responder usando palavras compreensíveis, mas não se lembrava mais como poderia fazer isso. Tudo e qualquer coisa sobre comunicação mais avançada lhe fora apagado.

Por baixo do paraísoOnde histórias criam vida. Descubra agora