Jo, com as mãos enlaçadas umas nas outras à frente, cerimonialmente, parte da conduta, da etiqueta e da boa compostura, apertava os dedos, sentindo os ossos prestes a se fundirem como um único membro.
Faltava pouco. Muito pouco.
Pois já estavam lá.
Já estavam ali.
— Jo. – a voz de Lind, pronunciando seu apelido, tirou a jovem do devaneio crescente do clímax desesperador de Danse Macabre. A música de sua vida. O mundo em forma de música.
Jo virou o rosto para olhá-la, sua imagem de uma flor ornamentada com as cores quentes de Ravaryn em contraste às de Krahem: preto, como tinta.
— O que? – ela perguntou, piscando.
— A tiara. Está um pouco torta. – disse a mais nova com um sorriso doce no rosto, erguendo os braços finos e curtos em direção à cabeça de Jo. Ela abaixou-se levemente para que Lind ajustasse sua falta de atenção. Se preparar para encontrar com o Pássaro não deveria ser tão importante assim. Porém, eram regras, normas estabelecidas pelo reino de Krahem.
Ao recuar, Lind a fitou. Jo engoliu em seco. A menina, de todas ali, era a mais corajosa. Mais forte. Mais do que a própria Jo – inconformada, petulante, fora da via de regra, que demonstrava qualquer emoção que surgisse em seu peito, tão diferente de Lind, de Florence, de Dryna. Todas capazes de não demonstrar o que se passava em seu anseio.
Contudo, algo que Jo era capaz de enxergar nelas era em seus olhos: o medo de perder seu lar, o laço que as uniu – sua rainha.
O chão estremeceu com um ruído, tirando Jo e Lind do encontro de olhos medrosos velados, e tomaram seus postos – a porta imensa e tenebrosa abrindo diante delas, com Dryna na liderança de suas damas como uma galante guerreira sem escudo e armadura.
Porque ela não precisava.
A visão da sala além feriu os olhos de Jo com a luz pálida, fazendo-a formar uma careta. Sendo alta como era, a jovem pôde enxergar o cômodo aparentemente amplo e espaçoso, com uma mancha azulada, turquesa e alaranjada logo ali no centro, como um pedaço de céu caindo de uma nuvem.
Botas pisavam uniforme no piso de cerâmica cinza, como uma marcha, na lateral das damas e da rainha – empregados de Krahem, todos homens, carregando consigo um pesado piano de madeira preta, para dentro da sala branca.
A saliva desceu quente e cortante pela garganta de Jo, apertando ainda mais seus dedos compridos e calejados. Seus olhos acompanharam os homens saírem de lá sem o piano, quando Dryna moveu o corpo para o lado, o semblante tão determinado quanto um comandante pronto para dar seu grito de guerra – e todos iriam à luta.
Mas o grito de guerra de Dryna foi silencioso – apenas um olhar convicto, tão segura de si.
Então voltara o rosto à frente, e seus passos deram às damas a aquiescência de que poderiam prosseguir.
Ao Jo ultrapassar o portal, sentiu sua pele eriçar com a temperatura gélida da sala, seus olhos fixados na figura azul logo ali na frente – e as grandes portas se fecharam com um baque débil de uma tecla no piano; um ponto final de uma história.
O Pássaro já fora retratado, por vários artistas, em pinturas, mas a presença de estar no mesmo cômodo que ele era como uma gravidade pesada pressionada contra o corpo de Jo. Era, visualmente sim, como nas pinceladas, azul e turquesa, do tamanho de um pavão, a penugem salpicada de laranja brilhante, fazendo com que toda a clareza da sala branca deixasse suas cores oscilantes como água corrente.
A boca de Jo abriu suavemente, encantada com o bico do Pássaro. Era como se feito de pedras preciosas, reluzentes e translucidas refletindo à palidez do recinto.
Os olhos do Pássaro se abriram – e Jo quase deu um passo para trás. Ele ainda não fez nada, sua estúpida. Não dê motivos a ele para debochar de seu medo tolo.
O Pássaro olhou para elas, a posição de seu rosto de frente dava a ideia de que estava sorrindo.
— Ao Pássaro, aqui está a Rainha de Ravaryn, da Casa Valloma, Alecsandryna Lada Valloma. – enunciou Dryna, sua voz retumbando pela sala. O Pássaro fez somente um meneio de cabeça, como uma mesura. – Comigo trago minhas damas, minhas companheiras: Lady Rosalind, Lady Florence e Lady Joann.
Dryna virou o rosto, sua primeira ordem – e Lind caminhou solene em direção ao piano a alguns passos de Florence, sentando-se no pequenino banco. Em seguida, Florence e Jo se moveram, posicionando-se nas laterais do instrumento, observando o Pássaro.
Jo respirava fundo, tentando controlar o peito trêmulo. Se isso não for a Canção do Pássaro, moverei a Trilha do Deleite entre os espíritos e o acharei até mata-lo eu mesma.
Um.
Dois.
Jo e Florence tocaram as primeiras notas, ambas sincronizadas, a última e a primeira – ecoando um sonido desalinhado, como alguém que executa uma música pela primeira vez. As notas ecoam, Jo e Florence afastam seus dedos do teclado, deixando com que Lind tocasse o resto – e assim foi.
A melodia era incerta, quase caótica – tão bizarra quanto um sonho mal sonhado. Jo franziu a testa, tentando compreender aquele som, encarando o Pássaro. Ele estava quieto, inerte, enquanto Dryna o fitava também. Nenhuma reação. Nada.
Jo notou a sala branca ficar esquisita. A Canção parecia mais lenta, mais distante – como se a jovem estivesse se distanciando de Lind e do piano e do mundo. O coração dentro do peito era leve, como se segurasse em flores e as pétalas voassem em direção aos céus. Seus olhos vagaram pelo chão, água turquesa e azul escorrendo em direção ao Pássaro como veias, e Jo olhou para os próprios pés. A água, aquela água estava escorrendo dela.
Um ruído de susto travou na garganta de Jo, quando uma voz exalando um único som ecoou em sua mente, preenchendo a sala. O que é isso? Santos, o que é isso?
Era uma voz serene. Não uma única voz, porém várias, como um espectro de cores.
Jo sentiu o peito segurar a própria respiração. Ela olhou em direção à Dryna, a rainha como se num transe enquanto contemplava a beleza fria do Pássaro.
A voz ecoava.
Era uma voz serene.
Não uma única voz.
Porém várias.
Como um espectro de cores.
A voz de Jo saiu estridente da garganta:
— DRYNA!
A imagem de Dryna desapareceu da visão de Jo, substituída por um véu colorido, tão lindo, tão lindo...
E tudo tornou-se branco.
Quando a alma de Dryna inflamou como chamas incandescentes azuis dentro de si, ela saiu do encanto.
Lindo, como uma miríade de cores.
A cor de Dryna foi roubada para dar lugar às cores do Pássaro, aos seus olhos vítreos, no que outrora castanho-claros.
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As Três Damas da Rainha - um conto
Short StoryQuando uma canção se torna a contagem regressiva de um mundo, três damas de um reino estão dispostas a lutar por sua rainha - não com espadas e adagas. Porém, com algo mais poderoso. - Início de postagem: 18.12.2019 - - Último capítulo: 23.12.2019 -