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Três dias depois...

Lauren enfim sentou-se após passar boa parte da manhã limpando o interior da barraca.
"Que dias... Desde que Takumi ergueu as barreiras em torno do acampamento as coisas estiveram estranhas".
Observou os arredores, ainda extasiada com o novo lugar, ainda que estivesse arrepiada com o frio que só aumentava a cada dia.
Árvores de tronco claro se estendiam de forma afastada por toda a região, dando uma atmosfera mais arejada e calma, sendo possível ver a uma boa distância para onde quer que olhasse.
Porém o que mais encantou a dupla ao escolherem a colina pedregosa e cheia de vegetação rasteira para morar foi uma velha e destruída cabana no centro da clareira. Por mais podre e quebrada que estivesse seu teto e paredes, havia um charme sem igual na pequena varanda. Vinhas, cogumelos e musgo tomavam conta dos arredores da construção, trazendo um ar caótico ao mesmo tempo que calmo para quem fosse a admirar.
Takumi decidira montar a barraca do lado da antiga cabana. Ficou bom, mesmo que Lauren temesse que parte das tábuas soltas das paredes caísse sob a tenda.
A mudança que fizeram foi muito agradável, sem dúvidas. Até levar suas coisas havia sido mais fácil do que esperado, graças a cabana mágica. Quando Lauren se deu conta, Takumi já havia dobrado a moradia e colocado nas costas dentro de uma sacola de tecido próprio, e com todas as suas malas dentro!
"Foi um dia tão maluco! Achei que a barraca seria pesada para ser carregada, mas o Takumi me pediu para carregar um pouco em uma altura e nossa, era que nem carregar um bicho de pelúcia!".
Suspirou fundo e tossiu parte da poeira que respirou ao varrer sua moradia.
-Eu nem almocei e já são quase duas da tarde... Mas onde está o Takumi?
Mesmo depois de quatro dias, a jovem não entendia direito como Takumi estava agindo. Mesmo que tivesse seus períodos de silêncio prolongados, simplesmente havia começado a agir estranho.
"Ele não me contou todo o plano dele em relação àquela bruxa maluca. Chego até a duvidar que tenha planejado algo elaborado de fato nesses dias".
E não era somente a falta de explicação do plano que a atormentava. O fato de terem alguma conexão e ela não lembrar já era estressante, e somado com as dezenas de vezes que o rapaz se negou a contar, Lauren tinha certeza que sua cabeça explodiria muito em breve.
"Eu devo ter cara de otária mesmo", reflete suas ações dos últimos dias, "Mesmo que eu estivesse em risco de vida, por que fui aceitar me unir a esse cara? Sei que tudo poderia ficar pior caso não viesse, mas viver nessa eterna dúvida tem me deixado mais tensa do que se não estivesse aqui".
Sempre que pensava sobre sua certeza de que se conheciam desde a época de colégio sua cabeça aparentava se expandir. Era como se a verdade sobre seu passado estivesse ao alcance de suas mãos, porém dentro de uma caixa trancada a sete chaves.
O que teria acontecido? Teriam brigado e a garota apagado a existência dele de suas memórias?
Talvez logo conseguisse abrir a caixa ou fazer Takumi desembuchar de uma vez por todas.
"Tenho que falar com ele, mas como vou perguntar?".
A tensão fazia seu sangue ferver e seus olhos tremerem nas órbitas.
-Ei, Lauren.
A jovem quase deu um pulo e encarou um Takumi com as mãos na cintura enquanto esse estalou a língua.
-Você se assustou fácil demais.
-Eu estava pensando em umas coisas, só isso.
-Ah sim -disse, se agachando do lado dela enquanto sorria, -que tipo de coisa?
Ela o encarou, acuada contra as barras da lona da entrada. Como explicaria?
Deu anfitrião estava novamente com a máscara de gato. Achou que ficava bem com aquele objeto cobrindo somente os olhos, talvez fosse até reconfortante ver aquele sorriso.
"Como pergunto?".
-Você me parece muito familiar, sério. Certeza que nunca nos vimos na vida?
O sorriso sumiu e apertou os lábios.
"Ele está nervoso. Não sabe se vai me contar esse segredo que tanto protege".
-Você sente que me conhece, mas acho que é só... Impressão. Quando eu tinha o rosto inteiro, ele era considerado tão comum que todo mundo dizia que eu era familiar com um conhecido.
"Ah claro, com certeza isso é verdade", pensa sarcástica, "Está óbvia a mentira. Nos últimos dias percebi que não sabe mentir de forma convincente, por isso fica quieto".
Sempre na defensiva e calado, evitando briga... Talvez fosse o certo por hora.
-Bom, como foi com seus conhecidos na cidade? Conseguiu alguma coisa?
-Necas. Eles se negam a me ajudar ou sequer emprestar uma arma capaz de vencer a bruxa.
-Perai, você vai mesmo atirar nela?
Ele concordou com a cabeça.
-É o único jeito de acabar com essa baderna. Se ela morre, a magia que ela rogou também morre... Isso até onde sei.
-Faz sentido, mas e se não morrer?
-Como assim?
O olhar confuso do rapaz era o bastante para a fazer se arrepender de suas palavras e certezas.
-Tem muitos feitiços de bruxas que não passam com sua morte. E se...
-Não. Isso tem que passar, e se não passar, eu dou um jeito de fazer com que ela volte e eu a mate de volta depois de resolver.
-Maluco.
Ele sorriu novamente e entrou na barraca, pedindo licença.
-Ah, venha aqui. Lembrei de uma coisa.
Depois de revirar os olhos, a garota levantou e foi até a cozinha.
-O que foi?
-Pegue isso -oferece uma folha que puxou do bolso de sua calça cáqui antes de se sentar. -É você, né?
-É, não acredito -Lauren arqueou as sobrancelhas ao observar o cartaz de "Procura-se" com uma foto antiga sua estampada em mãos. -É o número do meu irmão.
-Estamos enrascados?
Teve que conter um riso nervoso, pois não estavam só enrascados, e sim condenados a uma perseguição a nível dos filmes policiais que assistia na televisão.
Seu irmão era um bom caçador. Tinha certeza que deveria estar revirando cada rachadura da cidade e pedra da mata em sua procura.
"Então no final ele realmente se importa comigo ainda! Que notícia mais controversa de se saber!".
-Depende. Sua barreira também evita que pessoas a achem?
-A princípio sim... Ninguém que não queremos ou permitimos entrar no acampamento vai nos ver aqui.
-Então a pessoa tem que ter nossa permissão para nos ver?
-Isso ou a gente querer que ela entre.
-Entendo... Bom, mudando de viola para cavaco -uma risada fraca escapou de Takumi. -O que foi?!
-Viola pra cavaco?
-É um modo de dizer que está trocando de assunto.
-Tá, mande.
-Vamos almoçar ou não?
Ela soltou o cartaz na mesa e o encarou por aquele tempinho em que pensava.
-Quer que eu cozinhe hoje?
-Pode ser. Eu ainda tenho que arrumar umas coisas aqui fora, então...
-Não Lauren, eu faço hoje. Hum... O que acha de umas verduras cozidas?
-Uma maravilha... Ah, tudo bem eu colocar aquele monte de galhos espalhados na clareira do lado da cabana velha?
Ele deu de ombros.
-Está ótimo por mim.
-Beleza, eu já volto.
Com um aceno de cabeça, Lauren se levantou e foi para fora.
"Quem diria que ele estaria nesse bom humor... Confesso que me pegou de surpresa! Verduras? Bom, até agora a comida dele tem sido bem boa, que nem anteontem, quando fez risoto para a gente".
Sua boca se encheu de saliva ao lembrar todo o sabor que havia captado. Chegava a não acreditar!
Na hora que saiu já se pôs a juntar os galhos secos que encontrava, logo já estando com uma porção em seus braços. Foi até a velha cabana e os amontoou ao lado.
"Minha comida é boa, mas a dele é muito melhor! Faz um tempo que não provo algo tão bom... Mas quando? Eu já provei isso antes, não?".
Voltou a juntar mais gravetos, pondo sua memória para trabalhar enquanto mais uma pilha se formava em seus braços.
"Não faz anos isso, e sim quase um, talvez meses. Eu comia na casa de alguém essa comida tão boa, só que... Por que está tão nublada a minha cabeça?".
Mais uma pilha, e mais uma, e outra. Só ia aumentando o amontoado ao lado da cabana.
"Tinha um casal nessa casa, eu acho. Eles eram muito gentis comigo, quase como se eu fosse sua filha...".
Adentrou o mato, vendo que mais gravetos se encontravam bem na beira da entrada.
"Uma filha... Filha... Filho. Um filho! Eles tinham um filho!".
Sua mente deu um estalo, entretanto ele não ecoou somente ali, e também a alguns metros a sua frente. Um galho quebrado com vontade por alguém.
O eco da máscara retornou em sua cabeça, imediatamente se tornando alto.
"Droga, droga, droga!".
O coração de Lauren vibrou, e então soltou os galhos no solo.
"Espera! São patas, patinhas na verdade!".
Atravessou as moitas e continuou com passos firmes. Só avistava troncos pálidos para aonde quer que olhasse, e seus ouvidos continuavam a sentir as patinhas em meio as plantas e o chamado da máscara.
"Esse cheiro... ESSA CATINGA!".
Prendeu os cabelos e bufou em alto e bom tom, fechando a cara.
-Eu sei que você está aí! -berra com ferocidade, puxando uma faca do bolso de sua calça. -Saia, seu fedorento peludo!
Mais estalos e folhas sendo amassadas chegaram, porém o som parecia vir de vários lugares ao mesmo tempo. Não importava para onde seus olhos corriam, sempre vinha da direção oposta, uma camuflagem perfeita.
"Está querendo me confundir, é?!".
O cheiro de cachorro molhado e uma energia forte dominaram todo o ambiente em segundos.
"É aquele cara! Tenho certeza que!".
O eco da máscara explodiu em sua mente no instante que um vulto pequeno saltou dos arbustos, desferindo como louco dezenas de cortes por onde passasse. O que atingiu Lauren era igual a duas lâminas, e um uivo lhe escapou ao sentir a ardência descomunal percorrer seus braços e parte do pescoço.
Sacudiu os braços bradando sua faca, dando alguns passos para trás e caindo sentada nas plantas depois que seu pé enroscou numa pedra, mas não antes de ver uma bola de pelos laranja mergulhar de volta nos arbustos.
Tentou levantar, e observou as feridas que ardiam como o inferno em seus braços. Por mais que sua carne estivesse cavada, nenhum sangue esvaiu, diferente de seus joelhos e cotovelos após rasparem contra as pedras e raízes.
"Cortes que não sangram rápidos como o vento", recordou e ouviu o agressor se aproximar, "Não há dúvidas que é aquele Kamaitchi!".
Viu a doninha mágica passear sorrateira ao seu redor, esperando a oportunidade de tomar mais do sangue da adversária, que apertou os dedos em torno da faca e aguardou com os nervos a flor da pele.
Outra vez o eco da máscara estourou junto de um ataque brusco do Kamaitachi. Tão rápido veio e tão rápido voltou às moitas, pois Lauren puxou seu corpo no exato momento que o chamado da máscara explodiu.
-VOCÊ FEDE BEM MAIS NESSA FORMA, SABIA?! -provoca quando a ardência de sua pele diminui, sinalizando a cura em progresso.
"Todo ataque é avisado! Que bom que tenho essa vantagem!".
Em um impulso o Kamaitchi se lançou ao mesmo tempo do berro da máscara, e enfim a jovem defendeu-se. Pôde sentir o Kamaitachi se chocar contra a lâmina e cair no solo com um chiado doloroso.
Ela correu até o lugar onde viu o animal cair e se deparou com manchas de sangue minúsculo nas folhas. Remexeu nos arbustos e no capim.
-Onde você está, sua praga?!
-Mas que boca suja a sua!
A jovem virou ligeiro e observou a figura nem um pouco feliz de Ren, que havia consigo um bastão de bambu com uma lâmina quase invisível perante a luz e um longo corte no braço, a dez metros de distância.
-Eu sabia que era você! -sorriu torto, os olhos apertados pelas bochechas. -Por que está me atacando?!
-Não importa mais. Depois disso aqui você ganhou uma passagem só de ida pro inferno!
Aquelas palavras perturbaram tanto Lauren que seus olhos esbugalharam nas órbitas no mesmo tempo que o sorriso morreu.
"Eu tô muito ferrada agora. Ele é muito mais rápido e minha única vantagem é o eco da máscara! Só que desde que esse fedido se transformou o eco não para de berrar!".
-Eu não quero brigar com você! Só quero saber o porquê de me atacar!
-Você deve ser tão fraca! Deve estar com tanto medo que quer fugir igual a um rato!
Suas pernas tremeram e a raiva ascendeu. Era inegável o desejo de fuga, mas ser chamada de fraca e covarde por um cara que fedia a cachorro molhado era demais para seu orgulho.
-Se eu sou covarde, imagina você que luta se escondendo no mato como uma cadela! Não é a toa que fede igual!
Num piscar de olhos o ruivo estava empunhando a lâmina da foice a centímetros de seu pescoço por suas costas.
-O que você disse? -ele sibilou tão frio quanto o gelo. -Acho que não ouvi direito.
Lauren engoliu seco, sentindo que dependente da resposta perderia o pescoço.
"Tem alguém correndo do acampamento para cá. Por favor, que seja o Takumi, por favor".
-Eu falei que você fede. Deveria tomar cuidado com o que lava esse poncho.
Indicou com um aceno a faca em mãos pronta para rasgar a barriga de Ren, que estalou a língua e liberou o pescoço da moça devagar.
-Demônio esperto você.
Ela sorriu, e abaixou a faca.
-Porém nunca baixe a guarda.
Ren arrojou a foice contra o ombro dela, arrancando um uivo enquanto a carne era dilacerada e um cheiro de queimado se erguia no ar. Caiu no chão agarrando o ombro e se contorcendo diante daquela dor insuportável e agonizante.
-REN!
O Kamaitachi olhou para o recém chegado Takumi arquejante, agora usando a máscara branca de olhos elipses.
-Que foi?
-Mas que droga é essa?!
-Nada, só um treininho surpresa.
Os pensamentos tão atormentados de Lauren começaram a converter a dor em raiva contra sua vontade, a fazendo suar e ranger os dentes.
-Não fale merda. O que pensa que está fazendo?
-Eu tava a testando. Sabia que ela é muito mais boba que você?
-Você não tem noção do que fez, né?!
Aquele corte queimava, e como queimava, porém o ódio que tentava tomar o controle de seu corpo estava ficando tão forte que nem a ferida sentia direito mais. Quando se deu conta estava em pé sendo encarada pela dupla.
-Lauren, tente se controlar! O Ren... A ideia dele não era essa!
-Sai da frente -o mascarado se atravessou ainda mais no caminho, ainda que parecesse uma vara verde de tanto que tremia. -Sai da frente!
-Não. Eu não posso.
Lauren viu como o ruivo se encolhia atrás de Takumi, o rosto distorcido pelo medo.
A sua única vontade era o rasgar em pedaços, tanto que sorriu ao imaginar.
Sua mão pousou no ombro de Takumi, pronta para o empurrar para o lado.
-Não faça isso -seus dedos apertaram a carne dele, o fazendo estremecer. -Não vale a pena.
-Ele tem que pagar.
-Não, não agora que estávamos tão bem.
Os dedos que o apertavam umedeceram de repente, o que forçou Lauren a tirar os olhos do tão amedrontado Kamaitchi.
Seu coração pesou ao ver que era sangue, e não o suor que encharcava suas roupas e pele.
"É do Takumi. Sangue do Takumi".
Uma rachadura percorreu o ódio e o partiu. Na mesma hora os ecos da máscara sumiram de sua cabeça.
-Tem razão -a faca caiu e puxou seus dedos do ombro do rapaz, arrancando outra estremecida.
Outra rachadura percorreu em sua memória, dessa vez acompanhada da dor de seu ombro e um cansaço anormal.
-Que bom... Ei! -a jovem despencou nos braços do mascarado, quase fazendo que a derrubasse no chão.
E então partiu, as memórias enfim foram libertas.
-O que raios aconteceu com ela?!
-E eu vou saber, Ren?! Me ajude!
As piscadas ficavam cada vez mais longas e escuras. Numa hora suas pernas pareciam dois macarrões no chão e na outra estava sendo carregada nas costas de seu colega de barraca enquanto Ren abria passagem pelo mato.
"Por que estou tão fraca? Por que ele está nos ajudando? Não confio nele".
-Você vai ver o que é bom se não confiar em mim -ouviu o ruivo esbravejar.
"Eu não estou falando. Ele lê mentes?".
-Você está falando sim -a voz de Takumi esclareceu, -só deve estar muito grogue para notar.
-Isso... Explica...
Sei corpo se tornou cada vez mais pesado, em especial suas pálpebras.
-A gente tá chegando. Só não apague.
Tentou concordar e nem sacudir a cabeça conseguiu.
De repente viu a si mesma sentada no banco de sua antiga escola, observando uma comoção no meio do pátio. Aparentemente alguém havia derrubado outro aluno sem querer e o fez bater a cabeça.
Piscou e voltou.
-Não apaga, sério.
-Eu... Hm...
Outra piscada.
Havia decidido se aproximar, pois pelo jeito quem fez o outro cair desmaiou. Era estranho como ninguém notava sua presença, nem mesmo a diretora e os monitores.
Piscou e enxergou as curvas da barraca mais a frente.
-Chegamos.
Nem sequer respondeu antes de mergulhar de vez naquela visão.
Lauren atravessou o comboio de adultos que não parava de ligar para a Unidade de Pronto Atendimento de sua cidade.
Por que ninguém a puxava? Ninguém dizia um mínimo "A"!
E enfim conseguiu chegar no centro de toda a emergência. Havia um casal deitado no piso de concreto do pátio, sendo que o garoto de cabelos pretos e pele amarela ainda exibia sinais de consciência, esfregando as mãos no rosto.
A jovem cobriu a boca ao ver a quantia de sangue que escapou da cabeça dele, agora tampado por uma bola de tecido. Porém a situação piorou ao Lauren reconhecer a si mesma deitada no meio do pátio, inconsciente.
Não poderia ser real, simplesmente não havia como.
O peito se contorceu em angústia e seus olhos se arregalaram novamente.
Aquele garoto não era ninguém além de Takumi Rivers.
Como havia o feito bater a cabeça daquele jeito?!
Diante de tamanha dúvida, só pode aceitar que buraco ficava cada vez mais embaixo.

Máscaras e Demônios (Revisando)Onde histórias criam vida. Descubra agora