Carta para a Perda

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Cartas para Emma

A primeira carta que escrevi foi logo após a morte de mamãe. Ainda era muito nova e não estava sabendo lidar com aquilo, era totalmente desolador!

Papai nunca estava em casa quando precisava e Elliot era apenas um bebê. Lembro-me que estávamos no inverno, aquele dia havia sido o último dia de aula e então entraríamos de recesso por conta do Natal. Seria mais um dia onde papai estaria trabalhando e a única companhia que tinha era de Elliot e vovó Lea que só sabiam dormir.

Mais cedo havia passado pela psicopedagoga da escola e fui aconselhada a demonstrar meus sentimentos de alguma forma, só não sabia como. Com pequenas pesquisas descobri diversas formas.

Poderia tentar embarcar em aventuras emocionantes, no entanto papai nunca permitiria.

Poderia gritar aos ventos em algum canto afastado, isso se não fosse tão tímida.

Precisava de algo diferente e teria que ser com algo que eu sabia muito bem como lidar e que não me desse vergonha.

Foi quando o vi. O pequeno caderno cravejado por simples pedras de bijuteria, totalmente colorido e brilhante. Recordo-me perfeitamente dele e de como mamãe havia feito junto a mim. Ela sempre me encorajou com a escrita.

Confecção era uma paixão de Evellyn Harvey e ela havia passado tal paixão para mim. Aquele havia sido um passatempo nosso por muitos anos e naquele dia em específico havíamos terminado de por diversas lantejoulas em sua bolsa predileta, uma vermelha de couro que estava descascando. Ainda a tenho guardada junto a outros tesouros.

Após a última produção mamãe teve a idéia de fazer o mesmo com o caderno de capa azul. Não estávamos fazendo um trabalho linear e coordenado, simplesmente enchemos de lantejoulas e glitter, sem pretensão alguma, apenas descontração.

Seria nele onde extravasaria tudo. Era perfeito e eu não podia continuar a reprimir todo aquele sentimento. A dor de sua perda havia sido grande demais para uma criança de apenas onze anos aguentar sem apoio.

Lembro com perfeição de cada palavra posta ali pela caneta de tinta cor de rosa com focos brilhantes.

"Querida Perda,

Essa é a primeira vez que lhe escrevo e, sinceramente, espero ser a última. Eu sempre soube que não seria fácil, muitos a descrevem como passageira, mas eu sei muito bem que não é assim. Sei que poderia ter perdido mais. Deveria saber lidar com o que ficou comigo e o que você levou.

Mamãe sempre me falou sobre você, porém eu não esperava que fosse algo tão cruel e repentino, mas como vovó Lea sempre diz: A vida é um jogo e não cabe a nós coordenar suas regras, apenas devemos prosseguir com elas.

Gostaria de um dia poder conviver com tudo isso, mas a perda de mamãe é muito recente e dolorosa. Queria pelo menos ter me despedido ou ao menos que Elliot a conhecesse da maneira que eu a conhecia. Sei que ele ouvirá histórias e mais histórias sobre ela, mas não será o mesmo.

Ele saberá como ela sempre foi uma mulher incrível, que contava diversas coisas sobre sua vida, principalmente sua história com papai, o quanto esperaram por mim e o quão felizes foram cada minuto, éramos uma família alegre, principalmente com a chegada dele.

Finalmente teria alguém em quem mandar e poder defender. Confesso que esperava por uma menina para que brincassemos juntas e pudesse pentear seus cabelos, mas mesmo não sendo uma irmãzinha eu estava feliz, todos estávamos, isso até a descoberta da doença.

A iluminada Evellyn Harvey estava com câncer em um estágio avançado e eu não consigo contar nos dedos as vezes em que a peguei chorando e ela tentou esconder. Mamãe sempre tentava parecer a mesma, mas não era. A doença a consumia aos poucos e isso era perceptível para qualquer um.

Sempre vi como aquilo atingia não só minha mãe, como todos ao seu redor. Porque alguém tão bondosa quanto ela tinha que sofrer dessa forma? Nunca me pareceu justo, afinal ela tratava a todos tão bem e nunca deixou de sorrir de forma verdadeira, mesmo em seus últimos minutos.

Sentia que estava a perdendo. Sentia isso a cada instante e foi por isso que tentei passar o máximo de tempo com ela. Às vezes implorava para poder faltar aula, mas ela e papai insistiam de que tudo ficaria bem e o tratamento a estava fazendo melhorar, só que eu sabia que não era verdade. Eles não conseguiam me convencer com aquela mentira de forma alguma. Mas eu sempre baixava a guarda e os obedecia. Confiava em suas palavras, pois queria acreditar em tudo senhorita Perda. Isto é, até o dia em que vovô John apareceu em minha escola.

Aquilo não parecia nada bom e ao chegar em casa e procurar em todos os cantos só pude constatar o que já sabia, ela não estava mais ali. Papai e mamãe haviam mentido para mim e eu acreditei neles. Eu confiei em suas palavras apenas para ser enganada e nem mesmo pude me despedir e isso me marcou de uma forma inesquecível.

Mamãe havia partido. Papai estava longe, não longe em corpo, longe em pensamentos e sempre trancado em seu quarto. Eu queria tentar lhe confortar de alguma forma, mas estava com raiva. O culpava por não ter me despedido. Ao meu ver ele havia me enganado, mesmo que no fundo eu soubesse que não era verdade e que estava sofrendo tanto quanto eu.

Vovó Lea desde a morte de mamãe esteve presente sempre fazendo algo que achava que ajudaria de alguma forma. Já vovô John se mantinha tão distante quanto papai.

Para quê tudo isso?

Por que tão dolorosa?

Eu a amava incondicionalmente e ela foi tirada de mim.

Você poderia ao menos ter nos dado um aviso e não ter sido um sentimento inconveniente.

Então senhorita Perda, peço encarecidamente que seja um sentimento mais humano e menos destruidor.

Atenciosamente,

Emma Harvey Dixon"

Assim que lacrei a carta em um envelope sem destinatário foi simplesmente como se um enorme peso tivesse saído de minhas costas.

Sabia que não estava livre daquele sentimento, porém foi libertador. Nunca havia falado sobre aquilo nem mesmo com a psicóloga e agora que havia conseguido por tudo em uma única carta me sentia mais leve.

Entendia muito bem que minha vida continuaria e com isso outros sentimentos fortes viriam e naquele momento decidi: aquilo seria meu marco, o início das cartas, o início da liberdade dos sentimentos que me sufocavam.

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