II

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Se tinha algo de que Elena se lembrava bem dos ensinamentos nas aulas, mesmo depois de alguns anos sem frequentar a escola, era de que o mundo havia mudado bastante. Não só fisicamente, já que as sociedades evoluíram junto das ideologias e das inovações tecnológicas. Acontece que nem sempre a evolução caminha para algo melhor.

Foi no fim de ano. Elena não se lembrava do dia nem da hora, mas sabia que havia sido em dezembro. Ela se lembrava bem da aura de renovação que o último mês do ano parecia trazer para os moradores daquela pacata cidade.

Aquele foi o primeiro uivo. O primeiro "desaparecimento". O garoto já era famoso pela região após se tornar vítima, anos antes, de uma picada quase fatal de uma cobra venenosa e rara, a qual foi capturada e levada para a capital por cientistas. Naquela tarde, ele estava sozinho em casa, a mãe no trabalho, o pai em uma viagem, e o irmão mais novo passando uma semana das férias na casa de seu melhor amigo da escola. Elena estava varrendo a varanda de casa, até que escutou o primeiro uivo. Mais três se seguiram e os vizinhos começaram a se inquietar com o barulho. Não haviam muitos cachorros naquela parte da cidade e o uivo era de um timbre distinto.

Quando o quinto soou pela rua, um estrondo de algo grande e pesado sendo derrubado no chão assolou a vizinhança. Naquele ponto, todos já sabiam de onde os barulhos estavam vindo: da casa do infeliz que fora picado por uma cobra e que agora corria o risco de morrer nas garras de um lobo selvagem. A senhora que morava de frente para Elena achou que seria prudente ligar para a mãe do garoto.

Não se passou muito tempo até que ela chegou do trabalho, assustada com a ligação inesperada de sua vizinha. Entrou cautelosamente dentro de sua própria casa, enquanto uma pequena multidão de curiosos se formava nas varandas vizinhas. Ninguém esperava ouvir o grito da mulher ou, se esperava, não imaginava que seria daquela intensidade. Tudo se acalmou.

Passaram-se cerca de 10 minutos de completo silêncio, até que outro vizinho do garoto tomasse a iniciativa de ir ver o que havia acontecido. A cena que presenciou não era o que esperava encontrar. Em sua cabeça, haveria muito sangue e, talvez, um lobo raivoso do qual teria de fugir. Porém, o que encontrou foi uma mãe sentada no chão, chorando desesperadamente com o filho inconsciente nos braços. Nada de sangue. Nada de lobo.

O vizinho chamou a ambulância. Acalmaram a mãe. Por que ela estava chorando? Seu filho estava bem afinal, não estava? Fora só um desmaio. Uma rápida averiguação por parte dos médicos foi suficiente para afirmar que não, não estava tudo bem. A cena presenciada mais cedo pela mãe a havia deixado em choque. Foram necessários meses até que ela conseguisse explicar o que havia encontrado quando entrou dentro de casa.

É claro que, até a mãe conseguir se pronunciar, outros casos assustadoramente semelhantes já haviam sido relatados, então todos já esperavam pelo o que ela iria dizer. A mulher nunca se recuperou totalmente, pois quando entrou em casa, encontrou o filho estranhamente transtornado. Suas pupilas estavam dilatadas. Suas veias saltavam para fora e pulsavam no compasso de seu coração. Sua pele estava pálida. Suas feições não eram leves, eram intensas, quase como se ele estivesse sentido a maior raiva de toda a sua vida.

Em um primeiro momento, ele havia tentado atacar a mãe, que segurou seus braços firmemente. Quando pensou que não seria mais capaz de suportar aquele esforço tremendo de seu filho para segurar em seu pescoço, os olhos do garoto perderam a cor por um segundo. Suas feições se suavizaram, seu corpo relaxou, ele desmaiou. Os dois corpos caíram no chão, já que a mãe estava sem forças para segurar o filho ou para segurar a si mesma. As lágrimas vieram. Sua prole havia tentado atacá-la. O seu filho. Sangue do seu sangue.

Meses depois, a mãe já conseguia compreender que aquele não era ele. Não fora intencional. Seu corpo havia sido tomado por algo desconhecido. Bom, isso foi o que a explicaram. Mas o que ninguém sabia e, arrisco dizer, jamais saberá, é que aquele era sim seu filho, cem por cento seu filho, inteiramente, sem falsidades, sem filtro.

Depois daquele dia, o garoto desapareceu. Não que alguém não soubesse onde ele estava, mas é que ninguém da sociedade, nem ao menos sua família, poderia imaginar para onde o haviam levado. Provavelmente, penso eu, para o mesmo laboratório da capital onde a cobra que o picou anos antes havia sido levada.

O Lobo Dentro de NósOnde histórias criam vida. Descubra agora