Um vento gelado bate no meu rosto. Fecho um pouco mais o zíper da jaqueta. Do meu lado direito, algumas luzes etéreas no casarão da Paulista. Quantos fantasmas não devem morar naquela casa? Lembro-me de uma festa que fui ali, quando a casa parecia um pouco menos morta que hoje.
Não há como ignorar o pensamento de morte. Acabo de sair de uma palestra sobre a prevenção do suicídio. Estamos em setembro. "Setembro Amarelo", dizem os anúncios no metrô. Para mim, é um setembro sem cor, setembro sem flor, sem vida.
Prazer, Adriana Moraes, eu sou uma suicida!
Tive pensamentos suicidas por duas vezes, sempre com facas. A primeira há vinte anos, após o término de um namoro, e agora.
Da primeira vez, foi apenas um pensamento, uma quase vingança; queria que quem me fez sofrer sofresse com a minha morte. Aos vinte e poucos anos, aquilo fazia algum sentido. Eu imaginava que em uma daquelas noites de revival, eu tivesse coragem suficiente. Depois do amor, olhando nos seus olhos embriagados de prazer, eu mergulharia uma adaga no meu peito, expondo o meu coração. Ele me olharia perplexo, sem poder se mexer, preso entre as minhas pernas, pela última vez. Então, eu deixaria meu corpo cair sobre o seu peito e o abraçaria com meu sangue. Naquela época, tal pensamento me trazia algum conforto.
Da segunda vez, eu só queria arrancar a dor do meu peito, e, se isso me custasse a vida, era um preço pequeno. O sofrimento tomou conta de tudo. Eu não conseguia fazer mais nada. Havia dias... não, quase todos os dias, era quase impossível me levantar da cama e com frequência uma crise de choro me atirava no chão. Eu só queria acabar com tudo, com aquela dor insuportável que já durava seis meses.
A faca da cozinha sobre o balcão da pia me chamava: um convite a não-ser. Peguei-a nas mãos, senti o aço frio entre as palmas, admirei a beleza indiferente da lâmina. Testei a ponta afiada no indicador até quase furar a pele. Meu coração acelerou. Segurei a faca apontando para mim. A sensação do cabo em minhas mãos era prazerosa, trazia-me paz. Pousei a ponta sobre a boca do estômago, o plexo solar, fonte da energia vital. Seria o ponto perfeito para me apagar da existência.
Então, fui invadida por um turbilhão de pensamentos: a causa da dor que me levara até ali, o histórico do meu pai, o meu filho na escola, e a minha completa falta de destreza com armas brancas. Lembrei da força necessária para destrinchar a carne com aquela faca. Ela certamente me rasgaria, mas não sem um certo esforço. Talvez se eu me jogasse sobre o balcão o peso do meu corpo trabalhasse a meu favor. Seria quase poético morrer ali.
Voltei ao passado, tinha 15 anos, estava chegando da escola, encontrei meu namorado da época me esperando na esquina. Aquilo era estranho; ele costumava ir me buscar depois da aula, mas ficar ali na esquina não era normal, nem o carro de polícia estacionado em frente ao meu prédio. Éramos vizinhos, eu costumava almoçar na casa dele. Naquele dia, a diarista chorava na cozinha. Não havia mais ninguém em casa. Servi-me de um prato de picadinho com arroz. Tiago não quis comer. Sentamos na sala de jantar. Ele me olhava com cara de pena. Deixei o garfo no prato e ameacei:
"O que está acontecendo? Eu não vou comer enquanto você não me contar?"
Ele contou uma estória bonitinha de que meu pai tinha ido para o hospital. A verdade era bem pior. Ele tinha câncer e nenhuma perspectiva de cura. Minha mãe encontrou-o morto. Suicidou-se com um tiro na boca.
Naquele dia eu não almocei. Algum tempo depois, eu parei de comer carne. Até hoje, quando vejo um picadinho lembro daquele dia. A dor que ele sentia continuou em nós após a sua morte, achou morada em cada um que ficou. Eu estava prestes a fazer a mesma coisa. A minha dor não acabaria com o meu fim. Meu filho me encontraria morta na cozinha envolta em uma poça de sangue. Era a estória se repetindo. Eu não podia fazer isso com meu menino. Eu não podia deixar a dor vencer.
Joguei a faca dentro da pia e me agarrei ao balcão, as lágrimas escorriam em meio a soluços incontroláveis. Deixei o meu corpo escorrer para o chão, abracei os joelhos e chorei até meus olhos doerem.
Eu precisava de ajuda foi isso que me levou àquela palestra poucos dias depois. Queria ouvir o que as pessoas tinham a dizer para pessoas como eu, para quem viver se tornou insuportável. Eu precisava de algo além do "pense nas coisas boas"? Um suicida não vê coisas boas, não há nada além de dor. Não temos mais esperança!
Então eu ouvi três coisas que fizeram algum sentido: Pare. Respire. Não fique sozinho.
Pela primeira vez, eles não ignoraram a minha dor, como fizeram a minha família e meus amigos. "Chega de drama", era o que eu mais ouvia, "já está na hora de partir para outra, vida nova!" Tá certo que eu não podia contar o motivo verdadeiro, mas qualquer mulher recém-separada, que acabou de fazer uma mudança de outro estado para um apartamento em reforma teria motivos para ficar descompensada. Só que no mundo de hoje, a dor precisa ter prazo de validade. As pessoas podem ser bastante compreensivas se você estiver triste por um dia, ou uma semana, mas se esta tristeza for persistente, não vai ter nenhum ombro disponível para você chorar. É cada um por si.
Não estou dizendo que as pessoas são más. Elas só estão muito ocupadas com as suas próprias rotinas e lutando contra os seus próprios demônios para prestar atenção em você. Então, se quiser sair desse poço, vai ter que escalar sozinho. E eu estava ali, caminhando pela Paulista, sozinha, no fundo do poço, toda quebrada, tentando organizar tudo que ouvi.
O foco principal da palestra e provavelmente a causa do maior número de suicídios foi a depressão. Eu não tenho depressão, meu pai também não tinha. Ainda assim compartilhamos pensamentos suicidas. A dor é o fator comum. E nossa dor tinha uma causa. Na depressão, nem sempre a dor tem uma causa. Às vezes o mundo simplesmente perde a cor e não há mais porque viver.
Uma psicóloga lembrou que a depressão não é a causa de todos os suicídios, quase a aplaudi, mas me contive em simplesmente ouvir. Eu não estava ali para falar. Um segundo palestrante, autor de um livro sobre depressão baseado na própria experiência com a doença, relatou algo que me chocou. Ao conversar com um grupo de suicidas sobre o que levara cada um a pensar na morte, um rapaz contou que foi o fim de um relacionamento. Identifiquei-me imediatamente. Morrer por amor, haveria algo mais sublime? Puro, como em Romeu e Julieta?
Então, o palestrante confessou à plateia que não deveria julgar, mas intimamente pensou: "Como o cara pode pensar em se matar "só" por causa disso?"
As aspas são minhas. Como assim "só"? Tive vontade de gritar. Aquele homem não aprendeu nada com a dor. Não entendeu que a dor de cada um é diferente e não temos a menor ideia do tamanho da dor do outro. Levantei-me e saí revoltada. Já tinha ouvido o que precisava.
Pare. Respire. Não fique sozinho. Repeti ao deixar a sala. Aquele seria o meu mantra.
O ar frio da Paulista foi acalmando a minha raiva. Senti uma imensa empatia por aquele rapaz que teve coragem de amar tão intensamente. Neste mundo de relacionamentos efêmeros, onde nada é muito profundo, ele teve coragem de se envolver a tal ponto, que não valia mais a pena viver sem o seu amor. Infelizmente, o rapaz apaixonado não estava ali, talvez ele fosse mais útil e verdadeiro aos suicidas do que um ex-deprimido que quer vender seus livros.
Amar não é para os fracos, requer coragem. Ao contrário do que vemos nos filmes, amar não garante a felicidade, só amar não é suficiente. O amor dói, rasga o seu coração, destrói as suas defesas, bagunça a sua vida, faz você em pedaços. O amor é a doença, mas também a cura. Talvez esta lição seja uma das mais difíceis que eu aprendi.
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Comentários são bem-vindos. Eles ajudam muito a melhorar a estória!
Estrelinhas também. Elas são motivadores de escritores. Nós gostamos muito de estrelinhas! <3
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Alma Nua - amostrinha
SpiritualAo voltar a sua cidade natal após um casamento desfeito, Adriana se reaproxima de seu melhor amigo em busca de conforto. A cumplicidade entre eles aumenta, despertando algo inesperado que irá mudar suas vidas para sempre. Esta não é uma estória de a...