Capítulo 1: A nada divertida aventura no mundo das caixas

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Um ano antes...

Quando contei à família e alguns amigos que meu casamento acabou, pude notar a preocupação em seus olhos. "Você está bem? Se precisar de qualquer coisa estou aqui?" A maioria dizia. Eu estava bem, estava ótima, foi a melhor decisão que tomamos. Viramos amigos, nos tornamos pessoas melhores.

Claro, não vou ser hipócrita, a separação não é a coisa mais maravilhosa no mundo. Há dor na mudança, há lágrimas. Nós dois choramos, muitas vezes abraçados, mas sabíamos que era a coisa certa a fazer. O casamento já tinha terminado, o que faltava era a coragem para admitir. Conversamos muito, como sempre fizemos e decidimos o rumo que cada um seguiria. Era a hora de partir e eu fui.

Acabara de me mudar para São Paulo. Sou paulistana, nascida e criada na capital, mas morei fora durante 15 anos. Estava feliz por estar de volta. A vida sorria cheia de promessas; infinitas possibilidades. Eu tinha a chance de recomeçar do zero, ou quase, estava mais madura, não cometeria os mesmos erros, provavelmente cometeria outros. Isso parecia maravilhoso.

Minha preocupação era meu filho pré-adolescente, 12 anos. Ele estava triste. Sentia falta dos amigos que deixou em Vitória, da escola, da nossa casa, da presença do pai, do mar. Eu tentava compensá-lo me fazendo presente, mostrando as atrações culturais que a nova cidade oferecia, mas não podia acompanhá-lo na escola. Não podia ajudá-lo a fazer novos amigos. Isso me partia o coração.

Na manhã do primeiro dia de aula, no mês passado, Jorginho chorou. Eu o abracei. Sabia que não seria fácil enfrentar tudo aquilo sozinho. No fim das aulas, eu estava lá para recebê-lo na porta da escola. Ver o seu sorriso foi meu melhor presente. Aos poucos, as coisas iriam se ajeitar. Eu tinha certeza.

A mudança não foi fácil. A reforma do apartamento não estava pronta, cozinha e área de serviço interditadas. As coisas chegaram e ficaram acumuladas na sala, um labirinto de caixas, prestes a desmoronar sobre a minha cabeça. Aos poucos, eu fui colocando tudo no lugar. Primeiro os quartos, as roupas, e, quando a reforma terminou, pouco antes do pedreiro levar o resto da minha sanidade, eu pude finalmente tirar o fogão e a geladeira da sala e colocar os móveis no lugar.

A sala foi o último cômodo. Olhar o sofá de cabeça para baixo e a estante desmontada no chão não era muito animador. Convoquei Jorginho para trabalhar, que a contragosto me ajudou a fazer a ordem nascer do caos. Depois de muito esforço e alguns hematomas, tínhamos uma casa habitável novamente. Era a hora de mudar.

Ficamos um mês morando com meus tios e eu já sentia sinais de que estava ficando tempo demais. Sabe aquele ditado que diz que visita é igual peixe, depois de três dias começa a cheirar mal? Imagine depois de um mês! 

"Prá mim, bastava ter uma cama e um chuveiro quente e eu já me mudava. Não estou mandando vocês embora, não me entenda mal, Drica." Minha tia me encarava, as palavras duras em um tom açucarado.

"Eu sei, mas já está na hora de irmos mesmo. A reforma acabou finalmente." Uni as mãos em oração.

"Maravilha! Vamos passar no supermercado e eu faço as primeiras compras para vocês." Ela sorriu radiante. 

"Obrigada." Retribuí o sorriso. "Obrigada por tudo." Coloquei o cabelo atrás da orelha. Era nítido que ela não nos queria mais ali. Um mês de convivência mostrou o quanto éramos diferentes, valores, gostos, costumes. Eu me perguntava se fazia mesmo parte daquela família. Até mesmo as verduras que eu escolhi no supermercado naquele dia foram motivo para crítica.

"Só tem folha neste carrinho, Drica. Por isso que o Jorginho é magro desse jeito!" Ela ajeitou a bolsa no braço rechonchudo e apontou para uma prateleira cheia de doces. "Escolhe uns docinhos prá você, Jorge. Precisa comer senão fica do tamanho da sua mãe!"

Fechei os olhos por alguns segundos e respirei fundo. Não adiantava retrucar.

Jorginho pegou uma tortinha de limão e olhou para mim. Assenti com a cabeça. Ele entregou a caixa à tia Vívian.

"Só isso?" As mãos de unhas bordô bem-feitas pousaram a caixa no carrinho, acompanhadas de mais duas de outros doces que nunca comemos.

Fiquei feliz quando tudo acabou. Sou grata por ter sido acolhida por meus tios, mas ainda mais por ter um outro lugar para onde ir. 

A rotina foi ficando mais fácil. Dava para ir a pé à escola, ao supermercado e eu tinha mais tempo para me ocupar das caixas. As janelas voltaram a ter cortinas e eu pude cozinhar novamente e ter uma rotina de trabalho. Também voltei a escrever. Postei meus primeiros poemas e elegi meu filho como beta oficial.

Fiz algumas tentativas de rever amigos, refazer os laços perdidos em tantos anos distante. Consegui marcar com Lara e Aline de assistir um show, mas e o Jorginho? Liguei para a minha tia.

"Tia Vívian, você pode ficar com o Jorginho nesta sexta? Eu sei que já abusei bastante da sua hospitalidade, mas marquei um show com umas amigas. Não queria que ele ficasse sozinho agora no começo. Acabamos de mudar. Posso levá-lo aí?"

"Puxa, nesta sexta não vai dar. Acho que vou viajar. Mas olha, o Jorginho já está grande. Aposto que vai curtir ficar sozinho. Eu, na idade dele, adorava ficar sozinha, me sentia independente."

"Tudo bem, tia Vívian." Engoli a seco. "Obrigada assim mesmo. Beijos."

"Não por isso, Drica. Divirta-se, querida!"

Desliguei o telefone com um misto de desapontamento e revolta. Tá certo que eu morei longe desde que o Jorguinho nasceu, mas pensei que mudar para a mesma cidade nos aproximaria. Pensei que eu finalmente poderia contar com um certo apoio da família. Mais uma vez eu teria que me virar sozinha.

O show não era tarde. Fiz um jantar em casa para as meninas. Pizza caseira. Jorginho comeu quatro pedaços! Filhote devidamente alimentado e de banho tomado, só faltavam as recomendações:

"Filho, me liga se precisar de qualquer coisa. Eu volto correndo!" Apertei os olhos.

"Não esquenta, mãe!" Ele me deu uma piscadinha, agitando os seus cílios loirinhos.

Abracei-o como se fosse a última vez. Eu sentia que estava prestes a partir para outro continente.

O show foi maravilhoso. Há anos eu não dançava. Há anos eu não pensava em mim. Cheguei em casa antes da meia-noite e sem ter perdido nenhum sapatinho! As luzes estavam todas acesas. A TV ligada na sala sem ninguém. Jorginho estava na cama. Olhos bem fechados e um riso preso, quase escapando.

"Você não está dormindo!"

Ele abriu os olhos e me encarou "Como você sabe?"

"Ouvi os seus passos da porta. Você correu e se enfiou na cama!"

"Por que você pensa isso?" Olhinhos castanhos me encaravam curiosos.

"Hummm." Coloquei o indicador sobre a boca.  "As luzes acesas e a TV ligada são uma boa pista, não acha?"

Ele acenou a cabeça.

"Já escovou os dentes?"

"Já!" Sorriu desafiador.

"Então boa noite, meu bichinho!" Beijei-lhe a testa. "Amo você!"

"Também te amo."

Apaguei a luz e saí do quarto. Uma voz que ia engrossando com o tempo me chamou de volta.

"Mãe?"

Coloquei a cabeça para dentro do cômodo. "Oi?"

"Como foi o show?"

"Foi incrível, filho!" Sorri com todos os dentes. "A banda é ótima! Amanhã eu conto mais. Agora dorme. Boa noite."

"Boa noite!"


***

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Alma Nua - amostrinhaOnde histórias criam vida. Descubra agora