❤ Capítulo 4

4.7K 1.2K 208
                                    

Agnes

A principal vantagem de trabalhar no único posto de saúde do bairro é que você acaba conhecendo todo mundo. E não digo apenas de forma superficial, temos a oportunidade de realmente nos relacionar com cada paciente.

Alguns nos mimam tanto que, com frequência, recebemos bolinho fresco para o café da tarde, pão de queijo, torta... Benefício de se morar em uma cidade do interior. Gosto tanto dessa intimidade que é uma das coisas que mais me ajuda a esquecer a música sufocada dentro de mim.

— Como foi o grupo de debate no final de semana, dona Marinalva? — Sorrio ao oferecer meu braço e acompanhar a mirrada senhora de feições enrugadas pelo pequeno corredor da recepção até a sala de enfermagem.

— Foi incrível, Agnes — ela afirma retribuindo o sorriso e ajeitando a armação do óculos, grande demais para seu rosto fino. — Nós discutimos sobre os possíveis desdobramentos do ataque dos EUA ao Irã.

— Que legal, qualquer dia desses vou lá participar também pra saber o que tanto deixa esses olhinhos brilhando — aviso, ajudando-a se sentar na cadeira assim que entramos na sala ampla e bem iluminada.

— Vai mesmo, você vai gostar. — É nítido a alegria e o orgulho que sente do seu trabalho. — Nossas discussões estão riquíssimas.

— Aposto que sim!

Pego sua ficha na mesa e coloco as luvas enquanto converso sobre quais conclusões o pessoal chegou. Quem vê Dona Marinalva, passando distraída pela rua, nem imagina como essa senhora é inteligente e politizada.

Mesmo com quase 70 anos e a saúde debilitada por causa da diabetes, ela ainda dá aulas de história para adolescentes da rede estadual de ensino. Não contente, uma vez por mês coordena um projeto da escola, aberto à comunidade, sobre a história da política.

Com a morte prematura do marido durante a Ditatura Militar, sem filhos e família por perto, a mulher acabou se mudando da capital para cá e ficou até hoje.

Apanho o aparelho de glicose do armário ao meu lado e espeto seu dedo, afiro também a pressão e realizo os procedimentos de rotina necessários. Amo quando ela vem aqui fazer o acompanhamento do quadro clínico porque sempre acabo aprendendo algo novo.

— Como a senhora está, Marinalva? — Doutor Walter aparece na porta e puxa assunto logo que termino tudo.

— Com o açúcar em 112, estou ótima! — brinca, levantando-se da cadeira.

— Que bom, isso mesmo. Tem que se cuidar! — O médico toca o ombro dela com carinho e vira-se na minha direção. — Você pode ficar com a senhora Creuza na salinha de observação até o filho dela chegar? Padre Juracir tem missa daqui a pouco e eu vou comer algo rapidinho pra não atrasar as próximas consultas agendadas.

— Claro, doutor.

— Ela precisa ir para o hospital, aqui infelizmente não podemos fazer muito — explica olhando para os papeis que segura na mão. — Além dos primeiros sintomas, agora apresenta forte dor abdominal. Prescrevi uma medicação enquanto isso pra amenizar a dor.

— Nossa, coitada. O filho ficou muito preocupado, já disse que está a caminho — conto, saindo da sala de enfermagem com Dona Marinalva e ele.

Com as relações hoje em dia tão superficiais, é muito bonito presenciar o carinho sincero de um filho com os pais. Quase posso ouvir a voz nervosa do rapaz no meu ouvido de novo.

Acompanho a mulher franzina, para a consulta preventiva da diabetes no dentista, e já viro à esquerda no meu novo destino. Padre Juracir, com sua barriga grande e cabelo calvo, está na porta esperando por mim.

Ouça | Sentidos 3 [DEGUSTAÇÃO | DISPONÍVEL NA AMAZON]Onde histórias criam vida. Descubra agora