O enterro do meu melhor amigo

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O enterro do meu melhor amigo
 
Jimmy e eu fomos amigos por muitos anos. Éramos vizinhos, colegas de sala e de gandaia. Andávamos sempre juntos. Curtíamos dos mesmos videogames e bandas de rock. Tínhamos realmente muita coisa em comum e isso nos fazia acreditar que em algum lugar no céu estava determinado que seríamos irmãos, mas algo acabou dando errado e nascemos em famílias diferentes. Jimmy sempre foi mais bonito e com mais habilidade na guitarra. Também pudera! Com esse nome, se o cara não soubesse tocar guitarra seria uma vergonha. O pai dele era alucinado com Led Zeppelin.
Eu e o Jimmy andamos juntos como unha e carne por mais de treze anos. Ele desistiu do vestibular para seguir a carreira de pseudo astro do rock. Eu acabei enfiado em um escritório. O que nos separou não foi o fato de escolhermos (ou escolherem por nós) profissões tão diferentes. Tínhamos muita coisa em comum para manter o vínculo. Muita coisa mesmo! Inclusive nos apaixonarmos pela mesma mulher. E aí, meu caro, não há amizade que resista.
Jimmy era mais legal, tinha um jeitão mais despojado. As meninas iam ao delírio com ele. Eu era um sujeito comum. A Lara realmente valia à pena e eu estava caidinho por ela. Mas por saber que o Jimmy também a amava, por reconhecer que ele era melhor do que eu e por tentar impedir que nossa amizade fosse destruída por causa de um rabo de saia, pensei em tirar o meu time de campo.
O problema é que a Lara não gostava do Jimmy. Ela gostava de mim. Eu não tive alternativa a não ser pedi-la em namoro, depois em noivado, e, em seguida, em casamento. Foi uma cerimônia linda, com música, risos e abraços. O Jimmy estava lá. Já não éramos mais tão amigos. Ele viajava muito e depois do meu casamento eu nunca mais o vi. Sabia que era inevitável, mas mesmo assim lamentei o fim de tudo. Foram bons aqueles tempos em que dirigíamos sem rumo pela cidade, tocávamos heavy metal na garagem e bebíamos até cair. Naquela época a morte nunca foi uma possibilidade. A gente não perdia tempo pensando nisso. Era como se a morte acontecesse só para caras como Kurt Cobain, Jim Morrison e Jimi Hendrix. Nossos planos iam até o infinito.
Anos depois, com a explosão das redes sociais e toda essa parafernália da internet, acabei encontrando o Jimmy como amigo virtual. Ele já tinha milhares de amigos e eu só consegui curtir a página. Mas ainda assim dava para acompanhar as fotos que ele postava sobre shows, festas e dos novos amigos que ele tinha feito. Eu não conhecia nenhum. Ele parecia ser um cara muito querido. Cada imagem ou vídeo que postava tinha milhares de visualizações e curtidas. Um sujeito muito popular. Ele parecia feliz.
Resolvi mandar uma mensagem para ele. Após uma semana sem resposta, acabei me esquecendo que havia escrito. Eu precisava trabalhar quase dez horas por dia para conseguir alimentar minha esposa e meus dois filhos. Não gostava de levar serviço pra casa, queria ter tempo para conversar, ler histórias, jantar todo mundo junto. Essas coisas que quase ninguém mais faz. Mas a Lara acha importante e eu concordo com ela. Quando meus filhos crescerem quero que se lembrem que eu os amo de verdade, não só da boca pra fora.
Foi numa noite dessas, em que o trabalho se acumula e não conseguimos escapar, que eu abri meu computador para virar a madrugada quebrando cabeça, e vi uma mensagem do Jimmy. Ele havia respondido. Fiquei meio eufórico, parecendo ter encontrado algo bem valioso que estava perdido. Ele tinha palavras jimmynianas... e eu conseguia entender tudo: “Cara, que viagem você aparecer logo agora. Sua mensagem me fez  mergulhar no passado de uma maneira fantasmagoricamente psicodélica. Você não sabe o quanto foi uma merda ser feliz sem meu brother. Choro o leite derramado todos os dias. Quando você roubou minha garota, foi como um soco no estômago. Meu ego nunca havia sido tão ferido. Odiei você por alguns anos, até que a saudade gritou mais alto. Só que eu sou mais orgulhoso do que sentimental e por causa disso nunca te procurei. Achei que ia morrer sozinho, mas então me apaixonei de novo. Conheci a garota mais bonita de todo o universo – depois da Lara, seu sortudo filho da mãe! – E por falar em morte... A minha está perto. Não vai ser explosiva como a do Cobain, nem entorpecedora como a do Morrison, mas mesmo assim vai ser morte. Um sujeito chamado Câncer conseguiu vencer. Miserável! Saio da vida para entrar para a história... Haha! Mesmo que seja a sua e a da minha mulher. Não se atrevam a me esquecer!”.
Ele terminou o e-mail assim, sem mais nem menos. Sem deixar um contato. Nada! Passei três dias tentando encontra-lo até ver a notícia de seu velório anunciada num jornal. Quando eu cheguei, Jimmy estava exposto no meio da sala e uma mulher chorava sozinha, respondendo às mensagens no celular que pareciam não parar de chegar com aqueles apitinhos irritantes.
- Olá. Sou amigo de infância do Jimmy. Meus sentimentos.
Ela se levantou, apertou minha mão e agradeceu a visita. Conversamos um pouco sobre ele, mas o celular não a deixava em paz.
- Onde estão todos?
- Quem? – ela fungou.
- Os amigos do Jimmy.
- Ele não tinha amigos.
- Mas ele tinha milhares de amigos nas redes sociais. Eu vi.
- Sim, sim. Estão aqui me mandando os pêsames. Estou esgotada de tanto digitar agradecimentos. Não vejo a hora de responder a todos e encerrar a conta dele. Eu ajudava nessa parte sabe... Jimmy odiava tecnologia. Pra ele só existia aquela guitarra, a mesma de vinte anos atrás.
Eu conhecia aquela guitarra. Olhei para o Jimmy. Estava mais magro e abatido. Mas era o mesmo amigo de sempre. O meu melhor amigo. Ela suspirava, respondendo às infinitas mensagens que chegavam. E então eu fiz a única coisa que poderia ter feito:
- Me passe a senha. Vou ajudá-la a responder às mensagens.
- Oh! Obrigada. Que gentileza!
E assim passamos o resto da tarde. Recebendo as condolências dos milhares de amigos virtuais do Jimmy. Todos sinceramente chateados pela perda. Mas nenhum deles fazia ideia de como Jimmy era um cara legal.
               
 
 
 

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