Teto de Vidro

589 19 85
                                    

Conto de Stolzes_Herz

Um conto de Fabrício Barbosa

(música para ilustrar: "Death by sex", Kim Petras)

Texto recomendado para maiores de 18 anos. Contém descrição gráfica de violência, consumo de drogas e sexo explícito.

I

As luzes de LED da Avenida Oceânica refletiam na redoma que separava a praia do restante da cidade. Após a costa baiana ter sido irremediavelmente poluída ao longo de décadas, aquela fora a solução encontrada pelo poder público no ano de 2100, para evitar que a população entrasse em contato com a agora radioativa água do mar.

"Um teto de vidro, que irônico", pensava Paradox enquanto fumava seu cigarro eletrônico, apoiada em uma mureta que se estendia por toda a extensão do passeio público. Atrás dela, as águas negras da Praia da Paciência quebravam contra a areia, agitadas. À sua frente, uma dezena de viciados, prostitutas e travestis seguiam sua rotina de todas as noites no Largo de Santana. Aquele, que outrora fora um disputado ponto de encontro da boemia de Salvador, agora se transformara num reduto de miséria e criminalidade, lugar que os chamados cidadãos de bem soteropolitanos buscavam evitar a qualquer custo.

O carro preto flutuante chegou silenciosamente e parou em frente à mureta que servia de apoio à garota. Paradox se aproximou do veículo apressada, os saltos sintéticos de sua bota fazendo barulho contra o revestimento metálico que tomara o lugar da antiga pista de paralelepípedos. Apesar dos protestos em nome da preservação histórica do local, a troca fora necessária com a chegada dos carros voadores às lojas. Não se pode impedir o progresso, os governantes disseram. "Não fosse o progresso, talvez ainda pudéssemos tomar banho de mar", Paradox refletiu.

Ao se aproximar do carro, a garota viu a imagem de um cliente habitual ser exibida na tela AMOLED acoplada na lateral do veículo, onde antes costumavam ficar as janelas.

–– Você está atrasado –– foi só o que ela disse, aproximando a boca do local onde havia um microfone embutido na tela.

–– Não se preocupe, boneca –– a voz distorcida do homem atrás do volante soou pelo alto-falante na lateral do carro. –– Sempre arranjo tempo pra você.

Paradox ouviu o barulho da porta traseira sendo destrancada. No entanto, não se moveu de onde estava.

–– O que foi, baby? –– perguntou o homem no veículo. –– Ficou tímida mesmo depois de tudo que já fizemos? –– completou ele, em tom sarcástico.

–– Você sabe como eu trabalho –– Paradox suspirou. –– Depois daqueles... problemas que eu tive, só faço com pagamento adiantado.

Dizendo isso, Paradox retirou seu smartphone da pequena bolsa que carregava consigo e exibiu a tela acesa, com um QR code ao centro.

–– Aproxime-o do leitor, aí do lado do microfone –– instruiu o motorista, secamente. Paradox fez como ele pediu e, em instantes, a transação foi confirmada e os bitcoins já haviam sido transferidos para a conta da garota.

–– Agora entra logo na droga do carro –– completou o homem, impaciente.

Paradox deslizou a porta magnética cuidadosamente e se acomodou no banco de trás, após certificar-se de que seu cliente estava mesmo sozinho dentro do carro. Após travá-la, o veículo imediatamente começou a se movimentar em alta velocidade, mal permitindo que a garota registrasse a paisagem dos bairros de Supra-Federação e Neo-Ondina nos visores ao seu lado. Apesar disso, Paradox mantinha a calma. Era preciso ter sangue frio naquela profissão. Um passo em falso poderia significar o fim de uma carreira, ou até mesmo de uma vida.

Tempo de Cores (Contos LGBTQIA+)Onde histórias criam vida. Descubra agora