Estilhaços

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Saí daquele dia da casa da Darcy com um nó no meu coração. Começava a “cair a ficha” que estava indo me encontrar com uma terapeuta e nem sabia por onde começar. Não sabia o que dizer primeiro e por um momento me senti um pouco ridícula em expor minha vida pessoal. Como se tudo que deu errado até hoje, tivesse uma grande culpada, eu com a minha incompetência para a“arte” de viver. Enquanto dirigia meu carro, um filme passava pela minha cabeça. Todos meus problemas pessoais vieram à tona, mas o grande vilão desse filme era a possibilidade do fim do meu casamento, por inúmeras coisas que estavam acontecendo. 
Eu amava muito Thomaz, mas sentia como se tivesse um estranho em casa. Estávamos longe um do outro, longe demais para falar a verdade, e eu nunca tinha tempo para mudar esse cenário e lidar com os nossos problemas. Estava em um dilema, ou mantinha a paz dentro de casa pelo bem estar da Olívia ou, com muito esforço tentava resolver algumas coisas, que simplesmente viravam brigas homéricas. Eu perdia meu casamento de vista, chegava a pensar e contestar se eu realmente amava aquele homem que se deitava toda noite ao meu lado e só. 
Foi me lembrar de experiências recentes e também de lindas lembranças de um passado distante e já se abriu um buraco muito grande em meu coração, e algumas lágrimas foram impossíveis de ser contidas. Essas lágrimas diziam muito sobre a raiva, o amor, o orgulho e a agonia omitida, que sentia no meu dia a dia. Tudo isso por não achar uma saída que fosse boa para todos. Talvez se não tivesse uma filha eu já estaria bem longe de Thomaz, mas toda a minha preocupação era voltada a ela. Não queria que sofresse, eu me sentiria muito culpada. 
Quando cheguei à frente da clínica da doutora e psicóloga Rita Hurick, uma clínica modesta, toda branca, com violetas azuis em toda sua frente, me senti tão bem olhando aquela fachada, e incrivelmente voltei a minha infância, lá quando tudo era mais fácil. 
Minha infância no Brasil, antes mesmo de ir morar nos Estados Unidos. Aqui tínhamos uma chácara em Mina Gerais. Minha avó paterna, Ruth, ainda era viva e me lembro do quanto ela gostava das suas rosas, dos seus girassóis e suas violetas. Lembro-me que adorava aguar suas plantas com ela e logo depois, tomávamos uma deliciosa caneca de café com biscoitos de polvilho, enquanto ela contava suas histórias do passado, como por exemplo, quando ela decidiu, mesmo contrariada, que o nome do meu pai seria Augusto, como o do meu avô. Que saudade que isso me trás, dos seus olhinhos azuis e seu sorriso fácil. Já meus avós maternos eram americanos, Mr. and Mrs.Lee, ou senhor e senhora Lee. Peter e Mary, meus avós maternos nunca tiveram muito tempo pra mim, eram muito práticos, frios e excelentes administradores. Não me deram muito carinho, mas graças a eles tive um teto para morar, mesmo que em um quarto de hotel. Acredito que gostariam que minha mãe e eu tivéssemos nascido homens para continuar os negócios, mas para decepção deles nascemos mulheres e minha mãe além de não continuar o negócio, foi hippie até conhecer meu pai em uma de suas viagens “em busca da luz e graça espiritual” que ela fazia. E literalmente encontrou a luz. Encontrou-se com meu pai que era uma graça, se apaixonaram completamente e nove meses depois deu a luz a mim! Sim sou fruto de uma primeira noite de amor totalmente irresponsável. E não é que tudo deu certo para eles? Não é à toa que minha mãe se chama Valentina. 
E só de pensar nessa possibilidade de vida plena ou não, da minha infância eu aterrissei novamente à minha realidade, e estava novamente em frente à fachada “Clinica de Psicologia Rita Hurick”.
Lembro-me de estacionar o carro e ter dificuldades de trancá-lo, minhas mãos estavam trêmulas e frias, sempre fico assim quando vou de encontro a qualquer coisa desconhecida. Toquei a campainha e o portão destravou. Simplesmente, quando entrei a esquerda em um portal, havia um arco de glicínias azuis. Era a coisa mais linda do mundo! Todo esse contato com a natureza deveria ser pensado estrategicamente para os clientes ou pacientes se sentirem mais calmos e a vontade.
Entrei na recepção e não havia mais ninguém, além de uma menina que aparentava ter 18 anos. Quando fui pedir informação, do que precisava fazer para ser atendida, ela prontamente me perguntou:
“Senhora Tavares?”
“Oi? Sim! Sou eu!”
Nunca vi nada igual na minha vida! Que organização!
“Muito prazer, meu nome é Carolina, a senhora será atendida em cinco minutos, assim que a doutora terminar de fazer os últimos registros da paciente que foi atendida há pouco. Agradeço a sua chegada antecipada, isso nos auxilia a manter nosso bom atendimento!”
“Ok, de nada!”
“A senhora pode se sentar aqui na sala de espera, eu a chamo quando estiver tudo pronto para ser atendida. Pode se servir com água ou café! Fique a vontade!” 
“Obrigada!”
A menina parecia mesmo um robozinho, que tinha decorado todas as informações, mas muito educada mesmo! Até àquela hora só havia me encantado com o lugar! 
Ali fiquei sentada por no máximo 4 minutos e a garota me chamou.
“Senhora Tavares a doutora já está pronta para te atender, me acompanhe por gentileza.”
Eu fiquei até envergonhada com tanta educação! Acompanhei-a até a porta da sala onde estava Rita. Ela já estava sentada na poltrona, lendo em uma prancheta algumas anotações. Carolina bateu na porta e ela olhou para nossa direção. Tinha olhos verdes, muito claros, era impossível não olhar nos olhos daquela mulher. Pele pálida, típica de quem trabalha em local fechado, cabelos lisos, curtos e pretos e usava uma roupa inteira preta. Parecia que estava de luto, a não ser por sua sandália creme e seu lenço vermelho. 
“Doutora, a senhora Tavares está aqui.”
“Oh, Olá Elisa! Fique a vontade para se sentar aqui!”
“Olá, com licença!”
“Então Elisa, meu nome é Rita, sou terapeuta há 25 anos e gostaria de saber em que posso te ajudar?”
“Bom, estou aqui em primeiro lugar porque já não consigo lidar bem com meu trabalho. Desde que minha filha nasceu eu não consigo mais me identificar com a advocacia! E depois disso resolvi trabalhar como tradutora e professora de Inglês. Mas agora preciso pegar um caso de uns amigos meus e preciso conseguir lidar com essa situação. Porque gostaria de verdade de ajudá-los. Não queria atendê-los mal por uma limitação minha. Estava na área há sete anos e nunca fiz um trabalho mal feito.”
“Entendo. Parece-me que sempre foi uma grande advogada. Precisamos entender a causa dessa sua limitação repentina. O que você sente exatamente quando vai trabalhar?”
“Com raiva! Fico pensando o quanto essa profissão me suga, enquanto eu deveria ficar em casa com a minha filha!”
“Certo. Você está me dizendo que trocou a advocacia por outra profissão. Essa segunda te permite dedicar-se mais a ela?”
Quando ela me fez essa pergunta, parece que eu tinha levado um soco na cara, fiquei vermelha, roxa, azul...
Eu dava aula no período que Olívia estava na escola, da mesma forma que era o tempo que me dedicava ao escritório, já que era meu e eu ia conforme a minha necessidade. Minha lista de clientes era fixa, porque me dedicava a empresas. As minhas traduções, praticamente levava o tempo que eu estudava os casos e as leis, então não! Só as raras vezes que precisava ir às audiências, que ficava longe de Olívia, mas era bem raro, porque tinha o apoio de outra advogada que trabalhava comigo. Ou seja, não! Mudar de profissão não mudou o tempo da minha dedicação à minha filha. Mas respondi afirmativo, porque engoli em seco!
“De certa forma sim!”
“Explique melhor”
“Como assim?”
“Você me respondeu que “de certa forma sim”. Gostaria de saber que forma é essa?”
Eu me senti quando era criança e aprontava e estava tentado mentir. De repente me senti um pouco ansiosa e tive de ser grossa! Era a minha defesa a aquele insulto!
“Não estou entendendo, a senhora está achando que é mentira?” 
“Eu entendo a sua ansiedade. O que me parece Elisa, que quando você me responde “ De certa forma, sim!”, para uma questão objetiva, de “sim” ou “não”, me parece que esse não é um motivo real. Estar perto da sua filha é de fato importante, mas não me parece a causa real da sua raiva a advocacia. Gostaria de falar mais sobre isso?”
“Não, não gostaria não. Preciso ir embora! Agora!”
“Tudo bem! Faça o que estiver com vontade de fazer!”
“Você Doutora, não falou NADA sobre, contrato, sobre pagamento... Quanto é essa sessão?”
“Nada! Você ficou cinco minutos”
“Muito obrigada viu!”
Saí de lá bufando, peguei o carro e fui buscar Olívia!
Nem me lembro do que a Carolina tentou me dizer quando passei pela recepção, pois passei por ali como um foguete e achei a chave do carro tão rápido (o que não é comum, mulheres de bolsa grande sabem bem disso) que quando percebi já estava a dois quarteirões da casa de Darcy. Nessa hora foi quando minha adrenalina baixou, comecei a tremer e meu sangue estava quente e parecia ter voltado a circular pelo meu corpo. Senti como se tivesse levado um soco no estômago, estava sem ar e tive que estacionar o carro. Foi sorte ter encontrado uma vaga a dois metros de onde eu estava, parei o carro, abri os vidros e pude respirar. Olhei para frente e vi um casal jovem e apaixonado, sentados no chão em frente a uma casa, abraçados e sorridentes. O menino encostado no ombro da menina, que estava de costas para ele, mas totalmente segura entre seus braços. Parecia que o tempo ali para eles tinha parado. Comecei a sentir um gosto salgado na minha boca, nem percebi quando tinha começado a chorar, foi algo totalmente involuntário.
“Por que estou chorando?” Me perguntava por dentro. Eu estava tão bem, pelo menos acreditava que estava. Tinha uma família linda, um emprego legal e sogros que me davam um suporte quando meu marido viajava. O que mais eu queria? E aí me liguei que queria o que aquele casal estava tendo naquele momento. Um segundo de ternura, beijos longos, olhos nos olhos, uma paixão avassaladora, viagens e afins. Queria me sentir viva novamente. Eu tinha uma família maravilhosa, mas uma vida maravilhosamente fria e sem graça. Meus dias eram rotineiros, não sabia há quanto tempo não falava eu te amo para meu marido. Quando sentávamos juntos para jantar, ele engolia a comida e só falava sobre as grandes vitórias em audiências. 
Thomaz sempre foi muito ligado ao trabalho. Até porque, para chegar no patamar que está agora, não foi nada fácil para ele. Meus sogros, Seu Tadeu e Dona Berenice eram muito humildes. Seu Tadeu era jardineiro de uma família muito rica e Dona Berenice era lavadeira e uma costureira de mão cheia. Eles conseguiam viver com dignidade, mas sem nenhum conforto. Thomaz estudava pela manhã em uma escola pública e de tarde ajudava o pai no trabalho. Ele era o filho caçula, só que seu irmão, dois anos mais velho morreu com 17 anos de overdose. Theo era amigo de traficantes do bairro e além de vender drogas era viciado. Coitado do Seu Tadeu e Dona Berenice, além do sofrimento do dia a dia da vida deles, ainda tinham que lidar com o vício e depois morte do filho mais velho. Meu ex marido me disse, que mesmo com todo sofrimento que seu irmão causava a família, sempre foi uma pessoa muito carinhosa, atenciosa e ele sempre ameaçava, que se um dia pegasse Thomaz usando qualquer droga, bateria muito nele e ainda, o entregava para polícia como se fosse o pior bandido do bairro.
Meu ex-marido, não gostava muito de tocar nesse assunto, mas pelo pouco que conversamos, tinha um amor sem medida pelo irmão e quando ele morreu, Seu Tadeu quis que seu filho caçula trabalhasse com ele, não poderia se arriscar a perder outro filho por causa do tráfico. Thomaz ia todas as tardes a casa da tal família que seu pai trabalhava. A dona da casa se encantou por ele e como não tinha filhos resolveu bancar seus estudos. Foi sua sorte grande, a única oportunidade que tinha ganhado graças a sua simpatia. Tenho que confessar!Meu ex-marido sempre teve essa qualidade, era inteligente por natureza e muito simpático. Ele sempre foi muito bem quisto em todos os lugares que passava. Tinha muito amigos, de todas as idades, jeitos e estilos. Começou a estudar no primeiro ano do colegial em uma escola particular, foi ridicularizado por causa do seu jeito falar, se vestir e sua limitação cultural. Mas Thomaz não só se adaptou à escola, como no segundo semestre já era o melhor aluno e o mais popular. Quando foi para a faculdade, passou em uma federal em 10º lugar.
Tudo isso foi um presente para seus pais, mas Thomaz ficou um pouco arrogante, todas essas conquistas subiram um pouco na sua cabeça. Além de arrogante, popular e um bitolado nos estudos. Não sei como uma pessoa normal consegue ser tudo isso ao mesmo tempo. Pelo menos na minha época de escola, ou você era o popular, ou o atleta bonito e arrogante ou nerd bitolado em livros. Eu mesma nunca fui nada. Não era a excluída, não era a bitolada e muito menos a atleta. Eu fazia parte de uma minoria normal. Notas boas, mas não excelentes, estudava o necessário, ia para as festas quando tinha vontade e fazia exercícios sem me matar. Acho que a influência hippie da minha mãe, onde o equilíbrio era o enfoque, me contagiou de certa maneira. Mas sempre fui mais eu, independente de qualquer qualidade ou defeito. Sinto saudades dessa minha fase, porque hoje sou sim viciada em trabalho (de uma maneira bem mais branda que Thomaz, sou um pouco perfeccionista. Isso explica minha ida até a Rita), em academia, café e claro, não dispenso meu cigarro quando estou nervosa, mas isso sempre atrapalha um pouco meu êxito na academia. O que a idade e os problemas fazem com a gente! Não sei se tenho mais aquela Elisa desapegada dentro de mim. 
E foi exatamente assim que consegui conquistar meu ex-marido. Esse meu jeitão autêntico de ser que não coloca nenhum valor desmedido a nada e nem ninguém. Me lembro que depois que me formei no colégio, quis fazer faculdade no Brasil, não aguentava mais meus pais, que mais pareciam meus filhos, e nem meus avós, já bem velhinhos reclamando de tudo. Precisava da minha paz e do meu cantinho e isso só conseguiria se saísse de lá. Lembro quando o comunicado do vestibular chegou na minha caixa de e-mail dizendo que estava aprovada. Foi minha carta de alforria, um dos melhores dias da minha vida. Me mudei para o Brasil em duas semanas. Aluguei um apartamento só para mim e ele era tudo. Eu mesma pintei as paredes de branco e no meu quarto desenhei um céu cheio de estrelas com uma estrela cadente caindo. Esse desenho era para quando tivesse saudades da minha mãe, que apesar de ser louca, era extremamente carinhosa e cuidadosa comigo. Ela sempre me levava para o gramado do hotel e ali ficávamos deitadas, admirando o céu e aguardando para que caísse a primeira estrela cadente, e quando víamos, fazíamos um pedido.
Ela dizia que todos os pedidos que ela fazia com fé a uma estrela, se realizavam. Isso me marcou por toda vida e eu tinha que ter um pouco dela no Brasil.
Meu primeiro dia de faculdade foi onde tudo começou. Sentei na última carteira, coloquei minha bolsa e fiquei aguardando a aula começar. Foi quando entrou um cara simplesmente lindo, sorridente, de mãos dadas com uma menina japonesa e com muitos amigos em volta. Pelo tanto de barulho que eles estavam fazendo, pensei que todos iam sentar ali no fundo comigo. Todos sentaram menos Thomaz, o menino lindo, que puxou a cadeira da primeira carteira. Um dos amigos que entraram junto com ele gritou:
“Uma vez nerd, sempre nerd né Brother?” 
Ele sorriu e respondeu:
“Alguém precisa se dar bem, para bancar as festas e viagens para os amigos daqui um tempo!”
“Ta certo irmão, fica aí então!”
Dei um sorriso discreto, mas não fugiu aos olhos de Thomaz, que olhou para mim e me encarou por dois segundos, mas logo se voltou para frente. Meu coração gelou, porque a namorada dele na época percebeu e me encarou logo depois. Ela se chamava Mya, era extremamente linda e sexy, tudo que uma garota quer ser na faculdade, mas sempre me olhou torto, mesmo eu sendo “nada”.
A primeira aula começou e era de Oratória. O professor sorteou dois nomes para que se apresentassem na frente da sala, nada mais era do que um primeiro exercício, para que com suas observações desse início à materia. Eu torci os dedos pensando:
“Não serei eu, não serei eu”
E o professor chamou:
“Ahn Elisa e Thomaz”
Era muito azar para uma pessoa só. Eu pagando o maior mico, na frente de uma sala, onde não conhecia ninguém e o primeiro cara que achei bonitinho na faculdade, estava disputando uma apresentação pessoal comigo, foi o fim. 
O professor falou:
“Primeiro as damas!”
Olhei para ele com um sorriso amarelo e comecei a falar.
“ Bom, primeiramente boa noite a todos. Meu nome é Elisa Tavares, tenho 19 anos e morei com meus pais por muito tempo nos Estados Unidos...”
E assim descrevi toda a minha trajetória de vida e o motivo de ter escolhido direito, falei por 5 minutos mais ou menos e logo depois veio Thomaz, que falou boa parte da sua história e, como um bom competidor, falou pouco mais de 10 minutos. 
Quando o professor foi nos avaliar, me lembro exatamente das suas palavras.
“ Os dois foram muito bem. Parabéns! Mas meu rapaz essa você perdeu. Eu solicitei que fizesse uma “apresentação do caso e não uma defesa completa.” Quando fazemos direito, precisamos ter atenção a todos os detalhes, muitas vezes uma vírgula faz toda a diferença. Estar atento a isso é o que garante a vitória ou a derrota. Em uma simples apresentação, quanto mais sucintos formos melhor para prender a atenção. Segundo um estudo científico, se falarmos mais de 7 minutos de uma vez, dispersamos a atenção das pessoas que estão nos ouvindo. Muito bem querida Elisa, você ganha essa caneta da faculdade e garante um ponto na nota da sua prova.”
A cara de decepção de Thomaz foi gritante. Sabe quanto que isso me abalaria se eu tivesse “perdido”? Em nada! Hoje eu entendo o porquê, ele já tinha perdido muita coisa na vida e não podia perder mais nada. Mas fiquei feliz com a minha caneta, quando tocou o intervalo saí com meu material e fui tomar um café. 
Thomaz me chamou quando estava próxima a cantina:
“Hei, nada mal para uma menina!”
Me indignei com a colocação machista dele. E como nunca consigo ficar quieta quando estou indignada, respondi.
“Além de não saber perder você ainda é machista, Thomaz dos Santos”
“Desculpe, não quis parecer machista, mas é que sempre é mais fácil para quem teve oportunidade a vida toda.”
“Mal perdedor, machista e vítima. Nossa você é uma pessoa bem legal.”
“Vim te fazer um elogio, quem é você para me julgar?”
Abri minha bolsa, peguei a caneta e empurrei contra o peito dele.
“É isso aqui que você quer? Então está aí! Seja feliz, sinto muito não poder transferir a nota pra você, ok?”
Ele ficou com a boca entreaberta, como se pela primeira vez tivesse cruzado o caminho de uma pessoa sem apegos. Parece que sempre teve que competir e correr atrás de tudo e esqueceu que a vida era mais que isso. Sai de perto dele e fui tomar meu café. 
Os meses se passaram, e sempre que cruzava os corredores o encontrava rodeado de amigos e com aquela japonesa pendurada no seu pescoço. Nem olhava pra sua cara. Nesse tempo fiz bons amigos e tive até um namoradinho, mas rompi logo, enjoava rápido das pessoas. Lembro-me que a primeira vez que entrei com ele na sala, Thomaz nos acompanhou com os olhos. Chegamos no final do primeiro ano e, por incrível que pareça, sem me esforçar tanto era a segunda aluna da sala. Acho que tinha escolhido a área certa para trabalhar. Sempre existiu uma competição interna entre eu e o Thomaz com relação às notas. 
Até que um dia o mesmo professor de Oratória nos pediu para que fizéssemos um discurso em conjunto, para fechar o ano e resumirmos, em forma de defesa, que a sua matéria era de extrema importância para nossa área. 
Eu não acreditei que ia ter que fazer isso em conjunto com aquele cara mala. 
Cheguei para ele e disse:
“Eu faço um resumo e te mando por e-mail e você acerta os detalhes, ok?”
“Eu não trabalho assim, vamos ter que nos reunir. Dezenove horas vou na sua casa, amanhã”
Falou, virou as costa e saiu. Fiquei sem resposta. E me perguntei:
“Que cara é esse que não namora sábado a noite?”
No fundo fiquei feliz de ter o cara mais lindo e inteligente dentro do meu ap.
Cheguei em casa e a arrumei como nunca, em plena sexta feira a noite. Não que ele merecesse tudo isso, mas é que estava realmente muito bagunçada. Quando terminei de lavar o banheiro me dei conta de que, como ele saberia o endereço da minha casa?
“Um grande filho da mãe” 
Falei alto fechando a porta do banheiro com força. Dez minutos depois, a insuportável da síndica subiu até meu apartamento reclamando. 
“Boa noite Elisa. A senhorita, não deve fazer barulho esse horário! Estamos todos querendo dormir!”
“Desculpe dona Luciene, foi o vento”
Ela olhou com aqueles olhos esbugalhados, de quem não se convenceu do que eu tinha falado. 
“Ah sim, então feche a janela viu queridinha?”
“Claro, com prazer! Mil desculpas atrapalhar seu sono”
Ela ergueu as sobrancelhas, virou de costas e desceu o elevador com um olhar de satisfação. Satisfação de quem ama encher os “pacovás”. Coitada! Ela era uma senhora sozinha, mas tinha hora que eu ficava a ponto de explodir, me pegou para Cristo. 
Fui até a cozinha, fiz um chá de camomila e peguei alguns biscoitos, para começar a fazer o trabalho que o professor tinha pedido, porque com certeza o Thomaz não viria e ia me passar para trás. 
Terminei o trabalho e deitei na minha cama e ali deitada me senti tão sozinha, sabia que poderia demorar para pegar no sono. 
Dito e feito! Acordei no outro dia já eram umas três da tarde, porque só consegui dormir às quatro da manhã. Comi qualquer coisa que tinha na geladeira de almoço e voltei para cama, estava acabada. Foi quando levantei assustada, com murros na minha porta. Corri até a porta com medo de que a síndica tivesse passando mal, não sei, foi a primeira coisa que pensei. Destranquei a porta e levei um susto com um cara alto, com um cabelo impecavelmente bem arrumado e com os olhos estalados em mim. 
“De pijama até agora?”
Me vi de shortinho curto e blusinha quase transparente perto do cara mais arrogante e metido da escola, ainda bem que aquela noite dormi de sutiã!
“Pois é, estou! Por quê? Você queria que eu estivesse produzida pra você? É alguém importante que eu nem sabia?”
“Baixa a guarda, eu vim em paz para fazer o trabalho”
“Como você sabe o endereço da minha casa? E, aliás, como o porteiro te deixou subir?”
“Moro na rua de cima do seu apartamento, quase sempre estou atrás de você quando vem embora da faculdade. Só um toque, você deveria cantar um pouco mais baixo quando está na rua, as pessoas podem te achar um pouco louca. Seu síndico é amigo do meu pai , ele tem um pequeno comércio de adubos, me conhece bem e por isso me deixou entrar.” 
Eu e minha mania de cantar quando estou andando. Não é por mal, é sempre sem querer!
“Ai como você tem prazer de ser insuportável, entra logo. Espera aqui na sala que vou me trocar” 
“Beleza!”
Nunca na minha vida fiquei tão estabanada e indecisa com uma roupa. Vesti duas vezes meu vestido no avesso e depois o coloquei ao contrário. Fiquei indecisa se colocava perfume, ou não, acabei não colocando porque não tinha tomado banho e quando vi minha cara no espelho, deu vontade de chorar, não acredito que ele me viu toda inchada. Lavei o rosto, escovei os dentes e prendi o cabelo com uma trança de lado. Chegando na sala, ele estava com o meu trabalho pronto no colo e analisando. 
“Você fez o trabalho?”
“Fiz!”
“Por que? Falei para você que queria discutir e fazer junto com você!”
“Pois é, mas você nem me explicou e nem me pediu o endereço da minha casa achei que você iria me sacanear na frente do professor na segunda –feira”
“ Você está certa. Te deixei um péssima impressão né? Sabe o que é muito esquisito? Nunca foi assim com ninguém. Sem querer ser arrogante, mas sempre fui amigo de todo mundo e nunca criei inimigos”
“Dá para perceber que você me escolheu como bode expiatório, né?.”
“Não é só isso. Me incomodei também pela sua capacidade. Tenho de admitir você é muito inteligente e será uma excelente advogada”
Ruborizei nessa hora com certeza absoluta. Como eu tenho raiva, quando eu fico envergonhada de quase me transformar em um tomate!
“Nossa, vindo de você é um grande elogio”
Ele riu com o insulto, porque com certeza a minha vermelhidão respondeu mais do que a minha resposta.
“Hahaha, você nunca se desarma né? Relaxa Elisa”
“Desculpa é que você me pegou de surpresa”
“Olha, me desculpe por tudo também, amigos?”
“Porque não?”
“Me deixa ler o que você escreveu”
Ele leu todo o trabalho e gostou muito. Decidimos colocar algumas coisas a mais para a defesa e montamos tudo para apresentar. Depois que terminamos, ele pediu um copo de água. O filtro da minha casa ficava dentro do meu quarto, porque é o lugar que mais fico e eu tenho muita sede. Ele me seguiu até meu quarto e se surpreendeu com a minha pintura.
“Nossa que lindo! Foi você que fez?”
“Sim, fui eu!”
“Demais, parabéns! Tem alguma representação?”
“Na realidade tem sim, mas eu acho um pouco cedo para essa intimidade você não acha?”
“Não acho não! Gostaria de saber”
“Minha mãe tem um estilo meio diferente das outras mães. Vamos dizer que ela é um pouco hippie com uma mistura de curtidora. Mas é muito ligada a natureza, a estrelas e enfim, ela acredita em um Deus sem muitas regras, além do amor. Diz que cada estrela cadente que cai, é uma chance que Deus dá para fazermos um pedido. E cada estrela cadente que nós duas vemos juntas, fazemos um pedido especial.”
“Que pedido?”
“Na maioria das vezes repetíamos essa frase:“ E que amanheça com o bem, que adormeça com a paz e que o amor sempre nos fortaleça”
“Sua mãe deve ser demais!”
“Ela é sim, todos dizem isso! Um dia quero ser tão amada quanto ela é pelas pessoas.”
“Como assim? Você não se sente amada?”
“Como ela não. Minha mãe tem um toque especial, ela cativa as pessoas. Meu pai é louco por ela, todo santo dia ele deixa um bilhetinho na geladeira. “Não esqueça que você é dona dos cabelos mais lindos e cheirosos que uma mulher poderia ter, te amo.””
“Nossa, sério? Todos os dias? Meus pais são apaixonados, eu acho. Mas meu pai não faz isso todo dia.
“Pois é! Meu pai faz. Mas se você conhecesse minha mãe, ia ver como é fácil ama-la”
“Adoraria! Bom, preciso ir. Agora que terminamos tudo!”
Me senti um caco com aquelas palavras. De uma forma eu esperava que ele falasse algo do tipo “ eu amaria você”, não custava sonhar. Levei-o ate a porta e ele se despediu. Entrei em casa e estranhamente não ouvi o elevador descendo, achei que ele poderia ter ido pela escada. Foi quando depois de uns 3 minutos minha campainha tocou.
“ Não seria difícil eu me apaixonar por você”
Colocou a mão, carinhosamente no meu rosto e me roubou um beijo. O tempo parou àquela hora para mim. Quando o beijo acabou ele se afastou e abriu a porta do elevador.
“Me desculpa, não sei porque fiz isso”
E eu fiquei ali sem dizer nenhuma palavra
Ele desceu pelas escadas e eu fiquei parada tentando entender tudo que tinha acontecido ali. Não sei bem explicar se fui eu que possuía um braço para fechar a porta, ou se um braço me possuía porque até então só ele se movimentava. Andei vagarosamente até a minha cama e cai de costas no colchão. E as palavras que saíram baixinho foram:
“Eu não acredito” 
Depois um pouquinho mais alto.
“Eu não acredito”
Depois um pouquinho mais alto e por sílabas.
“EU NÃO A CRE DI TO”
Comecei a gargalhar sozinha, dar pulinhos pelo apartamento, rodopiei e até dei um selinho no meu reflexo no espelho. Passou um tempinho e tocou novamente minha campainha e meu coração gelou. Fui para frente do espelho, dei uma bagunçada no cabelo como se estivesse acabado de acordar e não dando rodopios pela casa. Quando fui atender a porta, voltei para o espelho e dei pequenos beliscos na minha boca, afinal, tinha que estar dormindo, mas tinha que estar bonita. Fui para porta, respirei fundo e abri.
“Senhorita Elisa, o que é que está acontecendo aqui?”
Senti-me como se tivesse em um show de “rock in roll” e na melhor parte do solo, alguém desligou a guitarra. 
“Acontecendo aqui? Eu estava dormindo dona Luciene!”
“Mas eu ouvi um barulho daqui de cima”
“Dona Luciene, seu aparelho auditivo deve estar enganando a senhora, eu estava dormindo porque amanhã tenho que ir ao asilo, vou ler para os velhinhos. Se não dormir bem, como eu vou?” 
Eu sei eu menti e peguei pesado, mas espero que esse pecado seja perdoado. E depois de uns anos eu realmente fui ler para os velhinhos porque a minha consciência ficou pesada desde esse dia. Eu sabia que Dona Luciene era praticante de muitos trabalhos voluntários e encontrei essa saída para resolver o problema.
“Nossa minha filha, me desculpe. Realmente já está acabando a bateria do meu aparelho. Boa noite Lisinha.”
E desde então as visitas frequentes de Dona Luce (somos íntimas agora) cessaram. 
Voltando àquela noite, eu simplesmente não consegui dormir e no outro dia de manhã fui dar uma volta de bicicleta. 
Andei por várias ruas e decidi ir para região leste da cidade. Quando me deparei com uma cafeteria toda de tijolinho a vista, com o nome de “Café terapia” e um luminoso escrito “Blues”. Eu estava andando há um tempo, aquela cafeteria era tão charmosa, resolvi entrar. 
Quando abri a porta, ouvi o som daquele típico sininho avisando que alguém novo está entrando no recinto. Sentei-me em um banco no próprio balcão e esperei ser atendida. Não tinha muita gente na cafeteria, os garçons atendiam andando de patins, sentia um cheirinho quente e doce no local e um blues tocando tão baixinho que me senti apaixonada. De dentro de um corredor saí uma mulher negra, com um sorriso largo, vestida impecavelmente bem, com um coque banana e um perfume muito bom. Ela chegou perto de mim e perguntou. 
“Como posso ajuda-la filhinha?”
Pensei que ela poderia começar me falando de onde ela consegue ter tanto bom gosto e classe.
“Gostaria de tomar um café e comer uma fatia de bolo, vocês tem bolo aí?”
“Claro que temos! Você parece estar apaixonada, vou preparar algo especial para você. Tem pressa?”
“Não!”
Ela lavou as mãos, pegou uns ingredientes e começou a preparar uma massa de bolo. Colocava cada ingrediente com tanto amor, parecia que estava pintando um quadro. Ela colocou o bolo para assar e se voltou para mim. 
“Café?”
“Claro”
“ Um cappuccino com canela para a linda moça apaixonada!”
“Obrigada! Mas não estou apaixonada!”
“Com esses olhos brilhando, sorriso fácil e alma leve? Isso é estar apaixonada. Ninguém engana a Darcy aqui.”
Dei uma risada e comecei a contar do lindo menino da faculdade para ela. E fui além, resumi minha vida! Quando falei da minha avó Ruth e do meu amor por ela, Darcy se calou e foi tirar o bolo de dentro do forno e enquanto ela colocava uma cobertura que tinha acabado de tirar da geladeira me disse:
“Minha avó me ensinou tudo o que sei hoje. Assávamos bolos, eu pintava quadros com ela e sempre cantando músicas do seu tempo. Minha mãe me abandonou, mas para me dar o maior presente que a vida poderia me dar. Uma mãe e avó maravilhosa. Tudo que tenho e sei é por causa dela. E quer saber? Tudo o que ela me ensinou a fazer não se compara com quem ela me ensinou a ser. Ela sempre me dizia. ‘Nada de triste deve ser valorizado, quem tem tristeza não tem fé, quem não tem fé não da vez para o amor e quem não tem amor não tem saúde então ame em qualquer momento e sorria sempre, é sempre o melhor remédio’”.
Com os olhos marejados ela colocou o bolo na minha frente e mais um copo de café e disse
"Gostei de você menina. Esse é por minha conta”.
Darcy foi em direção a um pequeno palco que tinha ali ao lado, com os olhos ainda marejados e com uma voz incrível começou a cantar “I say a little prayer” de Aretha Franklin. Fiquei admirada com tanta sabedoria e talento daquela mulher.
Desde aquele domingo, nunca mais deixei de visitar Darcy, que virou uma amiga como poucas na minha vida. Só não posso contar tanto com ela, como com Dário e Hugo, porque sempre está muito ocupada, a cafeteria toma muito tempo e normalmente está cheia de amigos pedindo conselhos. Nunca conseguimos termos longas conversas, sempre são curtas e muito filosóficas da parte dela, acho até que faz isso para resumir ainda mais nossos diálogos e conseguir simplificar tudo em apenas uma frase, que por sinal, eu sempre preciso de explicações. A troca de experiências com Darcy me transformou muito e me ajudou, até certo ponto da minha vida a não ter rompido muito antes meu casamento, por isso não abro mão de estar lá em todo happy hour!
Depois que saí, no meu primeiro dia do Café Terapia, voltei para casa ansiosa e com medo de como reagir ao encontrar com Thomaz na apresentação do trabalho. Tinha conversado isso com Darcy e ela tinha me dito para agir naturalmente, como se nada tivesse acontecido, porque quem namorava era ele e não fui eu que roubei aquele beijo. Fui pensando nisso até a hora que cheguei em casa e me convenci que era o melhor a fazer. 
Liguei o computador para reler o trabalho e treinar minha apresentação, quando o Skype da minha mãe me chamou. 
“Hellooooooooo little fairy”
Que quer dizer :“Olá minha fadinha”! 
“Oi mãe, como você está? Que saudades!”
“Estou na maior paz e amor filha e você?”
Sempre foi impossível não rir com as frases da minha mãe, parecia mais uma filha adolescente. O pouco tempo que vivi com minha avó Ruth me fez ser uma pessoa mais madura. Na realidade, eu até tinha um pouco de raiva desse jeito da minha mãe, quando era mais nova meus amigos falavam que ela fumava “weed”(maconha), porque cada dia ela ia com um artefato diferente me buscar, era um óculos violeta ou verde, uma flor nos cabelos, muitas pulseiras, até o dia que ela foi descalça. Com o tempo minha avó Ruth foi me explicando que esse era o jeito da minha mãe e como ela ficaria magoada se soubesse que me envergonhava. Também me falava coisas do tipo: “Sua mãe ficava horas cantando para você : 'Eu te amo minha pequena fadinha, vou sempre pedir para os anjos do céu e todo poder da natureza te proteger'“. Pronto! Era o que bastava para criar um peso na minha consciência, que na realidade, dura até hoje! E por incrível que pareça minha mãe não fuma nada, só bebe para acompanhar meu pai, ela tem horror a fumaça, porque associa à queimadas nas florestas e campos.

À espera da melhor estrelaWhere stories live. Discover now