A neve formava um arco suave, que caia calmamente no clima nublado e pesaroso. As árvores de pinheiros estavam cobertas pela camada branca, deixando-as com um aspecto sombrio a toda paisagem; para Grace Ambrose, tudo aquilo era reconfortante, a lembrava que o mundo normal existia. Poderia existir para alguém como ela. No banco de trás de seu carro velho, estava a razão pela normalidade lhe trazer paz: sua filha.
Os olhos da garotinha de oito anos tinham o tom do céu de Whitewood, a mesma cor encontrada em tantas províncias da Inglaterra: cinza, nublado, repleto de tempestades; com breves lampejos do céu límpido e azul. Raro. Mas diferente dos olhos de temporais, seu nome era cheio de brilho.
— Solíria pare de mexer no cinto – Advertiu Grace, apesar da voz tentando soar repreendedora, um sorriso carinhoso estampou seu rosto.
Solíria. Como o sol ao raiar do dia, junto às flores da primavera que ansiavam por nascer após o inverno. Incomum e cheio de impacto. Era o nome dado à crianças destinadas à grandeza, dizia as vizinhas de Grace, todas encantadas pela garotinha tão cheia de energia.
— A neve é tão bonita – Murmurou Solíria, fazendo desenhos circulares na janela embaçada. Era comum as chuvas assolaram Whitewood, mas a neve era uma benção maravilhosa para a garotinha. Quando o carro estacionou no meio fio, ela observou atentamente os flocos caindo nos telhados antigos.
Grace buzinou e encarou enquanto um garotinho da mesma idade da filha saia de uma casa aconchegante, seus cachos loiros logo se enchendo com flocos de neve. Ele esboçava um sorriso ao entrar no carro, vestindo o casaco amarelo e a nevasca.
— Olá, Shade. Não se esqueça do cinto – Grace sorriu para o menino, e acenou para a moça que está parada na porta da frente.
— Você parece um boneco de neve – Solíria riu divertidamente, tocando no cabelo do amigo com curiosidade.
— Ei, vamos fazer um boneco de neve de mim! – Ele gritou, e a garotinha o acompanhou.
Grace dirigiu calmamente até a escola do jardim de infância, que ficava em uma cidade ao lado de Whitewood – promissora por sua educação e métodos. As crianças estavam alheias a pequena viagem, muito mais interessadas em planejarem o maior castelo de neve de toda a Inglaterra. Solíria e Shade eram amigos desde os cinco anos, quando ambos se perderam no mercado, e foram encontrados minutos depois discutindo sobre cereais. Depois daquilo, foram inseparáveis.
Meia hora depois, Grace encostou na frente do grande prédio colorido, e as crianças saíram rapidamente. Solíria deu um beijo na bochecha da mãe e se afastou sem alarde, arrastando consigo uma bolsa roxa com seus pertences.
— Vejo vocês mais tarde! – Grace deu tchauzinhos enquanto engatava a ré do carro, até finalmente desaparecer numa curva ao longe.
As árvores ao redor estavam secas e congeladas, e todo o telhado do Jardim de Infância parecia uma obra de arte esculpida em gelo, até mesmo os banquinhos em frente a entrada pareciam mortíferos com estalactites de gelo na beirada. Solíria e Shade ignoram toda a paisagem em volta, estavam rindo e se divertindo, chutando a neve com as botas e colocando a língua para fora, como se quisessem saborear o gosto daquele pedaço do céu. O primeiro a fazer careta era o menino, quando um floco grande demais encostou-se à sua língua e transmitiu um gosto amargo de fumaça.
— Argh! Isso não pode ter vindo do céu, é horrível!
Solíria riu de sua expressão, e quando um sinal baixo e fino tocou, ambos saíram correndo para a sala de aula. Naquela época tudo era tão simples, como a neve caindo no gramado, às nuvens se movimentando lentamente no céu; como os pássaros em seus abrigos de inverno, como aquelas crianças de alma tão inocente. Por enquanto.
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Passado: Fúria e Escuridão
RomanceTodos os dias, Solíria Ambrose tenta conviver com um dom; uma maldição. Tocando em sua pele, ela vê como espectadora o seu passado, presente e futuro - consequentemente chegando a sua morte. Há aqueles que perecem tranquilamente em idades avançadas...