Capítulo 4 - o dia zero

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A única coisa que reivindicava Solíria naquela tarde era o frio. O sol tinha ido embora, dando lugar apenas para as nuvens em tons cinzentos e os ventos traiçoeiros que gritavam palavras gélidas. Tudo indicava a ira da chuva - o tempo pesado e cheio de promessas ruins; quase idêntico ao humor da garota dos olhos nublados.

Solíria não se permitiu ficar tanto tempo em casa, preferindo chegar pontualmente para o compromisso com Flôrencia e Aylin. Enquanto caminhava pelas casas geminadas, a garota quase podia sentir a vizinhança calma e tranquila - quase podia imaginar as lareiras crepitando e as televisões ligadas nos programas sem conteúdo palpável. Não havia crianças na rua naquele horário, não havia nenhum senhor sentado nos bancos das praças; não havia ninguém além do Sol esmaecido.

Cada passo que Solíria dava era respirava mais fundo, controlando o sufoco dos próprios pensamentos. Ela atravessou avenidas movimentadas, com o capuz do casaco puxado para esconder o rosto pálido - as velhas e familiares luvas de couro escondidas nos bolsos surrados - utilizava sua armadura de sempre. Mas aquela seria uma batalha diferente, algo que não enfrentava a muito tempo, e ela estava terrivelmente ciente daquilo.

Apenas o leve tremor nas mãos indicavam o nervosismo da garota dos olhos nublados. Ela estava ansiosa e com medo e apavorada com todas as possibilidades trágicas que passam por sua cabeça. Estaria sozinha com colegas de classe. Sozinha e despreparada para todas as situações que poderiam surgir.

Solíria parou em uma esquina, apoiando-se em um poste para controlar a respiração. Ela contou calmamente até cinco enquanto respirava profundamente. É coisa da sua cabeça, é tudo coisa da sua cabeça. Os pensamentos gritavam para que se acalmasse. Mas todos os nervos do seu corpo estavam tensos. Solíria era quebrada, e tinha medo que os cacos se estilhaçaram ainda mais - estava apavorada de deteriorar ainda mais sua sanidade.

Tem certeza que é sã? Seu medo, sua vida e seu próprio ser já está se perdendo por si só. Se entregue.

Se perca.

A mão trêmula de Solíria agarrou o celular que estava no bolso da calça, o pensamento medroso e irracional gritando para que ligasse para Shade, para que o amigo a resgatasse. Solíria sabia que estava incerta, sabia que estava fugindo. Não podia, não queria. Balançando a cabeça, respirando fundo, ela se colocou a andar novamente - seguindo o endereço de seu destino, tentando deixar os medos para trás.

Não demorou muito para que chegasse a vizinhança de Flôrencia. As casas ali eram diferentes, tinham cercas baixas e gramados de flores acostumadas ao frio - todas as construções eram pintadas, os tijolos escondidos por baixo da tinta gritante. As caixas de correio eram grandes, e possuíam um número adornado, com o nome da família que ali vivia. Não demorou para que Solíria encontrasse a casa de Flôrencia.

Nada de tijolos, concreto ou vigas; a casa era de madeira amarela, tão rústica que parecia estranha no meio das outras. O jardim pequeno na entrada estava enlameado e com folhas mortas pelo canteiro. Um pequeno gnomo de jardim mal encarado tinha o olhar fixo em Solíria - e a garota reprimiu o impulso de lhe dar um chute. Ela tocou a campainha.

Solíria conseguia ouvir os passos apressados e o ranger de um piso de assoalho até a porta finalmente se abrir. Flôrencia está com um moletom rosa, enquanto os cabelos estão ajeitados com milhares de presilhas.

— Pode entrar, Sol.

A garota dos olhos nebulosos não pode deixar de notar o sorriso nervoso da colega de classe ao entrar na casa abafada e quente. Ao olhar ao redor, ela notou como o ambiente podia ser acolhedor do lado de dentro. Havia quadros, fotografias e pinturas diversas na parede pintada de azul. Solíria observou as fotos, olhando os rostos da família de Flôrencia - encarando a presença familiar por todo o lugar. Algo que a garota jamais tinha experimentado de fato.

Passado: Fúria e EscuridãoOnde histórias criam vida. Descubra agora