A chuva contra a lataria da viatura era o único som que preenchia o veículo. O vento do lado de fora castiga as árvores, e as casas estão com seus jardins alagados por conta das gotas que não cansam de cair do céu. Solíria observa o lado de fora, com os olhos arregalados desde que entrara no carro. As mãos ainda tremiam e o gosto da bile era amargo na boca. O choque era visível, mas o medo e a tristeza a rodeavam como predadores famintos.
Quando os policiais a interceptaram - exigindo respostas que a boca da menina não conseguia pronunciar - ela ainda não entendia como podia ter falhado; e disse aquilo para os homens que seguravam as armas em punho. O corpo dilacerado no meio da rua era sua culpa, mesmo que não estivesse no volante da hora que aquele carro a atropelou, mesmo que a arma que explodirá a cabeça de Sophie não tivesse sido disparada pelas mãos de Solíria.
Quando a arrastara para uma viatura, ouviu o lamento de outros jovens. Tão bêbados que nem imaginam o tanto de sangue que estava espalhado na rua de trás. Ela não avistou Shade naquela bagunça, muito menos Caim. Antes de entrar no carro, vomitou na calçada - as lembranças gostavam de castigá-la gradativamente enquanto se retirava dali.
Naquela madrugada de sábado, Solíria continuou sozinha durante o trajeto na viatura. O estado de choque era amigável com a garota, fazendo-a não questionar o que iria acontecer com ela, afinal, tinha sido vista na cena de um crime horrível. Mas mesmo quando a sombra desta preocupação a atingia, ela não se importava. Simplesmente não conseguia ligar para o que ocorreria com ela - mesmo a mera hipótese fazia com que lembrasse de Sophie; do sangue; do corpo quebrado e da morte que pairava no cadáver.
Ela vomitou uma segunda vez, fazendo o motorista xingar baixinho.
Enquanto a tempestade caia sob Whitewood, Solíria se dissolvia como se fosse areia. A ansiedade fazia seu peito doer, e respirar parecia ficar cada vez mais difícil. Ela fechou os olhos e encostou a testa no estofado do assento a sua frente. Ela queria desesperadamente encontrar Shade, queria chorar e ouvir palavras que pudessem acalentar seus medos e o sentimento de fracasso que a ameaçava sufocar. Tinha medo de que os fragmentos do que havia restado de si voasse para longe com aquela tempestade, que aquele dia fosse o que finalmente se perderia para sempre.
Quando a viatura parou, Solíria ergueu os olhos e viu a delegacia tumultuada. Jovens e adultos circulavam por ali, fugindo da chuva. Quando o policial que dirigia a viatura a tirou do automóvel, ela caminhou a passos lentos - degustando da chuva que a abraçava. O cheiro de álcool circulava a parte de dentro do prédio da delegacia. O som das vozes parecia muito alto no mundo silencioso que Solíria havia se escondido.
Mesmo procurando por todos os lugares, não havia sinal da cabeça loura de Shade por ali. A ansiedade ameaçava derrubar a garota dos olhos nebulosos. Em todos os lados, adolescentes choravam e riam, ligavam para suas famílias e se desculpavam. Eles estavam pedindo o perdão por terem bebido demais para seus pais. Como Solíria pediria o perdão de sua mãe por ter deixado uma garota morrer diante dos seus olhos?
— Você pode esperar aqui - Diz o policial que tinha trazido ela para a delegacia.
Seus olhos eram velhos e cansados, a pele brilhava com a chuva. Seu distintivo segurava o nome "Harold" em letras miúdas. Ela havia escoltado Solíria até uma sala abafada. Ela olhou ao redor, esperando reconhecer alguma coisa.
— Não precisa se preocupar - Harold continuou, vendo o desconforto de Solíria - Fique a vontade, vou chamar a sua mãe.
Quando a porta se fechou, a garota dos olhos nebulosos se sentou em uma cadeira. Aquela sala não pertencia a sua mãe, isso ela podia ter certeza. Tinha um leve odor azedo, e um casaco masculino pendia da cadeira atrás da grande escrivaninha. Tudo parecia perfeitamente arrumado, mas ao mesmo tempo os objetos não pareciam certos. Solíria observava uma foto emoldurada de um casal sorridente - o homem tinha um sorriso tão largo que parecia doer as bochechas; a mulheres tinha lindas covinhas e um cabelo dourado como o sol. A foto ao lado mostrava uma menininha com um dente faltando.
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Passado: Fúria e Escuridão
RomantikTodos os dias, Solíria Ambrose tenta conviver com um dom; uma maldição. Tocando em sua pele, ela vê como espectadora o seu passado, presente e futuro - consequentemente chegando a sua morte. Há aqueles que perecem tranquilamente em idades avançadas...