O tempo parecia se arrastar, tão cansado quanto a garota deitada na varanda da própria casa - molhada, com frio e perdida. Solíria tinha perdido a noção de tudo ao seu redor, e apenas quando a chuva havia parado - horas, minutos ou segundos mais tarde, que ela soube; Flôrencia já devia estar morta.
Morta.
A palavra pesava no peito da garota, e a destruía apenas por pensar que ela não tinha movido um único músculo para tentar impedir a tragédia final - como sempre havia feito, sendo apenas uma espectadora assustada demais para tentar. As lágrimas fluíam sempre que pensava na garota tímida com o sorriso doce - que agora estava morta. Aquele pensamento a estava assombrando, desacostumada a ter aquela sensação pútrida de ter assistido a morte de alguém.
Morta.
Solíria estremeceu, a escuridão da noite reivindicando sua forma invisível para as pessoas que fugiam do frio. Cada pensamento sobre aquele dia estava assombrando-a - porque, no final, a vida a estava punindo. Nunca existiu esperança, nunca existiu uma oportunidade de tentar ser o que jamais seria: normal. Não existia nada para Solíria, e ela estava ciente daquilo mais do que qualquer coisa. Suas melhores amigas seriam a escuridão, tão reconfortante, como um cobertor em uma noite gélida; e a solidão como um lugar reconfortante para repousar.
Sem contar da dor. Ah... Doce emoção e sentimento, tão destrutivos e amargos - suscetíveis a despertar o pior em todos os seres humanos. E Solíria sentia aquela dor constante, toda a dor que guardava das mortes que havia assistido indiretamente - a dor de saber que era tão ruim quanto as pessoas ou os acidentes que tiravam a vida daqueles inocentes; a dor de saber. A dor de não fazer absolutamente nada, por agir apenas como uma espectadora mórbida. Solíria se odiava por tudo aquilo.
A garota dos olhos nebulosos estava deitada, com a cabeça apoiada no chão de madeira. Não sabia ao certo quanto tempo tinha permanecido ali - talvez o bastante para que não se importasse mais com o frio que latejava pelo corpo todo. Ela encarava a rua escura, um pouco entorpecida e ligeiramente extasiada com os efeitos colaterais que a maldição deixava. Solíria demorou para notar os faróis de carro que se aproximavam - milhões de possibilidades passando por sua cabeça. Talvez fosse o mesmo carro que tinha atropelado Flôrencia, talvez fosse a polícia - Aylin poderia ter avisado o que a garota tinha gritado naquela tarde. Mas, apesar de todo o medo, Solíria não se importou. Na verdade, até queria que algo horrível acontecesse a ela também, como uma punição.
Quando os faróis pararam de se mover e se apagaram, Solíria não se moveu um centímetro de onde estava deitada. Mas as lágrimas começaram a cair aos monte quando viu quem estava ali. Shade saiu correndo da caminhonete, caindo de joelhos ao lado da melhor amiga destruída.
— Sol?
Shade estendeu a mão, e por impulso, a garota se encolheu ainda mais no chão. A dor que transbordava nos olhos de Shade era palpável - vê-la daquela maneira o arrasava de diversas formas. Solíria percebeu a postura do amigo, sabia que já havia acontecido mesmo quando ele perguntou:
— O que houve?
— Você sabe o que aconteceu - Solíria sussurrou, a voz trôpega e rouca.
O garoto dos cachos dourados suspirou pesadamente. Ele se deitou ao lado de Solíria - sem se importar o chão gelado e o assoalho de madeira úmido e fétido. Shade não ousou chamá-la para dentro de casa ou carregá-la para o quarto. Ainda não. Antes ele precisava ver se a amiga estava inteira, mesmo que a beira do desastre. A garota dos olhos nebulosos encarava o nada, enquanto lágrimas escorriam silenciosas pelo rosto. Mas quando a voz saiu em um sussurro, estava repleta de pesa.
— Eu podia ter feito algo... - os olhos arregalados da garota estavam escuros pela noite melancólica, as lágrimas eram as únicas coisas que brilhavam suavemente na pele sardenta - Eu podia...
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Passado: Fúria e Escuridão
RomanceTodos os dias, Solíria Ambrose tenta conviver com um dom; uma maldição. Tocando em sua pele, ela vê como espectadora o seu passado, presente e futuro - consequentemente chegando a sua morte. Há aqueles que perecem tranquilamente em idades avançadas...