•Akire•

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Peônias.

Fragrância preferida de minha mãe. Presente em toda peça de roupa dela. A cada tecido recolhido do armário, uma série de lembranças se projetavam involuntários em minha mente. Sem dúvidas se desfazer dos pertences era uma das partes mais cruéis do luto.

Cada casaco, par de sapato. Os enfeites, bibelôs, até mesmo os cadarços dos tênis. Deixa-los em caixas para doação espremia o coração de maneira que tornava os batimentos uma dádiva. Só afirmava a filosofia que não levamos nada quando partimos. Mesmo assim, espero que ela tenha me levado consigo, pois sentia que um pedaço meu desaparecia.

Sua partida foi cruel e rápida. Ninguém espera por uma Leucemia. Os últimos dias foram tão dolorosos. Ela padeceu em uma cama e nossas almas se despediam. Eu sentia a presença dela desaparecendo da casa. O seu calor escapando pelas frestas das janelas e das portas.

De certa forma eu soltei sua mão. Não por que não a amava, mas sim por amá-la demais a deixei partir. Doía mais ver seu sofrimento que não tê-la para mim. Lembro que no seu ide eu havia saído para comprar pães e quando voltei eu percebi o peso na atmosfera. Ao entrar no quarto seus olhos cansados me encontraram. Deixei os pães no criado-mudo. Ela estendeu sua mão fracamente. Lembro-me de suas últimas palavras, advinda de uma voz rouca e arrastada.

- Eu acredito em vocês. Cuide de seu irmão. Diga a ele que o amo - ela tossiu - E eu te amo, te amo demais, eu finalmente alcancei a plenitude, há algo grande pra você minha filha, seja corajosa.

Meia hora depois ela morreu. Ela só me esperou. A morte parou para ela.

Na minha compreensão suas últimas palavras foram palavras de motivação para encarar uma vida cheia de dores, e pela sua ausência, muito mais árdua.

Alguém bate na porta e em seguida entra no quarto.

– Tudo pronto? - Pergunta Eduardo - Tia Rita já está chegando pra nos buscar.

– Faltam só as meias - sorri amarelo e acenei com a cabeça.

– Sabe que não precisava fazer isso né?

Respirei fundo e me recusei a discutir quem arrumava as coisas de nossa mãe. Eu conseguia encarar aquela cólera. Eduardo ao entender sai do quarto a passos fundos. Irmãos mais velhos.

– Du! Espera. Mamãe disse que te ama muito... - Havia esquecido de contar a ele devido tanta tristeza e ansiedade.

Os passos pararam, em seguida um soluço. Ele só queria ouvir isso.

No mesmo instante em que lacrava a caixinha de meias um barulho de motor se fez no quintal. Tia Rita chegara. Eduardo foi imediatamente atende-la. Fui até a porta do quarto pelas paredes, me despedindo daquele cômodo. Quando cheguei tia Rita me encarava com seus adornos. Colares, penas, anéis de côco, tornozeleiras. Seu estilo cigana gourmet. Ela não falou nada só me abraçou. Eu saí do quarto e ela entrou. Observava o quarto com pesar. Passou pelo cômodo todo um aromatizador de céu, segundo ela, pra auxiliar nossa mãe no caminho para a vida eterna. Com tanta fumaça ela não iria encontrar nem o caminho, quem dirá a vida eterna.

Assim nos despedimos de casa. De nossa antiga vida. De mamãe. Já estava sentindo falta até do mofo da cozinha. Entramos no carro de tia Rita e mais aromatizadores só que desta vez de lavanda. Abri o vidro discretamente para sentir o ar puro de novo. Haviam filtros dos sonhos no retrovisor e Tocava Tim Maia. Tudo parecia razoavelmente agradável até Lúcio, meu primo, resolver fumar um dentro do carro. Cheiro de maconha e lavanda. Perfeito. Tia Rita não se importava, sua política era: melhor dentro de casa do que lá fora apanhando.

Parecia que a estrada se esticava mais e mais e a viagem não acabava nunca. Se eu não dormia, observava os morros no horizonte. Morávamos no interior de Minas Gerais na cidade de Consolação e iríamos pra mais fundo do estado, na chácara da tia Rita nas proximidades da cidade de Paiva. Um lugar sossegado e pacífico. Ainda mais que minha antiga cidade. Talvez eu encontrasse a paz que desde então fugia de mim.

Depois de tirar um longo cochilo, sinto o carro balançar. As rodas lutavam para escapar do lamaçal da entrada da chácara. Tia Rita pisava fundo no acelerador sem nenhuma alteração no humor. Uma raiva camuflada.

— Mulher, desse jeito não vai sair nunca tem que manobrar um pouco — Dizia Tio Gilmar da casa.

Depois de um longo tempo atolados, resolvemos sair do carro e encarar com os pés a lama. Eduardo recolheu as malas e entramos. A casa era simples mas convidativa. Não haviam essências nem aromatizador de lavanda. Acredito que por influência do Tio Gilmar, mas pelas paredes haviam vasos de flores perfumadas.

Sobre a mesa da cozinha uma refeição nos esperava. Lúcio devorava o queijo com goiabada. Eduardo me servia um leite ao mesmo tempo que passava a faca para tia Rita. E assim foi o restante da tarde. Ao anoitecer encontrei meu quarto que a princípio eu e Eduardo iríamos dividir se ele não optasse por dormir no mesmo quarto que o Lúcio. Lúcio me trouxe travesseiros e coberta. Troquei as fronhas pois as antigas cheiravam a cigarros.

—  Você parece cansada — Disse Du ao entrar no quarto.

Eu tentava encontrar uma posição confortável na cama.

– Tá muito na cara? — Perguntei.

– Bom você nem sequer tomou banho – Rimos – Eu ia te abraçar, mas melhor não — Ele sorriu fracamente, me beijou no rosto, saiu e apagou a luz.

Ele tinha razão. Eu precisava de um banho mas a cama parecia me abraçar e eu me afundava para dentro dela. Fecho meu olhos por alguns instantes.

Sem eu perceber várias luzes se projetavam gradativamente naquele breu. Azul, verde, rosa. Essas cores se transformaram em pessoas. Pessoas furiosas com algo. E as cores dentro delas iam mudando. Cada vez mais escuras. Até que todas começaram a se degladiar. Socos, mordidas, braços arrancados. As cores sumiram, mas em seguida um espelho apareceu em minha frente. Eu não tinha nenhuma cor.

Nenhuma.

O espelho quebrou e eu caí de um lugar muito alto. Vi minha mãe sorrindo, meu irmão chorando sozinho, meu primo se ferindo, minha tia fumando uma flor. E quando terminei de cair via meus restos destroçados no fim do penhasco.

Acordei assombrada e ofegante. Foi apenas um pesadelo. Acho que toda aquela fumaça transformou meu cérebro em um mingau. Todos dormiam, era madrugada. A testa molhada. Precisava de um banho com certeza. No caminho para o banheiro tropeço em Lúcio muito assustado e tímido.

– Oi... Boa noite – Saiu apressado escondendo as feridas sangrando em seu braço.

– B-boa noite – Respondi.

Que estranho. Tomei meu banho e resolvi pegar um ar. muita coisa para um dia só. Saí pela porta de trás. Dava para um campo que cheirava a alecrim e com muitos vagalumes reluzentes. No horizonte perto do pesqueiro a silhueta de minha tia. Um cigarro em uma mão e uma garrafa de whisky na outra. Agora entendia como ela camuflava suas frustrações. Andei pelo caminho oposto ao dela rumo a um balanço no carvalho. Balancei vagamente com os olhos fitando o céu carregado de estrelas. Encarei uma estrela em movimento. Estava tão próxima. Passava a impressão que eu poderia toca-lá.

Até que a estrela parecia mais perto que o normal. Mais e mais próxima. Fui desacelerando do balanço encarando aquele fenômeno. quando caio repentinamente. Algo me atingiu. Toquei meu nariz úmido de sangue. Levantei bruscamente. Uma fumaça densa e esguia saia de uma espécie de gosma azul esquisita no chão. Com certeza foi aquilo que me atingira mas parecia como uma pedra quando senti. Minha tia corria em minha direção. Certamente ouviu meu grito.

Aconteceu tão rápido. Ela simplesmente desmaiou no caminho e a fumaça densa entrava através de suas narinas, ouvidos e boca. Em questão de segundos ela arregalou os olhos e de uma forma grotesca se colocou de pé. Aquilo me queria por alguma razão pois estendia os braços para mim e fracassava ao tentar me alcançar.

— Por favor — Grunhiu — Venha comigo!

— V-você não é minha tia...

— Não... Eu sou Yzara.

Espero que tenham gostado, curte e compartilha se gostou❤️✌️

Adrakis, filhos solitáriosOnde histórias criam vida. Descubra agora