Entre lama e sangue

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  O alvorecer marcou sua chegada com fachos de luz vindo das montanhas esvaindo serenamente a escuridão daquele profundo azul, os pássaros despertaram piando e cantando ao toque do sol na pele dos já não adormecidos caçadores, prontos e dispostos em meio a manhã ventosa trazendo consigo a intensa seriedade derramada em mentes inquietas.
Pela grama parda e os campos mortos o caminho voltara a ser trilhado, distanciavam-se da floresta agora cinzenta e tomada pelos musgos outrora não vistos pelo escuro trazido pela noite.Centímetro pós centímetro o pântano tornava-se mais próximo dos que pouco conversavam em meio a ida ao apodrecido bioma esquecido pela vividez.
  Por volta das oito da manhã o grupo já pisoteava a lama beje envolvida em aglomerados de capim que mais pareciam-se com lodo, a notória grama verde tornara-se podre, este era o sinal de que alcançaram as províncias de Enecost, recheadas de poças e pequenos buracos transbordados de alagamentos mal-cheirosos.Aqueles que ali caminhavam lado a lado acabaram por traçar uma trilha que os fazia desviar da entrada no mal visto ambiente,os fazendo andar em frente às árvores sem muitas folhas,seus galhos semelhantes a vermes torturados ao árduo sol,pálidas,pois descascavam-se deixando evidente a invasão de musgo em suas madeiras não tão espessas lhes dando aspecto de sempre estarem enxarcadas,suas bases estavam acima de águas rasas e odorentas que cercavam quase toda região.
-Não deveríamos ir além das árvores?--perguntou Kailan estranhando o caminho o qual faziam.
-Prineiro temos de achar quem pôs o contrato.--explicou Farenthor.--estamos indo para um dos poucos lugares habitados daqui.
-Civilização?--perguntou Recky.
-Apenas poucas casas,três ou quatro no máximo.--disse outra vez o ruivo guerreiro,em seguida orientou para para que virassem a esquerda os levando em direção às árvores porém,num espaçamento sem muitas delas.
Mais pegadas foram deixadas na lama nos minutos que sucederam,até por fim chegarem no local desejado.Todos observavam atentamente as precárias moradias compostas por paredes tortas de tijolos esbranquiçados,possuíam alinhamento mal feito,montes de palha seca servindo de telhado,perto das relaxadas construções haviam palanques curtos onde neles estava amarrado um tecido roxo rasgado balançando ao vento dobrando-se como uma bandeira à mostra,no mesmo espaço estava um balcão,feito de madeira de carvalho;ao centro das casas estavam um balde partido e um poço quase centralizado na vila,contudo nada o cobria,quando Lizen e Kailan foram a ele inspecionar,olharam para a água ao fundo,poluída por galhos e folhas,o poço parecia não ser utilizado a tempos.O lugar estava quieto,apenas se ouvia o balançar das árvores com o vento.
-Tem certeza de que alguém morava aqui Faren?--perguntou Lizen,mas nada lhe foi respondido.
Espalharam-se,olhando para diferentes direções,a procura de qualquer vestígio do que ocorrera ali.
-Vai ver abandonaram o local as pressas.--disse Recky.
-Ou os aldeões foram mortos e levados por alguma coisa,ou mesmo alguém.--disse Kailan.
Uma voz então pigarreou,no mesmo segundo em que o som chegara aos ouvidos de cada um armas foram desembainhadas para a direção do barulho.
-Acalmem-se mestres caçadores.
Aos poucos mostrava-se um homem por de trás de uma das casas,era franzino e careca,não passava dos trinta e cinco anos para os que lhe olhassem,contudo sua pele era anormalmente amarelada,parecia prover de alguma doença.
-Quem é você?--perguntou Farenthor o intimidando,Recky sentiu naquela hora que somente o companheiro deveria falar.
-Sou Bender Stultum,um mercador ambulante.--disse o homem puxando um cinzento saco de utensílios e espalhando-os no balcão antes visto.
Os garotos e Licci não se olhavam,mantinham o olhar fixo no mascate,ele despreocupadamente abaixava e se levantava,pondo cada vez mais coisas sobre a madeira,não se sentindo nem um pouco ameaçado.
-Sabe o que houve com os aldeões?--continuou Farenthor ainda sem baixar a guarda.
-Muitos partiram deste lugar horrendo,disseram que não aguentavam mais a vida aqui.--exlicou o homem como se desprezasse aqueles que deixaram o lugar.
-Entendo.--disse a grave voz do portador do machado curvo.--estamos aqui por um contrato,pessoa desaparecida,sabe de algo a respeito?
-Claro que sei,fui eu quem fiz o contrato.
Ao dizer tais palavras Farenthor virou-se para os outros e assentiu,todos de imediato guardaram as armas embainhando-as de volta.
-Conhece o desaparecido?--perguntou Lizen.
-O que?não não,o merdinha me deve dinheiro,pouco me importa quem ele é ou como está,quero apenas o que ele me deve.--Bender parecia abominar o desaparecido.
Recky se enraivecia em ver tal posicionamento,fechando as mãos fortemente,mas tocou algo em seu peito,era Licci,pondo seu antebraço a frente,dizendo em voz baixa:
-Estamos aqui pelo contrato apenas,não se precipite.
Recky a olhou e concordou com a cabeça quase imperceptívelmente,em seguida observou mais o que acontecia ali.
-Nos descreva a aparência da pessoa.--disse Farenthor.
-Aah eu sei lá...tinha cabelo castanho parecido com o daquele ali.--disse Bender apontando para Nózitus,que por sinal estava com a aparência do rosto ruim.--ele era pálido e usava uma ombreira de couro em seu ombro esquerdo,calças marrons e sabe,era um caçadorzinho solitário,tentou ir pântano a dentro para realizar um outro contrato e me pagar com o dinheiro da recompensa,está lá já fazem dias,ou semanas...não me lembro bem,só sei que até agora nada nenhuma notícia dele,e ouçam bem,não vou sair daqui sem minha parte.
-Isso é patético.--escapuliram as palavras de Recky.
-O que disse muleque?
Quando percebeu que não havia mais volta,Recky continuou dando passos à frente caminhando firme.
-Você...é...um lixo Bender Stultum.
-Disse o garotinho que mata seres por dinheiro,faça-me um favor e me poupe de sua idiotice,até onde sei você está aqui a serviços,e se não vai fazer sua obrigação ou comprar alguma de minhas mercadorias,caia fora para que eu não tenha que lidar com a escória de gente como você.--disse o homem o encarando e a todos ali presentes.
Mais insultos viriam para que a discussão recebesse continuidade,contudo Lizen foi ao lado de Recky o levando passos para trás.
-Se acalma cara,não leve isso adiante.
E Recky tentava seguir os conselhos do amigo,forçando os dedos contra as mãos ainda mais.
Licci não depositou sua atenção na fútil briga entre os dois,pois se distraiu quando por seus olhos passara a imagem de uma aljiva branca cheia de flechas de penas prateadas,ela então se aproximou,visando observar com mais clareza.Bender a olhava dos pés à cabeça enquanto uma repugnante malícia crescia em seus pensamentos nefastos.
-Essas flechas,de que são feitas?--perguntou a arqueira.
-Estas aqui são flechas elficas,as peguei numa trilha das montanhas de gelo ao norte,no corpo de um orelhudo de cabelos brancos.--explicou Bender varrendo com os braços outros objetos e pondo a aljiva e algumas das flechas no balcão.
-Orelhudos seriam o que?os elfos?--palpitou Recky.
-Sim na verdade esse é um insulto a eles.--explicou Lizen.
-Minhas flechas tradicionais não tem surtido muito efeito nos últimos combates,preciso de novas.
-Estas foram feitas na alta forja da floresta dos elfos primordiais,parecem...diferentes.--disse Nózitus,sua voz soara por ali quase como um murmúrio.
-Quanto custam?--perguntou Licci.
A arqueira segurou então uma das setas,cutucando com o polegar a ponta de sua lâmina,e seu dedo sangrou sem quase sentir a ferroada,liberando pequenas gotas de sangue,um leve toque causava ferimentos e isso foi o que motivara Licci em tê-las.Movendo somente seus olhos para frente ela viu com estranheza que Bender afastara a aljiva para o lado,e pôs os cotovelos no balcão a olhando de forma estranha e abusiva.
-Para você estas flechas não custarão dinheiro.
Todos se olharam pressentindo que aquilo não acabaria bem,Recky não desgrudava seu olhar dos dois,sentia repulsa quanto ao mercador,sua raiva atingiu o ápice quando notou que as mãos amareladas e anêmicas do homem deslizavam-se do balcão até a palma direita de Licci,puxando devagar a mão da garota.
-Entendeu qual o meu preço não é bonitinha?--o homem beijou perto dos dedos de Licci assemelhando-se a um gesto de cavalheirismo de antigos homens de outrora,mas elegância não era o que vagueava na mente do mercador.
A arqueira moveu as mãos suavemente,quase como se estivesse envolvendo os dedos com os de Bender,mais um pouco e Recky pegaria fogo ali mesmo,até que por fim avançasse sobre a pessoa atrás do balcão,mas antes de tomar qualquer atitude houve uma batida.Licci com toda a força que tinha no momento arrebentou a mão de Bender sob o balcão esticando-a ali mesmo,sem tempo para que o homem pensasse em uma mínima reação a garota girou a flecha que segurava e cravou-a no dedo indicador atravessando pele,nervos e osso chegando a fincar a arma na madeira abaixo do membro;gritos de dor ecoaram por ali enquanto Bender covardemente se debrussava no balcão horrorizado.
-A única coisa que terá de mim,é minha misericórdia em te deixar com os outros dedos...
A garota então removeu a seta brutalmente,pegou a aljiva e saiu levando todas as flechas consigo,deixando para trás um dedo sob o balcão e uma figura caída na lama agonizando de olhos fechados segurando a mão que cada vez mais sangrava onde antes havia um dedo.
-Garota imunda!o pântano cuidará de você!que tenha agonia em sua morte!--praguejava o homem enquanto todos lhe davam as costas,ignorando a presença asquerosa ali caída.Farenthor não estava com os outros,e sim se aproximando mais de Bender,o olhando gemer sob seus pés.
-Fique calado se quiser continuar com sua mão...é na lama onde os porcos devem ficar.
Estavam todos lado a lado de frente para seus destinos,quando Farenthor se juntou a eles,passou tomando a frente os liderando,enquanto dizia:
-Fiquem atentos,ameaças de todo tipo estão no pântano,podemos encontrar com tudo daqui adiante.
-Contanto que o que encontremos não seja feito de pedra.--disse Kailan levando sinceridade à sua face.
Caminharam pelas árvores logo desaparecendo na podridão exalada pelo solo.Nózitus após alguns segundos abaixou-se ao chão,tocando a lama enxarcada com os dedos em seguida os esfregando,olhou para a frente e sussurou:
-Quarer corporis.
Recky parou de andar observando o amigo,surgiu ardilosamente uma fumaça vermelha como a de um sinalizador saindo da ponta do cajado alastrando-se aos pés de todos no local,Recky deu alguns passos para atrás temendo que algo lhe afetasse,mas sem demora notou que nada lhe aconteceria.
Nózitus sentiu vibrar fortemente seu cajado no momento em que a magia fluiu da arma,isto nitidamente levou preocupação a seu olhar,mas ao levar em sua face a expressão de quem resolvia uma complexa equação o mago deu piscadelas e voltou-se atento à fumaça avermelhada ir ao longe,contornando pedras,árvores e tudo que estivesse à frente.
-Magia de rastreação...esperto--disse Kailan.
-Acho difícil rastrear algo,se ele está sumido no tempo em que dizem,a chuva dos dias passados deve ter cobrido o rastro.--disse Nózitus se levantando enquanto a nuvem sob o chão se dissipava por completo,isto sigificava que não houvera nada a ser descoberto.
-Se tinha tanta certeza de que nada seria achado,por que usou a magia?--disse Kailan.
-Não importa.--cortou-o Lizen rapidamente.--faremos isso da forma padrão.
-Talvez consigamos localizar algum pedaço ou sobra do corpo,dificilmente o acharemos inteiro,isso se algum carniceiro já não tiver sumido com nosso contrato.--disse Licci.
-Fala sério,ninguém aqui tem esperança de achar essa pessoa viva?--disse Recky.
-Olha em volta.--disse Kailan abrindo os braços enquanto passarelava lentamente.--nesse lugar maldito não dá pra durar mais do que poucos dias,torço para que sejamos os surtudos que consigam sair vivos ou pelo menos inteiros.
-Não devemos perder tempo aqui,vamos seguindo.--disse Farenthor iniciando sua passada,atrás dele foram todos.
O tempo parecia não passar,nenhum rastro ou sinal,nem mesmo marcas vinham ao encontro dos caçadores,andavam cada vez mais,se aprofundando naquele lugar castigado pela avareza dos deuses.A presença de algo maligno os observar a cada passo dado assolava os pensamentos de Recky,ele temia a morte daquele a quem procuravam,entretanto,mesmo sem incentivo algum,ele mantinha uma pequena gota de esperança em poder ver a pessoa que desconhecia até mesmo do nome estar viva,mas outra de suas sensações o preenchia,como se estivesse próximo a alguém já visto,próximo de se encontrar com um conhecido.
Em Enecost não se separavam muito para a busca como outras vezes feitas,ali os cantos se assemelhavam uns aos outros tornando o ambiente uma casa de espelhos para os de olhar desatento.
Passos,passos e mais passos;das árvores,vinham gotejos,do chão,rastros de corturnos,botas e um tênis,o malcheiro era nauseante para o olfato de qualquer indivíduo,eram desconfortáveis as sensações causadas pela trilha a qual faziam,o aroma de corpos,fezes e lama era sufocante,trazendo a sensação de que tudo tornava-se menor e mais claustrofóbico.Uma fraqueza permeava sob as costas de Recky que  forçadamente guardava em seu estômago o que havia comido na manhã para que não vomitasse em seus próprios pés.O tempo corria e não esperava por ninguém;olharam,tatearam e buscaram,mas nada lhes apareceu,quando em certo momento após as horas deixadas,uma construção fora vista,não se sabia o que era,mas tal coisa passou a ser o rumo dos caçadores,que continuaram no mesmo ritmo.
Chase desde que adentrara no bioma não tirou a mão do cabo de sua espada assim como seus amigos espadachins,todavia sua mão se firmava até demais,pensamentos e vozes ecoavam em sua mente como sussurros vindos do escuro,coisas odiosas caíram em sua consciência,memórias eram trazidas de volta a seus olhos,virou-se para trás certificando-se de que nada os seguia,estava tentado a uma certa atitude hedionda,vigiando a todos do grupo procurando pelo mago,até ver as costas de Nózitus,que caminhava ao lado de Farenthor, e no som de uma gota desprendedo-se da galhada indo até o ombro do garoto ele por fim despertou bruscamente acompanhado de um suspiro felizmente não notado por ninguém,sua mão se desprendera da arma,mas a raiva crescia e o olhar fixo no mago continuava.

A caçada (obra ainda não finalizada)Onde histórias criam vida. Descubra agora