CAPÍTULO III: OS MITOS

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... “um equilíbrio precário de poderes entre as forças do bem e as do mal”...
Na manhã seguinte, não havia nenhuma carta na caixa do correio. Sofia ficou
aborrecida durante todo o tempo de aulas. Preocupou-se em ser particularmente simpática
com Jorunn durante os intervalos. Durante o regresso à casa, fizeram planos para irem
acampar, logo que, na floresta, o terreno ficasse menos úmido.
Em seguida, estava de novo em frente à caixa do correio. Primeiro, abriu um
pequeno envelope com um carimbo do México e que continha um postal do pai. Falava das
saudades e de ter ganhado pela primeira vez ao primeiro oficial no xadrez. De resto, já
quase tinha lido os vinte quilos de livros que levara consigo após as férias de Inverno.
Havia ainda um envelope amarelo com o seu nome! Sofia trouxe a pasta da escola
e a correspondência para casa e correu para a toca. Retirou do envelope várias folhas
escritas à mão e começou a ler.
“A concepção mítica do mundo”
Olá, Sofia! Há muito para dizer, por isso o melhor é começarmos imediatamente.
Vemos a filosofia como uma forma completamente diferente de pensar, que nasceu
aproximadamente em 600 a.C. na Grécia. Antes disso, as diversas religiões tinham
respondido a todas as perguntas do homem. Essas explicações religiosas eram transmitidas
de geração para geração por meio dos mitos.
Um mito é uma narração sobre os deuses que procura explicar a vida nas suas
diversas manifestações. As explicações míticas floresceram durante milênios em todo o
mundo. Os filósofos gregos procuraram provar que os homens não podiam confiar nelas.
Para compreendermos o pensamento dos primeiros filósofos, temos de
compreender igualmente o que significa ter uma concepção mítica do mundo. Tomaremos
como exemplo algumas concepções míticas da Europa do Norte.
Não é de modo algum necessário irmos muito longe. Certamente já ouviste falar de
Thor e do seu martelo. Antes de o cristianismo chegar à Noruega, os homens, aqui no
Norte, acreditavam que Thor viajava pelo céu num carro puxado por dois bodes. Quando
ele brandia o seu martelo, seguiam-se raios e trovões. A palavra "trovão" significa
originalmente "retumbar de Thor". Em sueco, "trovão" diz-se "aska" - originalmente "as-
aka" – que significa a "viagem do deus pelo céu". Quando troveja e relampeja, também
chove. Isso podia ser indispensável à vida para os camponeses da época dos Vikings. Por
isso, Thor era venerado como deus da fertilidade.
A resposta mítica à pergunta por que é que chove, era: Thor brandiu o seu martelo.
E quando a chuva vinha, as sementes germinavam e cresciam nos campos.
Era incompreensível para os camponeses que as plantas crescessem e produzissem
frutos. Mas em todo o caso, os camponeses sabiam que isso estava de alguma forma
relacionado com a chuva. Além disso, todos acreditavam que a chuva tinha algo a ver com
Thor. Por isso, ele tornou-se um dos deuses mais importantes na Europa do Norte.
Thor era ainda importante por outro motivo, que estava relacionado com toda a
ordem universal.
Os Vikings imaginavam o mundo habitado como uma ilha que está sempre
ameaçada por perigos exteriores. Eles chamavam a esta parte do mundo “Midgard”, que significa: o reino que fica no centro.
Em Midgard ficava também “Asgard”, a residência dos deuses. Em frente a
Midgard ficava “Utgard”, ou seja, o reino do exterior, também chamado Jotunheimen. Aqui
moravam os perigosos gigantes, que procuravam sempre destruir o mundo por meio de
truques maldosos. Também podemos definir esses monstros malignos como "forças do
caos". Na religião nórdica e na maior parte das outras culturas, os homens tinham a
sensação de que existia um equilíbrio precário de poderes entre as forças do bem e as forças
do mal.
Uma das possibilidades que os gigantes tinham para destruir Midgard era raptando
Freyja, a deusa da fertilidade. Quando o conseguiam, nada crescia nos campos, e as
mulheres já não tinham filhos. Por isso era tão importante que os deuses bons dominassem
os gigantes.
Thor desempenhava também aí um papel importante: o seu martelo não produzia
apenas chuva, mas constituía também uma arma na luta contra as perigosas forças do caos.
O martelo conferia-lhe um poder quase ilimitado. Ele podia, por exemplo, lançá-lo contra
os gigantes e matá-los. Também não tinha que ter medo algum de o perder, porque o
martelo era como um “boomerang” e voltava sempre para ele.
Esta era a explicação “mítica” para o funcionamento da natureza, e para o fato de
haver uma luta constante entre o bem e o mal. Os filósofos pretendiam refutar essas
crenças.
Mas não se tratava apenas de explicações.
Os homens não podiam ficar de braços cruzados à espera que os deuses
interviessem quando certas catástrofes - como as secas ou as epidemias - os ameaçavam. Os
homens tinham que participar na luta contra o mal. Faziam-no através de todo o tipo de
práticas religiosas ou ritos.
A prática religiosa mais importante na antiguidade nórdica era o sacrifício. Fazer
um sacrifício a um deus significava aumentar o seu poder. Os homens tinham, por exemplo,
de oferecer vítimas aos deuses para que estes ficassem suficientemente fortes para
vencerem as forças do mal. Nessa altura, sacrificava-se ao deus um animal. Pensa-se que a
Thor se ofereciam geralmente bodes. A Odin eram sacrificados também homens.
Conhecemos o mito mais famoso na Noruega através do poema “Trymskvida”.
Lemos nele que Thor estava a dormir e que, quando acordou, o seu martelo tinha
desaparecido. Thor ficou tão furioso que as suas mãos e a sua barba tremiam. Juntamente
com o seu companheiro “Loki” foi ter com Freyja e pediu-lhe emprestadas as suas asas,
para que Loki pudesse voar até Jotunheimen e descobrir se os gigantes tinham roubado o
martelo de Thor. Aí, Loki encontra “Thrym”, o rei dos gigantes, que se gaba imediatamente
de ter enterrado o martelo a oitenta quilômetros abaixo do solo. E acrescenta que os deuses
só poderiam receber de volta o martelo se Freyja se casasse com ele.
Estás a seguir-me, Sofia?
Os deuses bons são subitamente confrontados com um crime monstruoso. Os
gigantes têm então em seu poder a mais importante arma de defesa dos deuses, e essa
situação é absolutamente intolerável. Enquanto os gigantes tivessem o martelo, possuíam o
poder sobre o mundo dos deuses e o mundo dos homens. Em troca do martelo, exigem
Freyja.
Mas esta troca não é possível: se os deuses entregarem a deusa da fertilidade – que
protege todo o tipo de vida - a relva murcha nos campos e os homens e os deuses têm de
morrer. Não há uma solução para esta situação. Imagina um grupo de terroristas que ameaça fazer explodir uma bomba atômica no centro de Londres ou de Paris se as suas
exigências não forem atendidas; percebes com certeza o que quero dizer.
O mito narra ainda que Loki regressa a Asgard.
Aí, exorta Freyja a vestir-se e a enfeitar-se como uma noiva, porque tem de se
casar com o gigante (infelizmente!). Freyja fica furibunda e afirma que as pessoas
pensariam que ela estava louca por homens se se casasse com um gigante.
Então, o deus “Heimdall” tem uma idéia brilhante.
Propõe que Thor se disfarce de noiva. Podem prender-lhe o cabelo e colocar-lhe
duas pedras no peito, para que ele pareça uma mulher. Thor não fica muito entusiasmado
com a idéia, mas admite, por fim, que só dessa forma os deuses têm a possibilidade de
recuperar o martelo. Por fim, Thor é mascarado de noiva e Loki acompanha-o como dama
de honra.
- Desta forma, levamos duas mulheres para os gigantes - afirma Loki.
Se nos quisermos exprimir de uma forma mais moderna, podemos caracterizar
Thor e Loki como uma "brigada antiterrorista" dos deuses. Disfarçados de mulheres, têm de
entrar furtivamente no quartel general dos gigantes e apoderar-se do martelo de Thor.
Quando se encontram em Jotunheimen, os gigantes preparam tudo para as bodas.
Mas durante a festa, a noiva - ou seja, Thor - come um boi inteiro e oito salmões.
Bebe também três barris de cerveja, e Thrym fica atônito. Por pouco, o comando
antiterrorista teria sido desmascarado. Mas Loki conseguiu livrá-los desse perigo.
Ele conta que Freyja não comia há seis noites, por ter ficado tão entusiasmada com
a idéia de se fixar em Jotunheimen.
Nessa altura, Thrym levanta o véu da noiva para a beijar, mas recua sobressaltado
ao enfrentar o olhar duro de Thor. Também aqui Loki salva a situação. Ele conta que a
noiva, devido à alegria do casamento, não pregara olho durante oito noites.
Ordena então Thrym que, durante a cerimônia, vão buscar o martelo para o colocar
no regaço da noiva.
Quando Thor se viu com o martelo no colo, soltou uma risada sonora. Primeiro,
matou Thrym com o martelo, e, em seguida, o resto dos gigantes de Jotunheimen. Desta
forma, o horrível drama teve um final feliz. Mais uma vez, Thor - uma espécie de Batman
ou James Bond dos deuses - vencera as forças do mal.
Isto é um mito, Sofia. Mas o que é que quer dizer exatamente? Não foi imaginado
só por brincadeira, pretende explicar algo. Esta é uma interpretação possível:
Quando a seca atingia uma terra, os homens precisavam de uma explicação para o
fato de não chover. Talvez os gigantes tivessem roubado o martelo de Thor.
É também possível que este mito procure compreender a mudança das estações do
ano: no Inverno, a natureza está morta porque o martelo de Thor está em Jotunheimen. Mas
na Primavera, recupera-o. E assim, os mitos procuram explicar aos homens algo
incompreensível.
Mas os homens não se deixavam ficar pelas explicações, como vimos. Procuravam
igualmente intervir num acontecimento tão importante para eles através dos diversos ritos
religiosos que estavam relacionados com os mitos.
Podemos supor que os homens representassem um drama sobre o conteúdo do
mito, no caso de uma seca, ou de uma má colheita. Talvez um homem da aldeia se
disfarçasse de noiva - com pedras como seios - para roubar de novo o martelo aos gigantes.
Os homens podiam, assim, fazer alguma coisa para que a chuva viesse e as sementes
germinassem nos campos.
Temos muitos exemplos semelhantes provenientes de outros lugares do mundo: os
homens encenavam um "mito das estações", para acelerar os processos da natureza.
Passamos o olhar sobre a mitologia nórdica. Havia inumeráveis outros mitos sobre
“Thor” e “Odin, Freyr” e “Freyja”, Hoder” e “Balder” e sobre muitas outras divindades.
Havia representações míticas como estas em todo o mundo, antes de os filósofos
começarem a criticá-las. Também os Gregos tinham uma concepção mítica do mundo,
quando surgiram os primeiros filósofos. Durante séculos, uma geração transmitia à seguinte
as histórias dos deuses. Na Grécia, as divindades chamavam-se “Zeus” e “Apolo, Hera” e
“Atena, Dioniso” e “Asclépio, Hércules” e “Hefesto”, para citar apenas alguns.
Por volta do ano 700 a.C., “Homero” e “Hesíodo” escreveram grande parte dos
mitos gregos. Esse fato criou uma situação completamente nova.
Uma vez que os mitos estavam escritos, era possível falar acerca deles.
Os primeiros filósofos gregos criticaram a mitologia homérica porque, para eles, os
deuses eram demasiado semelhantes aos homens. Na verdade, eram tão egoístas e de tão
pouca confiança como nós. Pela primeira vez na história da humanidade se afirmou que os
mitos eram apenas fruto da imaginação do homem.
Encontramos um exemplo desta crítica aos mitos no filósofo “Xenófanes”, que
nasceu em aproximadamente 570 a.C. Segundo ele, os homens tinham criado os deuses à
sua própria imagem:
"Mas os mortais julgam que os deuses nasceram e têm aspecto exterior, voz e
figura igual à sua... Os Etíopes imaginam os seus deuses negros e com o nariz chato, os
Trácios, por sua vez, imaginam-nos ruivos e de olhos azuis... Se as vacas, os cavalos ou os
leões tivessem mãos e pudessem pintar e criar obras como os homens, os cavalos pintariam
os seus ídolos semelhantes a cavalos, as vacas semelhantes a vacas e criariam as figuras
iguais a si."
Nesta época, os Gregos fundaram muitas cidades-estado na Grécia e nas suas
colônias da Itália meridional e da Ásia Menor. Aí, os escravos executavam todo o trabalho
físico, e os cidadãos livres podiam dedicar-se à política e à cultura. Com estas condições de
vida, a maneira de pensar dos homens mudou: cada indivíduo podia colocar a questão de
como a sociedade devia ser organizada. Do mesmo modo, podia também colocar perguntas
filosóficas, sem ter de recorrer aos mitos tradicionais.
Dizemos que se deu um desenvolvimento de um modo de pensar mítico para um
gênero de reflexão baseada na experiência e na razão. O objetivo dos primeiros filósofos
gregos era encontrar explicações naturais para os fenômenos da natureza.
Sofia passeava pelo grande jardim. Procurava esquecer tudo o que aprendera na
escola. O mais importante era esquecer o que tinha lido nos livros de ciências da natureza.
Se tivesse crescido naquele jardim, sem saber mais nada sobre a natureza, como é que veria
a Primavera?
Imaginaria uma explicação para o fato de, num certo dia, começar a chover?
Inventaria uma explicação para compreender o fato de a neve desaparecer e o Sol despontar
no céu?
Sim, tinha a certeza disso, e começou a imaginar: O Inverno envolvera a terra com
um palmo de gelo porque o malvado Muriat mantinha presa num cárcere frio a bela
princesa Sikita. Mas certa manhã, chegou o valente príncipe Bravato e libertou-a. Sikita
ficou tão contente que começou a dançar nos prados, enquanto cantava uma canção que
inventara no cárcere frio. Nessa altura, a terra e as árvores ficaram tão comovidas que toda
a neve se transformou em lágrimas.
O Sol surgiu no céu e secou todas as lágrimas. As aves imitaram a canção de Sikita
e, à medida que a bela princesa desprendia os seus cabelos dourados, alguns caracóis
caíram no solo, transformando-se em lírios do campo...
Sofia achou que tinha inventado uma bela história.
Se não tivesse nenhuma outra explicação para a alternância das estações do ano,
teria com certeza acreditado na sua história.
Percebeu que os homens tinham tido sempre necessidade de encontrar explicações
para os fenômenos naturais. Talvez os homens não pudessem viver sem essas explicações.
Por isso tinham imaginado os mitos, quando ainda não havia a ciência.

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