“... do nada, nada pode nascer...”
Quando, nessa tarde, a mãe chegou a casa do trabalho, Sofia estava sentada no
balanço e meditava sobre que relação poderia existir entre o curso de filosofia e Hilde
Mõller Knag, que não receberia nenhum postal de aniversário do seu pai.
- Sofia! - chamou a mãe de longe - Há aqui uma carta para ti!
Sofia assustou-se. Ela tinha recolhido o correio, por isso a carta tinha de ser do filósofo. O
que havia de dizer à mãe? Ergueu-se lentamente do balanço e foi ter com a mãe.
- Não tem selo. Provavelmente é uma carta de amor. Sofia pegou nela.
- Não a queres abrir? O que é que havia de dizer?
- Já ouviste falar de pessoas que abrem cartas de amor quando a mãe, por detrás,
espreita de soslaio? Era preferível que a mãe acreditasse que se tratava de uma carta de
amor. Era uma situação extremamente penosa, visto que Sofia era ainda bastante nova para
receber cartas de amor; mas seria ainda mais desagradável se se viesse a saber que ela
recebia, por correspondência, um curso de um filósofo inteiramente desconhecido que
brincava ao gato e ao rato com ela.
Era um envelope branco, pequeno. Já no quarto, Sofia leu as três perguntas que o
envelope continha: “Haverá um elemento primordial a partir do qual tudo é gerado? Será
que a água se pode transformar em vinho? Como é que a terra e a água se podem
transformar numa rã viva?”.
Sofia achou estas perguntas absurdas, mas andou com elas na cabeça durante toda
a tarde. Na manhã seguinte, na escola, refletiu nas três perguntas pela ordem apresentada.
Haveria um "elemento primordial", a partir do qual tudo fosse gerado? Mas se
houvesse um elemento a partir do qual tudo o que está no mundo fosse produzido, como é
que este elemento poderia transformar-se de repente num dente-de-leão ou num elefante?
Passava-se o mesmo com a pergunta sobre a água: poder-se-ia transformar em
vinho? Sofia já tinha ouvido dizer que Jesus tinha transformado água em vinho, mas não
interpretara esta história literalmente. E se Jesus tinha de fato transformado água em vinho,
era um milagre, algo que normalmente não era possível. Sofia não tinha dúvidas sobre o
fato de haver uma grande percentagem de água no vinho e em muitas plantas e animais.
Mas mesmo que um pepino fosse constituído por noventa e cinco por cento de
água, teria de haver algo mais que fizesse com que um pepino fosse um pepino e não
apenas água.
E havia ainda a questão da rã. O seu professor de filosofia tinha um fraco por rãs.
Sofia poderia eventualmente aceitar que uma rã fosse feita de terra e água, mas
nesse caso a terra não podia ser feita de um só elemento. Se a terra fosse composta de
muitos elementos diversos, era possível pensar que a terra juntamente com a água
produzisse uma rã. Se a terra e a água fizessem um desvio pelos ovos da rã e pelos girinos,
bem entendido. É que uma rã não podia simplesmente crescer numa horta, mesmo que
fosse regada muito escrupulosamente.
Quando, nessa tarde, regressou a casa da escola, havia uma carta grossa dirigida a
ela na caixa do correio.
Sofia foi para a toca, como já fizera nos dias anteriores.
“O projeto dos filósofos”
Eis-nos de novo! É preferível começarmos imediatamente com a lição de hoje,
deixando à parte os coelhos brancos e coisas parecidas.
Vou contar-te em linhas gerais como é que os homens, desde a Antiguidade até
hoje, pensaram sobre as questões filosóficas. Tudo por ordem cronológica.
Visto que a maior parte dos filósofos viveram numa outra época - e possivelmente
também numa cultura completamente diferente da nossa - vale a pena interessarmo-nos
pelo projeto de cada filósofo. Quero com isso dizer que temos de tentar compreender os
aspectos a que o filósofo quis dar resposta.
Um filósofo pode perguntar-se como é que as plantas e os animais surgiram. Um
outro pode querer descobrir se Deus existe, ou se os homens possuem uma alma imortal.
A partir do momento em que determinamos qual é o projeto de um determinado
filósofo, podemos mais facilmente seguir o seu pensamento. Com efeito, dificilmente um
filósofo se ocupa de todas as questões filosóficas.
Falei sobre o pensamento "dele", porque a história da filosofia foi escrita,
principalmente, por homens. Isso se deve à condição de inferioridade freqüentemente
atribuída à mulher, tanto no plano físico como no plano intelectual. É grave, na medida em
que, dessa forma, se perderam muitas experiências. As mulheres só surgem
verdadeiramente na história da filosofia neste século. Não te vou dar trabalhos de casa -
nem trabalhos complicados de matemática. As flexões dos verbos ingleses não me
interessam. Mas, de vez em quando, pedir-te-ei que faças um pequeno exercício. Se
aceitares estas condições, continuamos.
“Os filósofos da natureza”
Os primeiros filósofos gregos são designados por "filósofos da natureza", porque
se interessaram, principalmente, pela natureza e pelos processos físicos.
Já nos interrogamos sobre a origem de tudo. Hoje em dia, muitos homens
acreditam que tudo nasceu do nada em determinada altura. Este pensamento não estava
muito difundido entre os Gregos.
Eles acreditavam que "algo" teria existido sempre.
A questão fundamental não era, portanto, como é que tudo poderia surgir do nada.
Em lugar disso, os Gregos admiravam-se que a água se pudesse transformar em
peixes vivos, e a terra morta em árvores altas ou flores de cores vistosas. Para não falar de
como um bebê pode nascer no corpo da mãe!
Os filósofos viam com os seus próprios olhos que havia na natureza
transformações constantes. Mas como é que essas transformações eram possíveis? Como é
que algo feito de uma substância se poderia transformar numa coisa completamente
diferente?
Era comum entre os primeiros filósofos acreditarem que havia um elemento
primordial responsável por todas as transformações. A forma como teriam chegado a este
pensamento não é clara. Sabemos apenas que ele surgiu da concepção, segundo a qual, teria
de haver um elemento primordial, que daria origem a todas as transformações da natureza.
O mais interessante para nós não são as respostas que estes primeiros filósofos
encontraram. O mais interessante são as questões que punham e que tipo de respostas
procuravam. Para nós, é mais importante saber como é que eles pensaram do que o que pensaram.
Podemos constatar que se questionavam sobre a forma como aconteciam certas
transformações na natureza. Procuravam descobrir algumas leis naturais eternas.
Desejavam compreender os fenômenos da natureza, sem recorrer aos mitos tradicionais.
Acima de tudo, procuravam compreender os processos da natureza através da observação
da própria natureza. Isso é completamente diferente da explicação do relâmpago e do
trovão, do Inverno e da Primavera, por meio da referência aos acontecimentos no mundo
dos deuses.
Desta forma, a filosofia libertou-se da religião. Podemos afirmar que os filósofos
da natureza deram os primeiros passos em direção a um modo de pensar “científico”.
Assim, abriram caminho a toda a posterior ciência da natureza.
Quase tudo o que os filósofos da natureza disseram e escreveram perdeu-se para a
posteridade. O pouco que sabemos encontramo-lo nos escritos de Aristóteles, que viveu
duzentos anos após os primeiros filósofos. Mas Aristóteles resume apenas os resultados a
que os filósofos anteriores tinham chegado. O que significa que não podemos saber sempre
de que forma é que chegaram às suas conclusões. Mas sabemos o suficiente para podermos
afirmar que o projeto dos filósofos gregos consista nas questões que estavam relacionadas
com o elemento primordial nas transformações da natureza.
“Três filósofos de Mileto”
O primeiro filósofo de que temos notícia é Tales, da colônia grega de Mileto, na
Ásia Menor. Ele viajava freqüentemente. Diz-se que, certa vez, teria medido a altura de
uma pirâmide no Egito, medindo a sombra da pirâmide no momento em que a sua própria
sombra estava tão alta como ele. Além disso, conseguiu prever um eclipse do Sol no ano
585 a.C.
Para Tales, a água era a origem de todas as coisas. Não sabemos exatamente o que
ele queria dizer com isto. Talvez quisesse dizer que toda a vida começa na água - e que toda
a vida se torna de novo água quando se inicia a degradação.
Quando esteve no Egito, viu certamente como os campos ficavam férteis quando o
Nilo abandonava as terras que constituíam o seu delta.
Talvez tenha visto também como as rãs e os vermes surgiam à luz do sol depois de
ter chovido.
Além disso, é provável que Tales se tenha questionado quanto ao modo como a
água se pode tornar gelo e vapor – e de novo água.
Afirma-se que Tales disse que "tudo está cheio de deuses". Apenas podemos
avançar hipóteses sobre a interpretação desta frase. Talvez tivesse pensado que a terra era a
origem de tudo, desde as flores e as sementes, até às abelhas e baratas. Tinha chegado à
conclusão de que a terra estava cheia de pequenos "gérmenes da vida" invisíveis. O que é
certo é que não estava a pensar nos deuses homéricos.
O filósofo seguinte de que temos conhecimento é Anaximandro, que viveu
igualmente em Mileto. Para ele, o nosso mundo é apenas um dos muitos que nascem de
algo e perecem em algo que ele denominou o infinito. É difícil dizer o que queria significar
com o termo infinito, mas sabemos que não pensava, ao contrário de Tales, numa
substância totalmente determinada. Talvez quisesse dizer que aquilo, a partir do qual tudo é
criado, tem de ser completamente diferente de tudo o que é criado. E visto que tudo o que é
criado é finito, tudo o que lhe é anterior ou posterior tem de ser infinito. É claro que o elemento primordial não podia ser, assim, simples água.
Um terceiro filósofo de Mileto era Anaxímenes (cerca de 570-526 a. C.). Para ele,
o ar era o elemento primordial de todas as coisas. Anaxímenes conhecia, naturalmente, a
teoria de Tales sobre a água. Mas de onde surge a água? Para Anaxímenes, a água era ar
condensado. Nós sabemos que, ao chover, a água é condensada a partir do ar. Quando a
água é ainda mais condensada, torna-se terra, segundo Anaxímenes. Talvez tivesse visto
que, quando o gelo se derrete, "expele" terra e areia.
De modo análogo, pensava que o fogo era ar rarefeito. Segundo Anaxímenes, a
terra, a água e o fogo tinham origem no ar.
A passagem da terra e da água às plantas no campo não era demorada. Talvez
Anaxímenes pensasse que a terra, o ar, o fogo e a água tivessem de existir para que pudesse
nascer vida. Mas o verdadeiro ponto de partida era o ar. Ele partilhava, portanto, a
concepção de Tales, segundo a qual um elemento primordial estava na origem de todas as
transformações na natureza.
“Do nada, nada pode nascer”.
Os três filósofos de Mileto acreditavam num – e apenas num elemento primordial,
a partir do qual todas as outras coisas eram criadas. Mas como poderia uma substância
transformar-se de repente e tornar-se uma coisa completamente diferente? Podemos
designar este problema pelo problema do devir.
A partir de aproximadamente 500 a.C. viveram na colônia grega de Eléia, na Itália
meridional, alguns filósofos, e estes "eleatas" tratavam destes problemas. O mais conhecido
de entre eles era Parmênides (aproximadamente 540-480 a.C.).
Parmênides acreditava que tudo o que existe, existiu sempre. Esta idéia estava
bastante difundida entre os Gregos. Tinham como evidente que tudo o que há no mundo
existiu desde sempre. Do nada, nada pode nascer, pensava Parmênides. E nada do que
existe pode tornar-se nada.
Mas Parmênides foi mais longe que a maior parte dos outros. Para ele, não era
possível nenhuma verdadeira transformação. Uma coisa só se pode transformar naquilo que
já é.
Parmênides não tinha dúvidas de que na natureza se dão constantemente
transformações. Os seus sentidos apercebiam-se do devir das coisas. Mas não conseguia
fazer coincidir o que os seus sentidos registravam com o que a razão lhe dizia. Quando foi
obrigado a decidir se devia confiar nos sentidos ou na razão, decidiu-se pela razão.
Conhecemos a frase: "Só acredito naquilo que vejo." Mas Parmênides nem sequer
acreditava no que via. Pensava que os sentidos nos forneciam uma imagem falsa do mundo,
uma imagem que não coincidia com o que a razão diz aos homens. Enquanto filósofo,
encarava a sua tarefa como o desmascarar de todas as formas de "ilusões sensoriais".
Esta forte confiança na razão humana é designada “racionalismo”. Um racionalista
é uma pessoa que tem uma grande confiança na razão humana, como fonte do nosso
conhecimento sobre o mundo.
“Tudo flui”
“Heráclito”, contemporâneo de Parmênides, era originário de Éfeso na Ásia Menor
(aproximadamente 540-480 a.C.). Segundo ele, as transformações constantes eram a verdadeira característica da natureza. Podemos dizer que Heráclito confiava mais nas
impressões dos sentidos do que Parmênides.
"Tudo flui", segundo Heráclito. Tudo está em movimento, e nada dura
eternamente. Por isso, não podemos "entrar duas vezes no mesmo rio". Porque quando
entro no rio pela segunda vez, tanto eu como o rio estamos mudados.
Heráclito explicou, também, que o mundo é caracterizado por contrários
constantes. Se nunca estivéssemos doentes, não compreenderíamos o que é a saúde. Se
nunca tivéssemos fome, não gostaríamos de comer. Se nunca houvesse guerra, não
saberíamos apreciar a paz, e se nunca fosse Inverno, não saberíamos quando chega a
Primavera.
Tanto o bem como o mal ocupam um lugar necessário no todo, dizia Heráclito.
Sem o jogo permanente entre contrários, o mundo terminaria.
"Deus é o dia e a noite, o Inverno e o Verão, a guerra e a paz, a saciedade e a
fome", dizia. Ele utiliza aqui a palavra "Deus", mas não se refere aos deuses de que falam
os mitos. Segundo Heráclito, Deus - ou o divino - é algo que abrange tudo.
Sim, Deus está patente justamente na natureza, que é contraditória e está em
transformação constante.
Em vez do termo "Deus", Heráclito usa freqüentemente a palavra grega “logos”,
que significa razão. Mesmo que nós, homens, não pensemos sempre de modo igual ou não
tenhamos o mesmo bom-senso, tem de haver uma espécie de "razão universal", que
governe tudo o que acontece na natureza. Esta razão universal - ou "lei universal" – é
comum a todos, e todos os homens se devem orientar por ela. No entanto, a maior parte
deles vive segundo a sua própria razão particular, segundo Heráclito. Com efeito, ele não
tinha uma idéia muito positiva do seu próximo. As opiniões da maior parte dos homens
eram, para ele, "brinquedos de crianças".
Em todas as transformações e contradições da natureza, Heráclito via uma unidade
ou totalidade. Aquilo que está na origem de tudo, era designado por ele "Deus", ou “logos”.
Quatro elementos principais Parmênides e Heráclito tinham, sob um certo ponto de
vista, concepções opostas. A razão de Parmênides defendia que nada se pode alterar.Mas as
experiências dos sentidos de Heráclito defendiam que, na natureza, se dão constantemente
transformações.
Qual dos dois tinha razão? Devemos confiar na razão, ou nos sentidos? Tanto
Parmênides como Heráclito fazem duas afirmações respectivamente:
Parmênides afirma que:
a) nada se pode transformar e que:
b) conseqüentemente as impressões dos sentidos não podem ser dignas de
confiança.
Heráclito, por seu lado, afirma que:
a) tudo se transforma ("tudo flui") e que:
b) as impressões dos sentidos são dignas de confiança.
Dificilmente pode haver um desacordo maior entre filósofos! Mas qual dos dois
tinha razão? Por fim, Empédocles (aproximadamente 494-434 a.C.), de Agrigento, haveria
de encontrar o caminho para sair do novelo no qual a filosofia se tinha emaranhado.
Pensava que tanto Parmênides como Heráclito tinham razão numa das suas afirmações, mas
que ambos se enganavam num ponto.
Segundo Empédocles, a grande discórdia baseava-se no fato de os filósofos terem
pressuposto que apenas havia um elemento. Se isso fosse verdade, então o abismo entre o
que a razão diz e o que recebemos dos sentidos seria intransponível.
A água não se pode transformar em peixe ou em borboleta. A água não se pode
transformar de todo. A água pura permanece água pura para toda a eternidade. Parmênides
tinha razão em afirmar que nada se transforma. Simultaneamente, Empédocles estava de
acordo com Heráclito, dizendo que devemos confiar nas impressões dos sentidos. Temos
que acreditar no que vemos, e vemos transformações permanentes na natureza.
Empédocles reconheceu que a idéia de um único elemento primordial tinha de ser
rejeitada. Nem a água, nem o ar se podiam transformar numa roseira ou numa borboleta. A
natureza não podia ter apenas um elemento constituinte.
Segundo Empédocles a natureza é constituída por quatro elementos primordiais ou
"raízes", que identifica com a terra, o ar, o fogo e a água.
Todas as transformações da natureza resultam do fato de os quatro elementos se
misturarem e se separarem. Tudo é constituído por terra, ar, fogo e água, misturados em
proporções variáveis. Quando uma flor ou um animal morrem, os quatro elementos
separam-se novamente uns dos outros.
Podemos apercebermo-nos destas transformações a olho nu.
Mas a terra, o ar, o fogo e a água permanecem totalmente inalterados ou intactos,
apesar de todas as misturas em que estão presentes. Também não é verdade que "tudo" se
altera. Basicamente, nada se altera. O que sucede é que quatro elementos diferentes se
misturam e se voltam a separar - para se misturarem novamente no futuro.
Podemos fazer uma comparação com um pintor. Se ele tem apenas uma cor – por
exemplo, o vermelho – não pode pintar árvores verdes.
Mas se tem amarelo, vermelho, azul e preto, pode pintar centenas de cores
diferentes, porque mistura as cores em proporções diferentes.
Um exemplo da cozinha mostra-nos o mesmo. Se eu tivesse apenas farinha, tinha
de ser um ilusionista para fazer um bolo com ela. Mas se tenho ovos e farinha, leite e
açúcar, posso criar variados bolos com os quatro elementos de base.
Não foi por acaso que para Empédocles as raízes da natureza eram precisamente a
terra, o ar, o fogo e a água.
Antes dele, outros filósofos tinham procurado mostrar que o elemento primordial
era a terra ou a água ou o ar ou o fogo. Tales e Anaxímenes tinham insistido em que a água
e o ar eram elementos importantes na natureza.
Para os Gregos, o fogo também era importante. Por exemplo, viam a importância
do Sol em toda a vida da natureza e, obviamente, tinham conhecimento do calor do corpo
nos homens e nos animais.
Talvez Empédocles tenha visto arder um pedaço de madeira. Neste caso, há algo
que se desagrega. Ouvimo-lo no crepitar da madeira. É a água. Algo se torna fumaça. É o
fogo. E vemos claramente o fogo. Quando as chamas se apagam, algo permanece. É a
cinza, ou a terra.
Depois de Empédocles ter indicado que as transformações da natureza são produzidas através da mistura e separação das quatro raízes, há ainda uma questão em
aberto: qual é a causa pela qual os elementos se unem para que nasça uma nova vida? E o
que é que contribui para que a "mistura", uma flor, por exemplo, se desagregue de novo?
Segundo Empédocles, há na natureza duas forças diferentes que nela agem.
Designava estas forças por “amor” e “discórdia”. Aquilo que une as coisas é o amor, o que
as desagrega é a discórdia.
Empédocles faz uma distinção importante entre elemento e força. É importante
notar isto. Ainda hoje, a ciência distingue elementos e forças da natureza. A ciência
moderna acredita que todos os processos da natureza se podem explicar como resultado dos
vários elementos e algumas forças da natureza.
Empédocles também se dedicou à questão do que acontece quando sentimos algo.
Como é que eu posso, por exemplo, "ver" uma flor? O que sucede então? Já alguma vez
refletiste sobre isto, Sofia?
Caso não o tenhas feito, tens a oportunidade de o fazer agora.
Empédocles pensava que os nossos olhos, tal como todas as outras coisas na
natureza, são constituídos por terra, ar, fogo e água. Por isso, a terra do meu olho apreende
o que é feito de terra no que é visto, o ar apreende o que é feito de ar, o fogo dos olhos
apreende o que é feito de fogo, e a água o que é feito de água. Se faltasse no olho um destes
elementos, eu não poderia ver toda a natureza.
”Algo de tudo em tudo”
Um outro filósofo, Anaxágoras (500-428 a.C.), não estava satisfeito com a
conclusão a que se tinha chegado: que um determinado elemento primordial - água, por
exemplo - se pudesse transformar em tudo o que vemos na natureza. Também não aceitava
a concepção segundo a qual a terra, o ar, o fogo e a água se transformavam em sangue ou
ossos, pele ou cabelo.
Anaxágoras achava que a natureza era composta por ínfimas partículas que não
podiam ser apreendidas pelos olhos. Segundo ele, tudo se pode dividir em partes ainda
menores, havendo nessas partículas um pouco de tudo.
Se a pele e o cabelo não podem nascer de uma outra coisa, então tem de haver
também, segundo ele, pele e cabelo no leite que bebemos e nos alimentos que comemos.
Dois exemplos modernos apontam para aquilo em que Anaxágoras pensou. Com a
técnica “laser” podemos fabricar os chamados "hologramas". Se um holograma representa,
por exemplo, um carro e este holograma é em seguida fragmentado, veremos ainda a
imagem de todo o carro, mesmo que já só tenhamos a parte do holograma que mostrava o
pára-choques. Isto sucede porque todo o motivo está presente em cada parte, mesmo a mais
reduzida.
O nosso corpo também é basicamente formado desta maneira. Se eu raspar uma
célula da pele do meu dedo, o núcleo da célula não contém apenas a descrição da minha
pele. Na mesma célula, há igualmente a descrição dos meus olhos, da minha cor de cabelo,
do número e aspecto dos meus dedos, etc. Em cada célula do corpo há uma detalhada
descrição da constituição de todas as outras células do meu corpo. Em cada célula há,
portanto, "algo de tudo". A totalidade encontra-se na partícula mais reduzida.
Anaxágoras chamou "sementes" a estes elementos infinitamente divisíveis a partir
dos quais se formam os vários corpos. Vimos que segundo Empédocles o amor unia entre si as várias partes que formavam os corpos na sua globalidade. Também Anaxágoras
imaginava uma espécie de força que, por assim dizer, produzia a ordem e criava homens,
animais, flores e árvores. Designava esta força por “espírito” ou razão.
Anaxágoras é também digno de nota por ser o primeiro filósofo em Atenas de que
temos notícia. Era oriundo da Ásia Menor, mas foi viver para Atenas com cerca de quarenta
anos. Aí, foi acusado de impiedade e teve que deixar novamente a cidade.
Afirmara, entre outras coisas, que o Sol não era nenhum Deus, mas uma massa
incandescente, maior que a península do Peloponeso.
Anaxágoras interessava-se muito por astronomia. Acreditava que todos os corpos
celestes eram feitos da mesma substância que a terra. Ficou convencido disto após ter
examinado um meteorito. Por isso, era lícito pensar, segundo ele, que existissem homens
noutros planetas. Além disso, esclareceu que a Lua não brilhava por si mesma, mas era
iluminada pela terra. Por fim, explicou a formação dos eclipses solares.
PS. Obrigado pela atenção, Sofia. Talvez tenhas que ler este capítulo duas ou três
vezes até compreenderes tudo. Mas a compreensão implica um pequeno esforço pessoal.
Dificilmente admirarias uma amiga que soubesse tudo se isso não lhe tivesse custado nada.
A melhor resposta para a questão do elemento primordial e das transformações na
natureza tem de esperar até amanhã. Conhecerás então Demócrito. Não revelo mais nada!
Sofia estava na toca e espreitava para o jardim. Tinha que tentar ordenar os seus
pensamentos depois de tudo o que tinha lido.
Era óbvio que a água se podia tornar gelo ou vapor.
Mas a água não podia transformar-se numa melancia, visto que mesmo uma
melancia era constituída por algo mais que água. Mas se estava tão certa disso, era porque o
tinha aprendido. Poderia saber que o gelo era constituído apenas por água se não o tivesse
aprendido? Nesse caso, teria que ter observado muito bem de que modo a água passava a
gelo e como o gelo se derretia.
De novo, Sofia procurava pensar por si mesma sem aplicar o que tinha aprendido
de outros.
Parmênides recusara-se a aceitar qualquer forma de devir. E quanto mais ela
refletia sobre isso, mais se convencia de que, de um certo ponto de vista, ele tinha razão. A
sua razão não podia aceitar que "algo" se transformasse subitamente em "algo"
completamente diferente.
Tinha sido muito corajoso da parte dele dizer isto, porque tivera de negar todas as
alterações na natureza, que todo o homem podia observar.
De certeza que muita gente se tinha rido dele.
Também Empédocles se tinha mostrado genial ao explicar que o mundo tinha
necessariamente de ser constituído por mais do que um só elemento. Desta forma, todas as
alterações na natureza eram possíveis, sem que alguma coisa se transformasse de fato.
O antigo filósofo grego tinha descoberto isto com o simples uso da razão.
Naturalmente, tinha observado a natureza, mas não tivera nenhuma possibilidade de efetuar
análises químicas, ao contrário da ciência moderna.
Sofia não sabia se estava particularmente convencida de que tudo era constituído
por terra, ar, fogo e água. Mas o que é que isso importava?
Em princípio, Empédocles tinha razão. A nossa única possibilidade de aceitarmos
todas as alterações que os nossos olhos vêem sem perdermos o juízo, é admitirmos mais do que uma substância.
Sofia achava a filosofia particularmente cativante porque podia seguir todas as
reflexões com o seu próprio entendimento - sem ter de recordar tudo o que aprendera na
escola. Verificou que, na verdade, não se pode aprender filosofia, mas talvez se pudesse
aprender a “pensar” filosoficamente.
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O Mundo de Sofia
RomanceCartas anônimas começam a chegar à caixa de correio da menina Sofia. Elas trazem perguntas sobre a existência e o entendimento da realidade. Por meio de um thriller emocionante, Gaarder conta a história da filosofia, dos pré-socráticos aos pós-moder...