CAPÍTULO V: DEMÓCRITO

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“... o brinquedo mais genial do mundo...”
Sofia fechou a caixa dos biscoitos que continha todas as folhas escritas à máquina
do filósofo desconhecido.
Deslizou para fora da toca e ficou parada durante algum tempo a observar o
jardim.
De repente, lembrou-se do que acontecera no dia anterior. A mãe fizera troça dela
durante o café-da-manhã devido à "carta de amor" que recebera. Sofia correu em direção à
caixa do correio para que isso não se repetisse. Receber duas cartas de amor em dois dias
seguidos equivalia a sentir-se envergonhada duas vezes.
Havia de novo um envelope branco pequeno! Sofia compreendeu então o sistema
de correspondência: todas as tardes, encontrara na caixa do correio um envelope grande e
amarelo. E, enquanto o lia, o filósofo ia lá às escondidas com uma pequena carta branca.
Isso significava que Sofia podia desmascará-lo facilmente. Ou seria uma filósofa?
Se se pusesse à janela do seu quarto, tinha uma boa vista para a caixa do correio. Nessa
altura, de certeza que descobriria o misterioso filósofo, visto que os envelopes brancos não
podiam nascer por si mesmos.
Sofia decidiu tomar muita atenção no dia seguinte. Era sexta-feira, e teria todo o
fim-de-semana à sua frente.
Foi então para o seu quarto e abriu o envelope. Nesse dia, havia apenas uma
pergunta na folha, mas em compensação esta pergunta era ainda mais absurda do que as
três contidas na "carta de amor":
“Porque é que as peças do Lego são o brinquedo mais genial do mundo?”
Sofia não estava muito convencida de que achava as peças do Lego o brinquedo
mais genial do mundo; de qualquer modo, já não brincava com elas há muitos anos.
Além disso, não conseguia compreender o que é que as peças do Lego teriam a ver
com filosofia.
Mas era uma aluna obediente. Remexeu na prateleira mais alta do seu armário e
encontrou por fim um saco de plástico com peças de Lego de variadíssimos tamanhos e
formas.
Há muito tempo que não construía nada com as pequenas peças de plástico.
Começou, então, a fazê-lo. À medida que o fazia, começou a pensar acerca das peças do
Lego.
É fácil construir com o Lego, pensou. Apesar de as peças serem de tamanho e
forma diferentes, todas podem ser montadas umas sobre as outras. Além disso, não se
estragam facilmente. Sofia não se conseguia lembrar de ter alguma vez visto uma peça
partida. Todas pareciam estar ainda tão novas e frescas como quando as recebera há muitos
anos. E, além disso, com as peças do Lego podia construir tudo. Depois, podia desencaixar
as peças e construir algo completamente diferente.
Que mais se podia exigir?
Sofia verificou que as peças do Lego podiam, realmente, ser consideradas o
brinquedo mais genial do mundo.
Mas ainda não percebia o que é que isso tinha a ver com filosofia. Em pouco tempo, construiu uma grande casa de bonecas. Quase não queria admitir que há muito
tempo não se divertia tanto. Porque é que as pessoas deixavam de brincar?
Quando a sua mãe chegou a casa e viu a casa de bonecas de Sofia, disse de
imediato: - Que bom ver que ainda consegues brincar como uma criança!
- Bah! Eu estou a trabalhar em investigações filosóficas complexas. A mãe
suspirou profundamente. Estava certamente a pensar no coelho e na cartola. Quando Sofia
regressou da escola no dia seguinte, encontrou um grande envelope amarelo com muitas
folhas. Foi para o seu quarto. Queria ler tudo imediatamente, mas nesse dia também queria
ter a caixa do correio debaixo de olho.
“A teoria atomista”
Aqui estou de novo, Sofia. Hoje vou falar sobre o último grande filósofo da
natureza. Chamava-se Demócrito (aproximadamente 460-370 a.C.) e vinha da cidade
portuária de Abdera, a norte do Mar Egeu. Se conseguiste responder à pergunta acerca das
peças do Lego, não te será difícil compreender o projeto deste filósofo.
Demócrito concordava com os seus predecessores ao afirmar que as
transformações observáveis na natureza não significavam que algo se alterasse realmente.
Admitiu, portanto, que tudo tinha de ser composto de elementos pequenos e invisíveis,
eternos e imutáveis. Demócrito designava estas pequenas partículas por átomos.
O termo "átomo" significa "indivisível". Para Demócrito, era fundamental afirmar
que aquilo a partir do qual tudo é formado não pode ser dividido em partes cada vez
menores. Se os átomos pudessem ser constantemente divididos em partes cada vez
menores, a natureza teria começado a fluir como uma sopa cada vez mais líquida.
Os elementos constitutivos da natureza tinham ainda de se conservar eternamente -
porque nada pode nascer do nada. Nisto, Demócrito estava de acordo com Parmênides e os
eleatas. Além disso, os átomos eram sólidos e compactos. Mas não podiam ser iguais.
Porque se os átomos fossem iguais, não teríamos uma explicação válida para o fato de
poderem ser combinados de modo a formarem tudo, desde papoulas e oliveiras à pele de
cabra e cabelo humano.
Existe uma quantidade infinita de átomos diferentes na natureza segundo
Demócrito. Alguns são redondos e lisos, outros são irregulares e curvos. E precisamente
porque têm formas tão diversas, podem ser combinados para formarem corpos
completamente diversos. Mesmo sendo numerosos e diferentes, todos são eternos,
imutáveis e indivisíveis.
Quando um corpo – por exemplo, uma árvore ou um animal - morre e entra em
decomposição, os seus átomos dispersam-se e podem ser utilizados de novo em novos
corpos. Os átomos movem-se no espaço vazio e agregam-se para formar as coisas que
vemos à nossa volta.
E agora já percebes o que eu queria dizer com as peças do Lego? Elas possuem
mais ou menos as propriedades que Demócrito atribuiu aos átomos, e precisamente por isso
se pode construir tão bem com elas. Em primeiro lugar, são indivisíveis. São diferentes em
forma e em tamanho, são sólidas e impenetráveis.
Além disso, as peças do Lego têm "ganchos", com os quais podem ser encaixadas
umas nas outras; por isso podem ser transformadas em todas as figuras possíveis.
Esta combinação pode ser mais tarde desfeita e depois construírem-se novos
objetos a partir das mesmas peças. 
E foi justamente o fato de poderem ser sempre usadas de novo que tornou o Lego
tão popular. Uma e a mesma peça de Lego pode fazer hoje parte de um carro, e amanhã de
um palácio. Além disso, é possível dizer que as peças do Lego são "imortais". As crianças
de hoje podem brincar com as mesmas peças com que os seus pais brincaram quando ainda
eram pequenos.
É claro que também podemos construir objetos de barro. Mas o barro nem sempre
pode ser reaproveitado, pois se desfaz em partes cada vez menores, até se reduzir a pó. E
estas minúsculas partículas de argila não podem ser reunidas para formar novos objetos.
Hoje, podemos quase afirmar que a teoria de Demócrito estava certa. A natureza é
de fato formada por diversos átomos, que se combinam uns com os outros e se separam de
ovo. Um átomo de hidrogênio que está numa célula na extremidade do meu nariz
pertenceu, outrora, à tromba de um elefante. Um átomo de carbono do meu miocárdio
esteve já na cauda de um dinossauro.
Hoje em dia, a ciência descobriu que os átomos se dividiam em "partículas
elementares" ainda menores. A essas partículas elementares chamamos prótons, nêutrons e
elétrons. E talvez estas se deixem dividir em partículas ainda menores. Mas os físicos
concordam em afirmar que tem de haver um limite. Têm de existir as partículas menores a
partir das quais a natureza é formada.
Demócrito não tinha acesso aos aparelhos eletrônicos do nosso tempo. O seu único
instrumento era a razão. Mas a razão não lhe deixava nenhuma alternativa. Se aceitarmos
que nada se pode alterar, que nada surge do nada e que nada desaparece, nesse caso a
natureza tem de ser formada por elementos constitutivos minúsculos que se combinam e se
separam uns dos outros.
Demócrito não tinha em conta uma "força" ou um "espírito" que interviesse nos
processos naturais. As únicas coisas que existem, segundo ele, são os átomos e o espaço
vazio. Dado que ele só acreditava no que é "material", denominamo-lo materialista.
Nos movimentos dos átomos não há uma finalidade consciente. Isso não significa
que tudo o que acontece seja ao "acaso", porque tudo segue as leis constantes da natureza.
Demócrito achava que tudo o que acontece tem uma causa natural, uma causa que reside
nas próprias coisas. Teria dito um dia que preferia descobrir uma lei da natureza a tornar-se
rei da Pérsia.
Segundo Demócrito, a teoria atomista esclarecia também as nossas “sensações”. A
percepção que temos de alguma coisa deve-se ao movimento dos átomos no vazio. Quando
vejo a lua, o que acontece é que os "átomos lunares" atingem o meu olho.
E a “alma”? Não pode ser constituída por átomos, por "coisas" materiais? Para
Demócrito a alma era constituída por "átomos de alma" redondos e lisos. Quando um
homem morre, os átomos da alma dispersam-se em todas as direções e podem dar vida a
outra alma.
Isto significa que o homem não possui uma alma imortal.
Este é um pensamento partilhado hoje por muitas pessoas. Acreditam, como
Demócrito, que a alma está ligada ao cérebro, e que não podemos ter nenhuma forma de
consciência quando o cérebro se decompõe.
Com a sua teoria atomista, Demócrito pôs um ponto final provisório na filosofia da
natureza grega. Estava de acordo com Heráclito quando pensava que, na natureza, tudo flui;
porque as formas vêm e vão. Mas por detrás de tudo o que flui, há algo eterno e imutável
que não flui: os átomos, segundo Demócrito.
Durante a leitura, Sofia espreitava freqüentemente pela janela para verificar se o
misterioso autor das cartas aparecia junto à caixa do correio. Nesse momento, olhava
fixamente para a rua, enquanto refletia sobre o que tinha lido.
Segundo Sofia, Demócrito pensara de um modo simples e genial. Ele encontrara a
solução para os problemas do "elemento primordial" e do "devir". Esta questão era tão
complicada que os filósofos tinham trabalhado muito nela durante várias gerações.
Por fim, Demócrito resolvera todo o problema, tendo usado simplesmente a sua
razão. Sofia quase se riu. Tinha de ser verdade que a natureza era formada por partículas
minúsculas que nunca se alteravam. Ao mesmo tempo, Heráclito tinha razão em afirmar
que todas as formas na natureza "fluem", porque todos os homens e animais morrem, e
mesmo uma montanha se desagrega lentamente. No entanto essa montanha é constituída
por partículas pequenas e indivisíveis que nunca se quebram.
Demócrito colocara novas questões. Por exemplo, afirmara que tudo acontece de
uma forma mecânica. Não aceitava a idéia de forças espirituais na existência - ao contrário
de Empédocles e Anaxágoras.
Além disso, Demócrito não acreditava que o homem tivesse uma alma imortal.
Poderia ela ter a certeza de que ele tinha razão nesse aspecto?
Não estava tão segura disso. Mas ela também estava apenas no início do seu curso
de filosofia.

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