“... a pessoa mais sábia é aquela que sabe que não sabe...”.
Sofia vestiu um vestido de Verão e desceu para a cozinha. A mãe estava
debruçada sobre o lava-louça.
Sofia decidiu não dizer nada sobre o lenço de seda.
- Já foste buscar o jornal? - perguntou Sofia em voz baixa.
A mãe voltou-se.
-Não queres ser simpática e ir buscá-lo por mim?
Sofia correu pelo caminho de saibro e espreitou para a caixa do correio verde.
Apenas jornais. Mas também não podia esperar uma resposta imediata. Na
primeira página do jornal leu algumas linhas acerca do contingente norueguês da ONU no
Líbano.
Contingente da ONU - não era o que estava escrito no postal do pai de Hilde?
Mas tinha um selo norueguês.
Talvez os soldados noruegueses da ONU tivessem uma caixa de correio apenas
para eles. Quando voltou à cozinha, a mãe afirmou ironicamente:
- De repente os jornais passaram a interessar-te muito.
Felizmente, não disse mais nada acerca da caixa do correio ou alguma coisa
semelhante, nem durante o café-da-manhã nem durante o resto do dia. Quando foi às
compras, Sofia foi a correr para a toca com a carta que falava do destino.
O seu coração deu um pulo quando encontrou um pequeno envelope branco junto à
caixa das cartas do seu professor de filosofia. Sofia julgou saber quem o tinha colocado lá.
Este envelope também tinha as bordas úmidas. E apresentava dois golpes
profundos, exatamente como o envelope branco que recebera no dia anterior. Teria o
filósofo estado ali? Conheceria ele o seu esconderijo secreto? Porque é que os envelopes
estavam molhados? Sofia ficou atordoada com todas estas perguntas. Abriu o envelope e
leu o que estava escrito na folha.
“Cara Sofia! Li a tua carta com grande interesse - e também com muita pena
porque não posso aceitar o teu convite para tomar café em tua casa. Havemos de nos
encontrar um dia, mas, por enquanto, não posso ser visto na Curva do Capitão.
Devo ainda acrescentar que já não posso entregar as minhas cartas pessoalmente.
Com o decorrer do tempo, isso seria demasiado arriscado. O meu pequeno
mensageiro levará as próximas cartas.
Em compensação, as cartas serão depositadas diretamente no teu esconderijo
secreto, no jardim. Daqui em diante, podes entrar em contato comigo quando sentires que
há necessidade disso. Nesse caso, tens de usar um envelope cor-de-rosa com uma bolacha
doce ou com um torrão de açúcar. Quando o mensageiro encontrar uma dessas cartas, não
deixará de ma trazer.
PS. Não é nada divertido recusar o convite de uma jovem. Mas por vezes é
necessário. PS2. Se encontrares um lenço de seda, quero pedir-te que o conserves
cuidadosamente. Acontece, por vezes, que os objetos são trocados, principalmente na
escola e em locais semelhantes, e esta é na verdade uma escola de filosofia.
Cumprimentos cordiais,
Albert Knox”.
Sofia já tinha catorze anos, e já recebera várias cartas durante a sua breve
existência, pelo menos no Natal ou nos aniversários.
Mas esta era a carta mais estranha que alguma vez recebera.
Não trazia selo. Nem sequer tinha estado na caixa do correio. Esta carta fora
depositada diretamente no esconderijo supersecreto de Sofia, junto à antiga sebe.
Também era estranho que a carta se tivesse molhado, estando um tempo primaveril
seco. Mas o mais estranho era, obviamente, o lenço de seda. O professor de filosofia tinha
mais uma aluna. Está bem! E esta outra aluna tinha perdido um lenço de seda vermelho.
Está bem! Mas como é que conseguira perder o lenço debaixo da cama de Sofia?
E Alberto Knox... que nome tão esquisito!
De qualquer forma, esta carta provara que havia uma relação entre o professor de
filosofia e Hilde Mõller Knag. Mas que o pai de Hilde confundisse as moradas, era
completamente incompreensível. Sofia ficou muito tempo sentada, questionando-se sobre
que relação poderia haver entre ela própria e Hilde. Por fim, suspirou, resignada. O
professor de filosofia dissera que se encontrariam um dia. Iria ela, nessa altura, conhecer
também Hilde? Virou a folha. Descobriu então que havia algumas frases no verso.
“Existe um pudor natural?
A pessoa mais sábia é aquela que sabe que não sabe. O verdadeiro conhecimento
vem de dentro.
Quem sabe o que é correto, age corretamente.”.
Sofia já sabia que as frases curtas dos envelopes brancos a iriam preparar para o
conteúdo do envelope grande que, entretanto, receberia em seguida. E nesse momento, teve
uma idéia: se o "mensageiro" lhe levava para a toca o envelope amarelo, Sofia podia
esperar por ele. Ou por ela? De qualquer modo, havia de agarrar a pessoa em questão até
que lhe contasse mais qualquer coisa a respeito do filósofo! Na carta estava escrito que o
mensageiro era pequeno. Tratar-se-ia de uma criança?
"Existe um pudor natural?"
Sofia sabia que "pudor" era uma palavra antiquada para designar certas inibições -
por exemplo, deixar-se ver nu. Mas seria realmente natural ter pudor em relação a isso? Ser
natural equivalia a dizer que era válido para todos os homens. Mas em muitos países do
mundo era natural estar nu!
Seria a “sociedade” a estabelecer o que era permitido e o que não era? Quando a
avó era jovem, era completamente impossível tomar banhos de sol em “topless”. Mas hoje
em dia, a maior parte das pessoas achava isso "natural", apesar de ser totalmente proibido
em muitos países. Sofia coçou a cabeça.
Seria isto filosofia?
Depois podia ler-se: "A pessoa mais sábia é a que sabe que não sabe".
Mais sábia que quem? Se o filósofo queria dizer com isso que uma pessoa que
sabia que não sabia tudo era mais sábia do que uma que sabia pouco e que pensava que
sabia muito - sim, nesse caso não era muito difícil partilhar a sua opinião. Sofia nunca tinha
pensado nisso. Mas quanto mais pensava, mais claro lhe parecia que, no fundo, saber que
não se sabe é uma espécie de saber. Ela não conseguia imaginar nada mais estúpido do que
pessoas que defendiam opiniões que julgavam irrefutáveis, quando, na realidade, nada sabiam sobre isso.
Em seguida, havia a frase sobre o conhecimento que vinha de dentro. Mas, sem
dúvida, todo o conhecimento vinha primeiro do exterior passando depois para a cabeça das
pessoas. Por outro lado, Sofia lembrava-se bem de situações em que a sua mãe ou os
professores, na escola, tinham tentado ensinar-lhe qualquer coisa em que ela não estava
interessada. Se aprendera de fato alguma coisa, também tinha, de algum modo, contribuído
para isso. Podia acontecer-lhe compreender algo subitamente - e era isso que era designado
por "saber".
Sim, Sofia achava que tinha resolvido as primeiras perguntas muito bem. Mas em
seguida vinha uma afirmação tão estranha que a deixara perplexa. "Quem sabe o que é
correto, age corretamente".
Queria isso dizer que um assaltante de bancos não tinha uma idéia melhor quando
assaltava um banco? Sofia achava que não. Em vez disso, estava convencida de que tanto
as crianças como os adultos podiam fazer bobagens - dos quais se arrependeriam mais tarde
- e que o faziam tendo plena consciência de que poderiam ter agido de uma forma mais
correta.
Enquanto ainda estava sentada, ouviu de repente, do lado da sebe que ia dar ao
bosque, ramos secos a estalarem. Seria o mensageiro?
Sofia sentiu de novo o coração aos pulos. Mas teve ainda mais medo quando se
deu conta de que, o que se aproximava, arfava como um animal.
Logo em seguida, entrou na toca um cão grande, vindo do bosque. Devia ser um
labrador. Segurava na boca um grande envelope amarelo que deixou cair aos pés de Sofia.
Tudo se passou tão depressa que Sofia não conseguiu sequer reagir. Passados poucos
segundos, tinha o grande envelope nas mãos – e o cão amarelo desaparecera de novo no
bosque. Só depois de tudo isto se ter passado é que o choque surgiu. Sofia pôs as mãos no
colo e começou a chorar.
Não deu por quanto tempo ficou assim, mas, daí a um bocado, levantou de novo os
olhos.
Então aquele era o mensageiro! Sofia sentiu-se aliviada. Era por isso que os
envelopes brancos estavam molhados nas bordas. E era por isso que tinham golpes. Como é
que ainda não pensara nisso? Já fazia sentido que devesse colocar no envelope um biscoito
ou um torrão de açúcar quando quisesse escrever ao filósofo.
Nem sempre conseguia pensar tão depressa como desejava. No entanto, era
bastante curioso que o mensageiro fosse um cão amestrado. Desta forma, podia pôr de lado
a idéia de vir a saber pelo mensageiro o paradeiro de Alberto Knox.
Sofia abriu o envelope e começou a ler.
“A filosofia em Atenas”
Cara Sofia! Quando leres esta carta, já terás conhecido Hermes. Por precaução,
devo acrescentar que Hermes é um cão. Mas não tens que te preocupar. Ele é muito
simpático - e, além disso, tem mais juízo que muitas pessoas. Pelo menos, não tenta parecer
mais esperto do que é na realidade.
Já podes perceber que o seu nome não é fruto do acaso. Hermes era o mensageiro
dos deuses gregos. Era ainda o deus dos viandantes, mas por enquanto isso não nos diz
respeito. O importante é que do nome Hermes deriva o adjetivo "hermético", que significa
obscuro e indecifrável. Isso está relacionado com o fato de Hermes nos manter afastados um do outro.
Já apresentei o mensageiro. Ele responde pelo seu nome e, em geral, é bastante
obediente.
Voltemos à filosofia. Já deixamos a primeira unidade.
Refiro-me à filosofia da natureza, a verdadeira ruptura com a concepção mítica do
mundo. Vamos conhecer agora os três principais filósofos da Antiguidade. Chamam-se
Sócrates, Platão e Aristóteles. Cada um destes filósofos marcou de uma certa maneira a
civilização européia.
Os filósofos da natureza são também designados por pré-socráticos, visto que
viveram antes de Sócrates. Na realidade, Demócrito morreu alguns anos após Sócrates, mas
todo o seu pensamento pertence à filosofia da natureza pré-socrática. Sócrates representa
uma linha de separação não apenas do ponto de vista cronológico. Também do ponto de
vista geográfico, Sócrates é o primeiro filósofo nascido em Atenas, e tanto ele como ambos
os seus sucessores viveram e exerceram a sua atividade em Atenas. Talvez recordes que
Anaxágoras viveu algum tempo nesta cidade, tendo, no entanto, sido expulso dela por
defender que o sol era uma esfera de fogo. (Sócrates não iria ter um destino melhor!).
A partir da época de Sócrates, Atenas torna-se o ponto de encontro da cultura
grega. É ainda mais importante notar que todo o projeto filosófico muda essencialmente, se
passarmos dos filósofos da natureza para Sócrates. Mas antes de conhecermos Sócrates,
vamos saber um pouco mais acerca dos chamados sofistas, que influenciaram o panorama
cultural da cidade de Atenas.
O pano vai subir, Sofia!
A história do pensamento é semelhante a um drama em muitos atos.
“O homem no centro”
Por volta de 450 a.C., Atenas tornou-se o centro cultural do mundo grego. A
filosofia também tomou então uma orientação nova.
Os filósofos da natureza eram, principalmente, investigadores do mundo físico.
Ocupam conseqüentemente um lugar importante na história das ciências. Em Atenas, o
interesse concentrou-se então mais no homem e no seu lugar na sociedade.
Em Atenas desenvolvia-se progressivamente uma democracia com assembléias
populares e tribunais. Uma das condições para a instauração da democracia exigia que os
homens recebessem instrução suficiente para poderem participar na vida política. Também
nos dias de hoje vemos que uma jovem democracia precisa do esclarecimento popular.
Entre os atenienses isso significava, principalmente, dominar a retórica.
Vindo das colônias gregas, um grupo de professores itinerantes e de filósofos
afluiu então a Atenas. Chamavam-se sofistas. A palavra "sofista" designa uma pessoa sábia
ou erudita. Em Atenas, os sofistas ganhavam o seu sustento ensinando os cidadãos.
Os sofistas tinham uma notável semelhança com os filósofos da natureza, pois
também eles eram críticos relativamente aos mitos tradicionais. Mas, simultaneamente, os
sofistas recusavam tudo o que lhes parecia ser especulação filosófica desnecessária.
Achavam que mesmo que houvesse resposta para muitas questões filosóficas, os homens
nunca poderiam encontrar explicações verdadeiramente seguras para os enigmas da
natureza e do universo. Em filosofia, este ponto de vista é designado por “ceticismo”.
Mas apesar de não podermos encontrar resposta para todos os enigmas da natureza,
sabemos que somos homens e que devemos aprender como viver em comunidade. Os sofistas interessavam-se pelo homem e pelo seu lugar na sociedade.
"O homem é a medida de todas as coisas", dizia o sofista Protágoras (cerca de 487-
420 a.C.). Queria dizer que a justiça e a injustiça, o bem e o mal devem ser sempre
avaliados em função das necessidades dos homens. À pergunta se acreditava nas divindades
gregas, respondeu: "sobre os deuses nada posso dizer! Porque muitas coisas nos impedem
que o saibamos: a dificuldade do problema e a brevidade da vida humana". Chamamos
“agnóstico” àquele que diz não poder afirmar com segurança se Deus existe ou não.
Os sofistas faziam com freqüência longas viagens, tomando assim conhecimento
de vários sistemas de governo.
Os usos e os costumes, e as leis das cidades-estado variavam muito. Partindo
dessas experiências, os sofistas iniciaram em Atenas uma discussão sobre o que era
estabelecido pela natureza e o que era imposto pela sociedade. Desta forma, criaram na
cidade-estado de Atenas as bases para uma crítica social. Podiam, por exemplo, mostrar que
uma expressão como "pudor natural" não era admissível, porque se o pudor fosse natural,
teria de ser inato. Mas é inato, Sofia, - ou foi a sociedade que o criou?
Para pessoas que viajaram muito, a resposta tinha de ser simplesmente: não é
natural - ou inata -a vergonha de se mostrar nu. Pudor - ou a ausência de pudor - tem a ver,
principalmente, com os usos e os costumes numa sociedade.
Como podes compreender, os sofistas provocavam fortes discussões na sociedade
ateniense, ao afirmarem que não havia normas absolutas para estabelecer o que é justo e o
que não é. Sócrates, pelo contrário, tentou provar que algumas normas são realmente
absolutas e universalmente válidas.
“Quem era Sócrates?”
Sócrates (470-399 a.C.) é talvez a personagem mais enigmática de toda a história
da filosofia. Não escreveu uma única linha.
Apesar disso, pertence ao número dos que exerceram maior influência no
pensamento europeu. O fato de ser conhecido, mesmo por quem não possui muitos
conhecimentos de filosofia, tem provavelmente a ver com a sua morte trágica.
Sabemos que nasceu em Atenas e que aí passou a sua vida, principalmente nas
praças e nas ruas, onde conversava com todo o tipo de gente. Achava que os campos e as
árvores não lhe podiam ensinar nada.
Por vezes, ficava longas horas absorto em reflexão profunda.
Ainda no seu tempo, era considerado uma pessoa enigmática e após a sua morte foi
considerado o precursor das mais diversas orientações filosóficas. E precisamente por ser
tão enigmático e ambíguo, variadíssimas orientações o podiam reivindicar.
Sabe-se que era muito feio. Era pequeno e gordo, e tinha olhos salientes e um nariz
achatado. Mas interiormente, dizia-se, era um homem maravilhoso, nunca se poderia
encontrar alguém igual a ele.
No entanto, foi condenado à morte devido à sua atividade filosófica.
Conhecemos a vida de Sócrates principalmente através de Platão, que era seu
discípulo, também ele um dos maiores filósofos da história.
Platão escreveu muitos diálogos - ou conversas filosóficas -nas quais faz participar
Sócrates.
Quando Platão põe as palavras na boca de Sócrates, não podemos dizer com
certeza que Sócrates as tivesse verdadeiramente pronunciado.
Por isso, não é fácil distinguir a doutrina de Sócrates da de Platão. Este problema é
válido, também, para muitas outras personalidades históricas que não deixaram fontes
escritas. O exemplo mais famoso é obviamente Jesus. Não podemos ter a certeza de que o
"Jesus histórico" tenha dito, de fato, aquilo que Mateus ou Lucas puseram na sua boca.
Da mesma forma, permanecerá sempre um enigma aquilo que o "Sócrates
histórico" disse realmente.
Quem era "realmente" Sócrates não é muito importante. É principalmente o seu
retrato por Platão que inspira os pensadores ocidentais de há quase dois mil e quatrocentos
anos.
“A arte do diálogo”
O que distinguia, na verdade, a atividade de Sócrates era o seu desejo de não
ensinar os homens. Em vez disso, parecia querer ele mesmo aprender com o seu
interlocutor. Assim, não ensinava como um vulgar professor de escola: dialogava.
Mas não se teria tornado um filósofo famoso se apenas tivesse escutado os seus
interlocutores. Também não teria sido condenado à morte.
E, principalmente no início, apenas punha questões. Alegava, humildemente, nada
saber. No decurso do diálogo, levava freqüentemente os outros a reconhecerem os pontos
fracos das suas reflexões. Podia suceder então que o interlocutor fosse encostado à parede e
tivesse de reconhecer, por fim, o que era o justo e o injusto.
Diz-se que a mãe de Sócrates era parteira, e Sócrates comparava a sua atividade à
arte da obstetrícia.
Não é a parteira que dá à luz a criança, ela apenas está presente e ajuda a mãe.
Sócrates compreendeu também que a sua tarefa era ajudar os homens a "parir" o
saber correto, porque o verdadeiro saber tem de vir de dentro e não pode ser enxertado. Só
o conhecimento que vem do interior é a verdadeira "inteligência".
Vou precisar: a capacidade de dar à luz crianças é uma faculdade natural. Da
mesma forma, todos os homens podem compreender as verdades filosóficas, usando
simplesmente a razão. Quando alguém "recorre à razão", retira qualquer coisa de si mesmo.
Precisamente por se fingir ignorante, Sócrates obrigava as pessoas a usarem a
razão. Sócrates podia simular ignorância ou parecer mais estúpido do que na realidade era:
a famosa “ironia socrática”.
Desta forma, ele conseguia sempre descobrir os pontos fracos na forma de pensar
dos atenienses. Isto podia passar-se no centro de uma praça, ou seja, em público. Um
encontro com Sócrates podia levar o interlocutor a fazer papel de estúpido, ou a ser
ridicularizado perante uma grande assistência.
Por isso, não é de espantar que ele se tivesse tornado incômodo e muito irritante -
principalmente para aqueles que detinham o poder. Sócrates dizia que Atenas era como um
cavalo indolente, e ele era uma espécie de pernilongo que lhe picava o flanco para o manter
desperto. (O que é que se faz com o pernilongo, Sofia? Sabes-mo dizer?)
“Uma voz divina”
Sócrates picava os seus próximos no flanco, não tendo, porém, a intenção de os
atormentar. Havia algo nele que não o deixava agir de outra forma. Repetia freqüentemente
que ouvia interiormente uma voz divina. Sócrates insurgia-se, por exemplo, com a condenação de pessoas à morte. Além disso, recusava-se a denunciar inimigos políticos.
Por fim, isso iria custar-lhe a vida.
No ano de 399 a.C. foi acusado de "corromper a juventude" e de "inventar novos
deuses". Por uma maioria apertada, foi declarado culpado por um júri de 500 membros.
Podia ter pedido clemência. Poderia, pelo menos, ter salvado a sua vida, se
estivesse disposto a deixar Atenas.
Mas se o tivesse feito, não teria sido Sócrates, porque a própria consciência - e a
verdade - eram mais importantes do que a vida. Insistia que só agira para o bem do Estado,
mas, mesmo assim, foi condenado à morte. Pouco tempo depois, e em presença dos seus
amigos mais próximos, bebeu uma taça de cicuta.
Por que, Sofia? Por que é que Sócrates teve de morrer?
Há muitas pessoas que ainda fazem esta pergunta. Mas ele não foi o único na
história a ir até às últimas conseqüências e a morrer em nome das suas convicções. Já
mencionei Jesus e entre Jesus e Sócrates há, de fato, muitas afinidades. Vou referir apenas
algumas.
Tanto Jesus como Sócrates eram já considerados pelos seus contemporâneos
pessoas enigmáticas. Nenhum deles escreveu a sua mensagem, por isso estamos
completamente dependentes da imagem que os seus discípulos nos dão deles. Sabe-se, no
entanto, que ambos eram mestres na arte de comunicar. Além disso, expressavam-se de
uma forma clara, o que tanto poderia encantar como irritar.
E ambos acreditavam ser portadores de uma mensagem maior que eles mesmos.
Desafiavam aqueles que detinham o poder na sociedade porque criticavam todas as formas
de injustiça e de abuso de poder. E ainda: esta atividade custou a ambos a vida.
Inclusivamente nos processos contra Jesus e Sócrates vemos claros paralelismos.
Ambos poderiam ter talvez pedido clemência e salvo assim as suas vidas. Mas
acreditavam estar a trair as suas convicções se não fossem até ao fim. E o fato de terem
enfrentado a morte de cabeça erguida tornou-os dignos da confiança de todos, mesmo após
a morte.
Se faço este paralelismo entre Jesus e Sócrates não é porque os ache semelhantes.
Queria apenas sublinhar que é impossível dissociar a sua mensagem da sua
coragem.
“Um curinga em Atenas”
Sócrates, Sofia! Ainda não discutimos tudo o que lhe diz respeito, como
compreendeste. Dissemos algumas coisas sobre o seu método. Mas qual era o seu projeto
filosófico?
Sócrates era um contemporâneo dos sofistas. Como eles, preocupava-se com o
homem e com a vida humana, não com os problemas dos filósofos da natureza. Um filósofo
romano - Cícero – disse alguns séculos mais tarde que Sócrates trouxera a filosofia do céu
para a terra, a introduzira nas cidades e nas casas e que tinha forçado os homens a
refletirem sobre a vida e os costumes, o bem e o mal.
Mas Sócrates diferia dos sofistas num ponto importante. Não se considerava um
sofista - uma pessoa instruída ou sábia. Ao contrário dos sofistas, não pedia remuneração
pelo seu ensino.
Não, Sócrates denominava-se filósofo, no sentido mais genuíno do termo. Um
"filósofo" é, na realidade, um "amante da sabedoria", alguém que aspira a adquirir a sabedoria.
Estás a seguir-me, Sofia?
É importante no teu curso que compreendas a diferença entre um sofista e um
filósofo. Os sofistas eram pagos pelas suas exposições mirabolantes e esses "sofistas"
estiveram presentes durante toda a história.
Refiro-me a todos os mestres-escola ou sabichões que estão satisfeitos com o seu
pouco saber ou que se gabam de saber muito acerca daquilo que, na realidade, não
conhecem. Certamente já deparaste, embora sejas jovem, com alguns desses "sofistas". Um
verdadeiro filósofo, Sofia, é alguém completamente diferente, sim, é exatamente o
contrário.
Um filósofo apercebe-se bem que, no fundo, sabe muito pouco. Precisamente por
isso ele procura sempre atingir o verdadeiro conhecimento. Por isso, Sócrates era um
homem extraordinário. Sabia claramente que nada sabia acerca da vida e do mundo. E mais
importante ainda: o fato de saber tão pouco atormentava-o.
Um filósofo é, portanto, alguém que reconhece que há muitas coisas que não
entende. E isso aflige-o. Deste ponto de vista, é porém mais sábio que todos os que se
gabam do seu pretenso saber.
"A pessoa mais sábia é aquela que sabe que não sabe", como eu disse. O próprio
Sócrates dizia que sabia apenas uma coisa, isto é, que nada sabia. Presta atenção a isto,
porque mesmo entre filósofos esta declaração é uma coisa rara. Além disso, pode ser
perigoso declará-lo publicamente. Aqueles que perguntam são sempre os mais perigosos.
Não é perigoso responder. Uma simples pergunta pode ser mais explosiva do que mil
respostas.
Conheces a história dos trajes novos do rei, Sofia?
Na realidade, o rei ia nu, mas nenhum dos seus súbditos ousou dizê-lo. E, de
repente, uma criança exclamou que o rei estava nu. Era uma criança corajosa, Sofia.
Deste modo, também Sócrates ousou esclarecer quão pouco os homens sabem. Já
falamos acerca da semelhança entre filósofos e crianças.
Vou ser mais preciso: a humanidade é confrontada com questões importantes, para
as quais não encontra facilmente as respostas corretas. Temos, então, duas alternativas:
podemos enganar-nos a nós mesmos e ao resto do mundo e fingir que sabemos tudo o que é
preciso saber. Ou podemos fechar os olhos perante as grandes questões e desistir de uma
vez por todas de ir mais longe. Desta forma, a humanidade divide-se em duas partes. Em
geral, os homens ora estão totalmente seguros ou são indiferentes.
(Uns e outros rastejam na pele do coelho!) É como as cartas, quando se divide um
baralho. Colocam-se as cartas pretas num monte e as vermelhas num outro. Mas de vez em
quando surge um curinga no baralho, que não é copas nem paus, nem ouros nem espadas.
Sócrates era como um curinga em Atenas. Não tinha certezas absolutas, nem era
indiferente. Sabia apenas que nada sabia - e isso preocupava-o, por isso se tornou filósofo -
uma pessoa que não desiste e que procura incansavelmente o saber.
Conta-se que uma vez um ateniense perguntou ao oráculo de Delfos quem era o
homem mais sábio de Atenas. O oráculo respondeu: Sócrates.
Quando Sócrates soube disso ficou verdadeiramente admirado. (Acho que ele riu,
Sofia!) Foi imediatamente para a cidade e procurou alguém que fosse tido por ele e por
outros como sábio. Mas quando se provou que esse homem não conseguia responder com
clareza às suas perguntas, Sócrates reconheceu por fim que o oráculo tinha razão.
Para Sócrates, era importante encontrar um fundamento seguro para o nosso conhecimento. Acreditava que esse fundamento residia na razão humana. Devido à sua
forte convicção na razão humana, ele era um racionalista.
“O verdadeiro conhecimento leva a agir corretamente”
Já referi que Sócrates julgava ouvir dentro de si uma voz divina, e essa
"consciência" dizia-lhe o que estava certo. Quem soubesse o que era o bem, praticaria o
bem. Segundo ele, o verdadeiro saber leva a agir corretamente. E apenas aquele que age
corretamente se torna um verdadeiro homem.
Quando agimos mal, é porque não sabemos agir melhor. Por isso é tão importante
alargar o nosso saber. Para Sócrates, tratava-se especificamente de encontrar definições
totalmente claras e universais para o que é justo e o que é injusto. Ao contrário dos sofistas,
ele achava que a faculdade de distinguir o justo do injusto residia na razão e não na
sociedade.
Talvez não consigas engolir facilmente a última frase, Sofia. Vou tentar mais uma
vez: Sócrates achava impossível que alguém fosse feliz se agisse contra as suas próprias
convicções. E aquele que sabe como atingir a felicidade vai, certamente, fazê-lo. Por isso,
quem sabe o que está certo, fará o que está certo. Ninguém deseja ser infeliz, pois não?
O que te parece, Sofia?
Podes viver feliz se estiveres sempre a fazer coisas que, no fundo do coração, não
aches corretas? Há muitas pessoas que mentem e roubam constantemente, outras que
lançam calúnias. Pois bem!
Sabem que isso não é correto - ou justo, se preferires. Mas acreditas que isso as faz
felizes? Sócrates não acreditava.
Depois de ter lido a carta sobre Sócrates, Sofia guardou-a rapidamente na caixa e
saiu de gatas para o jardim.
Para se poupar a perguntas eventuais acerca de onde tinha estado, decidiu estar em
casa antes que a mãe tivesse regressado das compras. Além disso, Sofia tinha prometido
lavar a louça. Mal abriu a torneira, a mãe entrou com dois enormes sacos de plástico.
- Ultimamente, andas com a cabeça nas nuvens, Sofia.
Sofia respondeu sem refletir:
- Passava-se exatamente o mesmo com Sócrates!
- Sócrates?
A mãe esbugalhou os olhos.
-Que pena ter de o pagar com a vida - continuou Sofia muito pensativa.
- Sofia! Já não sei o que hei-de fazer!
- Sócrates também não. A única coisa que ele sabia era que não sabia nada. E, no
entanto, era o homem mais sábio de Atenas. A mãe ficou pura e simplesmente estupefata.
Por fim, afirmou:
- Aprendeste isso na escola?
Sofia abanou energicamente a cabeça.
- Aí não aprendemos nada... A grande diferença entre um professor e um
verdadeiro filósofo é que o professor acha que sabe muito, e procura constantemente
colocar à força na cabeça dos alunos aquilo que sabe.
O filósofo procura ir ao fundo das questões com os seus alunos.
- Bom, estamos a falar de coelhos brancos. Mas vou querer saber com que tipo de
namorado é que tu andas. Se não, começo a pensar que ele não é bom da cabeça. Sofia voltou-se de costas para o lava-louça, apontando com a escova para a mãe.
- Ele é bom da cabeça.
Mas é como um pernilongo que incomoda os outros, para lhes incutir uma nova
maneira de pensar.
- Pára com isso. Acho que parece um pouco pretensioso e impertinente.
Sofia inclinou-se de novo para o lava-louça.
- Ele não é sábio nem impertinente. Mas procura atingir o verdadeiro saber. Essa é
a grande diferença entre um verdadeiro curinga e as outras cartas do baralho.
- Disseste curinga?
Sofia acenou afirmativamente.
- Já alguma vez refletiste no fato de, num baralho, haver muitas copas e ouros?
Também há muitas espadas e paus. Mas há apenas um curinga.
- De que coisas tu falas, pequena!
- Que perguntas tu fazes!
A mãe tinha arrumado todas as compras. Pegou no jornal e foi para a sala de estar.
Sofia teve a sensação de que ela fechara a porta com mais força do que era habitual.
Quando acabou de lavar a louça, foi para o quarto. Pusera o lenço de seda vermelho
juntamente com as peças do Lego, bem em cima do armário. Retirou-o e observou-o
atentamente. Hilde...
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O Mundo de Sofia
RomanceCartas anônimas começam a chegar à caixa de correio da menina Sofia. Elas trazem perguntas sobre a existência e o entendimento da realidade. Por meio de um thriller emocionante, Gaarder conta a história da filosofia, dos pré-socráticos aos pós-moder...