CAPÍTULO VI: O DESTINO

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“... o adivinho procura interpretar algo que, na realidade, é obscuro...”.
Sofia tinha mantido o portão da casa debaixo de olho enquanto lia sobre
Demócrito. Decidiu sair em direção à caixa do correio, para ter a certeza.
Quando abriu a porta da casa, descobriu lá fora, sobre a escada, um pequeno
envelope com o seu nome: Sofia Amundsen.
Era evidente que ele a tinha enganado! Precisamente nesse dia, em que ela
observara atentamente a caixa do correio, o misterioso filósofo tinha entrado furtivamente
em casa e colocado a carta nas escadas, antes de se ter escondido novamente no bosque.
Que diabo!
Como é que ele poderia saber que, precisamente nesse dia, Sofia estava com a
caixa do correio debaixo de olho? Talvez ele (ou ela) a tivesse visto à janela. De qualquer
modo, estava contente por ter encontrado o envelope antes de a mãe ter chegado a casa.
Sofia voltou para o seu quarto e abriu a carta. O envelope branco estava um pouco
úmido nos bordas e apresentava também alguns cortes. Mas por quê? Não chovia há vários
dias.
Na folha estava escrito:
“Acreditas no destino? Será a doença um castigo dos deuses? Quais são as forças
que governam o curso da história?”
Se ela acreditava no destino? Não, na verdade não.
Mas conhecia muitas pessoas que acreditavam. Por exemplo, muitas das suas colegas liam
o horóscopo nas revistas. E se acreditavam na astrologia, com certeza acreditavam também
no destino, porque os astrólogos afirmam que a posição das estrelas no céu pode dizer algo
sobre a vida dos homens na terra.
Se se acredita que um gato preto que se atravessa no nosso caminho significa azar
- sim, nesse caso também se acredita no destino. Quanto mais refletia nisto, mais exemplos
descobria da crença no destino. Porque é que se dizia, por exemplo, "bate na madeira"? E
porque é que a sexta-feira 13 é um dia de azar? Sofia tinha ouvido dizer que muitos hotéis
não tinham nenhum quarto com o número 13. Certamente porque havia muitas pessoas
supersticiosas.
"Superstição" - não era uma palavra estranha? Quando se acredita somente em
Deus, isso chama-se apenas "fé".
Mas quando se acredita na astrologia ou na sexta-feira 13, trata-se imediatamente
de superstição!
Quem tinha o direito de designar a crença de outras pessoas como superstição?
Sofia tinha a certeza de uma coisa: Demócrito “não” acreditava no destino. Ele era
materialista. Acreditava apenas nos átomos e no vazio.
Sofia procurava refletir sobre as outras perguntas escritas na folha.
"Será a doença um castigo dos deuses?" Hoje em dia já ninguém acreditava numa
coisa dessas. Mas depois lembrou-se que muitas pessoas rezavam a Deus para ficarem
boas, e nesse caso tinham de acreditar que Deus também determinava quem devia estar
doente e quem devia estar de boa saúde.
A última pergunta era a mais difícil. Sofia nunca tinha pensado no que é que
governaria o curso da história. Deviam ser os homens.
Se fosse Deus ou o destino, os homens não podiam ter realmente livre arbítrio.
A questão do livre arbítrio levou Sofia a um pensamento completamente diferente.
Porque é que haveria de aceitar que o misterioso filósofo brincasse com ela de gato e ao
rato? Porque é que não lhe escrevia também ela uma carta? Ele ou ela colocaria
seguramente uma nova carta no correio no decorrer da noite ou na manhã seguinte. E por
isso, ela iria deixar, no mesmo lugar, uma carta para o seu professor de filosofia.
Sofia pôs mãos à obra.
Achou muito difícil escrever a uma pessoa que nunca tinha visto. Nem sequer
sabia se estava a escrever a um homem ou a uma mulher. Também não sabia se esta pessoa
era velha ou nova. E, no fim de contas, essa pessoa podia inclusivamente ser alguém que
Sofia conhecia.
Em pouco tempo, formulara uma pequena carta:
“Caro filósofo: aqui em casa temos em grande apreço o seu generoso curso de
filosofia. Mas também nos preocupa não saber quem você é. Por isso lhe pedimos que se
apresente com o nome completo. Em compensação, é convidado para um café aqui em
casa, mas de preferência quando a mãe não estiver cá. Ela trabalha de segunda a sexta das
7.30 às 17.00 horas. Eu própria estou na escola de manhã, mas estou sempre em casa da
parte de tarde, exceto às quintas-feiras, às 14.15. Além disso, faço um café muito bom.
Desde já agradeço.
Muitos cumprimentos da sua aluna atenta, Sofia Amundsen, 14 anos”
No fundo da folha, escreveu: "Solicita-se resposta".
Pareceu-lhe uma carta demasiado cerimoniosa. Mas não era fácil decidir com que
palavras havia de escrever a uma pessoa sem rosto.
Colocou a carta num envelope cor-de-rosa e fechou-o.
No envelope, escreveu: "Para o filósofo!".
O problema era como colocaria a carta na caixa do correio sem que a sua mãe a
descobrisse. Tinha que a pôr lá antes de a mãe chegar a casa, e não se podia esquecer de
revistar cedo a caixa do correio, na manhã seguinte, antes que o jornal chegasse.
Se durante a tarde ou a noite não chegasse mais nenhuma carta para ela, tinha que
ficar de novo com o envelope rosa.
Porque é que tudo tinha de ser tão complicado?
Nessa tarde, Sofia foi cedo para o quarto apesar de ser sexta-feira. A mãe tentou
que ela ficasse, aliciando-a com pizza e com um filme policial, mas Sofia disse que estava
cansada e que queria ler na cama. Enquanto a mãe olhava fixamente a tela, Sofia foi
sorrateiramente à caixa do correio.
A mãe estava claramente preocupada. Falava com Sofia num tom completamente
diferente desde a conversa sobre o coelho e a cartola.
Sofia não queria que ela se preocupasse, mas nesse momento tinha de ir para o
quarto para poder observar a caixa do correio.
Quando a mãe foi ter com ela cerca das onze horas, Sofia estava sentada à janela e
olhava fixamente para a rua.
- Não estás a observar a caixa do correio, pois não? - perguntou a mãe.
- E porque não? - Vejo que estás mesmo apaixonada, Sofia. Mas se ele trouxer uma
nova carta, certamente não será a meio da noite.
Que coisa! Sofia não podia suportar observações sobre a sua suposta paixão. Mas
tinha de deixar a mãe acreditar nisso.
A mãe continuou:
-Foi ele que falou no coelho e na cartola?
Sofia acenou afirmativamente.
- Ele... ele não se droga, pois não?
Desta vez, Sofia teve pena dela. Não podia causar-lhe tanta angústia. De qualquer
modo, era uma idiotice completa julgar que pensamentos estranhos tinham forçosamente
algo a ver com estupefacientes. Por vezes, os adultos eram mesmo bobos.
Voltou-se e disse:
- Mamãe, eu prometo-te que nunca vou experimentar isso... e "ele" também não
toma drogas. Mas interessa-se muito por filosofia.
-É mais velho que tu? Sofia abanou a cabeça.
-É da mesma idade?Sofia acenou afirmativamente.
- Parece-me um rapaz fantástico. E agora acho que devias tentar dormir.
Mas Sofia ficou ainda sentada um bom tempo a observar a rua. Por volta da uma
hora estava tão cansada que os seus olhos se fechavam constantemente. Por pouco não se
deitava, mas descobriu subitamente uma sombra que vinha do bosque.
Lá fora estava quase totalmente escuro, mas havia claridade suficiente para que ela
reconhecesse uma silhueta humana. Era um homem, e pareceu a Sofia bastante velho. Pelo
menos, não estava de forma alguma na sua faixa etária. Trazia na cabeça uma boina, ou
algo semelhante.
A certa altura, pareceu que olhava para cima, para a casa, mas Sofia não tinha
nenhuma luz acesa. O homem foi à caixa do correio e introduziu um envelope grande.
Precisamente no momento em que introduziu o seu envelope, descobriu o envelope
de Sofia. Enfiou a mão na caixa do correio e retirou a carta. Não tardou muito para se pôr
de novo a caminho do bosque. Correu e desapareceu entre as árvores.
Sofia sentiu o coração a bater. Desejava ter corrido atrás dele mesmo de camisola.
Mas não, não arriscava: não se atrevia a ir ao encalço de um homem completamente
estranho no meio da noite.
Mas tinha de ir buscar a carta, isso era certo.
Passado um pouco, desceu silenciosamente as escadas, abriu a porta com cuidado e
foi à caixa do correio. Voltou ao seu quarto com o grande envelope na mão. Sentou-se na
cama e reteve a respiração. Passados poucos minutos, nada se movia na casa, abriu a carta e
começou a ler.
Evidentemente, não podia esperar uma resposta à sua carta. Essa chegaria de
manhã, na melhor das hipóteses.
“O destino”
Mais uma vez, bom dia, cara Sofia! Deixa-me apenas dizer-te que nunca deves
tentar espiar-me. Um dia havemos de nos conhecer, mas serei eu a decidir o momento e o
local.
Agora já sabes: não vais querer ser desobediente, pois não?
Regressando aos filósofos.
Vimos de que modo eles tentaram encontrar explicações naturais para as
transformações da natureza. Antes disto, essas transformações eram explicadas através dos
mitos.
Mas noutros campos a superstição antiga também tinha de ser posta de parte.
Vemo-lo não só em relação à saúde e doença como também na política. Nestes domínios,
os gregos acreditavam no destino.
"Fatalismo" significa a convicção de que está estabelecido “a priori” aquilo que irá
acontecer. Encontramos esta idéia em todo o mundo - tanto hoje como em qualquer outro
momento da história.
Aqui na Europa setentrional encontramo-la nas antigas sagas islandesas.
Tanto entre os gregos como noutros povos acreditava-se que os homens, através de
diversos oráculos, podiam estar sabendo do seu destino.
Isso significa que o destino de uma pessoa ou de um Estado se pode prever de
diversas maneiras e que se pode interpretar a partir de determinados "indícios".
Ainda há muitas pessoas que acham ser possível ler o destino nas cartas, na palma
da mão ou interpretando as estrelas.
Uma prática muito difundida na Noruega é também ler os restos do café. Depois de
se tomar um café fica geralmente no fundo da chávena um pouco da borra. Talvez a borra
forme uma determinada imagem ou um desenho - principalmente se recorrermos um pouco
à imaginação. Quando a borra se parece com um carro, isso significa talvez que a pessoa
que bebeu o café irá em breve fazer uma longa viagem de carro.
Vemos que o "adivinho" procura interpretar algo que, na realidade, é obscuro. Isso
é típico da arte divinatória. É precisamente porque aquilo a partir do qual nós "predizemos"
é tão pouco claro que, na maior parte das vezes, não é fácil de todo contradizer o adivinho.
Quando erguemos os olhos para o céu estrelado vemos um verdadeiro caos de
pontinhos brilhantes. No entanto, muitos homens acreditaram ao longo da história que as
estrelas poderiam dizer-nos algo acerca da nossa vida na terra. Ainda hoje há políticos que
pedem conselho aos astrólogos antes de tomarem decisões importantes.
“O oráculo de Delfos”
Os gregos acreditavam que o oráculo de Delfos poderia dar aos homens
informação sobre o seu destino. Aí, o deus Apolo era a divindade do oráculo, que falava
através da sacerdotisa, a Pítia ou Pitonisa que estava sentada numa trípode sobre uma fenda
aberta no solo. Desta fenda subiam gases entorpecedores, por meio dos quais a Pítia ficava
em estado de transe. Só assim podia tornar-se porta-voz de Apolo.
Quem chegava a Delfos tinha primeiro de colocar aos sacerdotes locais a sua
pergunta. Estes iam ter com a Pítia. Ela dava uma resposta que era tão incompreensível ou
tão ambígua que os sacerdotes tinham de "explicar" essa resposta àquele que a solicitara.
Desta forma, os gregos podiam servir-se da sabedoria de Apolo, visto que
acreditavam que Apolo sabia tudo - passado e futuro.
Muitos soberanos não ousavam partir para a guerra ou tomar decisões importantes
antes de consultarem o oráculo de Delfos. Assim, os sacerdotes de Apolo tornaram-se
quase uma espécie de diplomatas e conselheiros que possuíam um vasto conhecimento do
povo e do país.
No templo de Delfos, havia uma inscrição famosa:
CONHECE-TE A TI MESMO!
Isso porque os homens nunca deviam julgar que eram mais do que homens - e
nenhum homem podia escapar ao seu destino.
Entre os gregos contavam-se muitas histórias acerca de pessoas que tinham sido vítimas do seu destino. Com o decorrer do tempo, foram escritos vários dramas - tragédias -
acerca destas personagens "trágicas". O exemplo mais famoso é a história do Rei Édipo
que, querendo fugir ao seu destino, acabou mesmo por cair nas suas garras.
“História e medicina”
Não era apenas a vida de pessoas individuais a ser determinada pelo destino,
segundo a opinião dos gregos na Antiga Grécia. Eles pensavam também que o curso do
mundo era governado pelo destino. Acreditavam, por exemplo, que o desenlace de uma
guerra podia ser atribuído à intervenção divina. Ainda hoje, muitos acreditam que Deus ou
outras forças místicas governam os acontecimentos históricos.
Mas enquanto os filósofos gregos procuravam encontrar explicações naturais para
os processos da natureza, também se formava pouco a pouco uma ciência da história, cujo
objetivo era encontrar causas naturais para o curso da história. Já não se atribuía aos desejos
de vingança dos deuses o fato de um Estado perder uma guerra. Os historiadores gregos
mais conhecidos foram Heródoto (484-424 a. C.) e Tucídides (460-400 a.C.).
Os gregos acreditavam que os deuses eram responsáveis pelas doenças. Assim, as
doenças contagiosas eram freqüentemente vistas como castigo dos deuses. Em
contrapartida, os deuses podiam tornar os homens saudáveis se lhes fossem oferecidos os
sacrifícios devidos.
Esta idéia não é tipicamente grega. Antes de se desenvolver, em tempos mais
recentes, a ciência médica moderna, predominava a opinião segundo a qual cada doença
tinha uma causa sobrenatural. A palavra "influenza" (gripe), que ainda hoje é utilizada,
significava originalmente que alguém estava sob a "influência" nefasta dos astros.
Muitas pessoas em todo o mundo ainda pensam que várias doenças - como, por
exemplo, a AIDS - são um castigo de Deus. E muitos acreditam que um doente pode ser
curado de maneira sobrenatural.
Enquanto os filósofos gregos refletiam sobre a natureza, desenvolvia-se
igualmente na Grécia uma ciência médica, que procurava encontrar explicações naturais
para a saúde e para a doença.
Esta ciência médica grega foi supostamente fundada por “Hipócrates”, que nasceu
cerca do ano 460 a.C. na ilha de Cós.
A proteção mais importante contra a doença residia, segundo a tradição
hipocrática, na moderação e numa vida saudável. Para um ser humano é natural estar bem;
por isso, se se adoece, deve-se procurar o motivo num desequilíbrio físico ou psíquico.
A vida saudável reside na moderação, na harmonia e em "uma mente sã num corpo
são". Hoje ainda se fala acerca de "deontologia médica".
Significa que um médico tem que exercer a sua profissão seguindo determinadas
normas éticas. Por exemplo, um médico não pode receitar drogas a pessoas saudáveis. Um
médico está também sujeito a um segredo profissional que lhe proíbe contar aquilo que um
paciente lhe revelou sobre a sua doença. Estas idéias vêm de Hipócrates. Os seus discípulos
tinham de prestar um juramento ainda hoje conhecido como o juramento hipocrático:
“Juro por Apolo, o médico, por Escolápio, por Higéia e por Panacéia, tomando por
testemunhas todos os Deuses e todas as Deusas, que cumprirei com todas as minhas posses
e conforme o meu saber o seguinte juramento: Considerar e amar como a meus pais aquele
que me ensinou esta arte; viver com ele e, se necessário for, repartir com ele os meus bens;
olhar pelos seus filhos como se fossem meus irmãos e ensinar-lhes esta arte, se assim o pretenderem, sem receber qualquer pagamento ou promessa escrita; ensinar aos meus
filhos, aos filhos do mestre que me ensinou e a todos os discípulos que se inscrevam e que
concordem com as regras da profissão, mas só a estes, todos os preceitos e conhecimentos.
Prescrever aos doentes, segundo as minhas possibilidades e o meu saber, o regime
conveniente para o seu bem e nunca prejudicar ninguém. Não receitar drogas perigosas para
agradar a quem quer que seja, nem lhe dar conselhos que possam causar a sua morte. Não
dar às mulheres meios de abortarem. Conservar a pureza da minha vida e da minha
profissão. Não fazer operações para tirar pedras, mesmo nos enfermos em que a doença seja
manifesta, e deixar esta operação aos especialistas nessa arte. Em todas as casas a que eu
for, entrar somente para benefício dos meus doentes, evitando qualquer prejuízo intencional
ou qualquer sedução, bem como, em especial, os prazeres do amor com mulheres ou com
homens, quer sejam livres ou escravos. Manter secreto e nunca revelar aos outros tudo o
que possa vir a saber no exercício da minha profissão, fora da minha profissão ou na
convivência diária com as pessoas e que não deva ser divulgado. Se eu mantiver e observar
este juramento com fidelidade, que possa ter alegria em viver e praticar a minha arte,
respeitado por todos os homens e em todos os tempos, mas se eu me desviar dele, ou o
violar, que me suceda o contrário”.
Quando acordou na manhã de sábado, Sofia sobressaltou-se. Teria apenas sonhado,
ou teria visto, de fato, o filósofo?
Tateando, procurou debaixo da cama. Sim - aí estava a carta que chegara nessa
noite. Tinha lido sobre a crença no destino, no que dizia respeito aos gregos. Não podia ser
apenas um sonho.
Seguramente que tinha visto o filósofo! E mais - tinha visto com os seus próprios
olhos que ele ficara com a sua carta.
Sofia levantou-se e espreitou para debaixo da cama.
Retirou as folhas escritas.
Mas o que era aquilo? Bem atrás, junto à parede, estava uma coisa vermelha. Seria
um lenço? Sofia enfiou-se debaixo da cama e retirou um lenço de seda vermelho. Nunca
tinha visto aquele lenço.
Examinou bem o lenço de seda e soltou um grito quando viu que na bainha estava
algo escrito a preto: "Hilde".
Hilde! Mas quem era esta Hilde? Como era possível que os seus caminhos se
cruzassem desta forma?

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