Sei que a senhora tem seus motivos para não contar a verdade. Garanto que com o tempo tudo ficará bem.
Beijos da Gabe!
Enquanto escrevo a segunda carta do dia, penso em todas as outras que já escrevi, sempre foi difícil colocar no papel por meio de palavras a empatia e a consideração que eu sinto por essas pessoas, pois cada carta tem sua singularidade.
Atualmente uso um método padrão, com exceção àquelas que já se sentem confortáveis para escrever. Alguns dos meus destinatários já me veem como uma amiga ou talvez uma conselheira. Escolhemos o assunto da semana e, a partir disso, escrevemos. Eu que as envio e busco. Deixo sempre em uma caixa de sapato azul e a coloco no balcão da portaria.
Hoje elas serão direcionadas para a clínica de tratamento de depressão, escrever as cartas para essas pessoas e fazer com que o dia delas seja pelo menos um pouco melhor ou ajudá-las a sair de uma crise, é algo libertador, fora que isso me ajuda muito também. Faz dois anos que comecei o tratamento para ansiedade, quatro remédios diferentes todos os dias. Às vezes recebo alguma carta em resposta, outras vezes não, mas sei que todas são entregues e lidas. Tem pessoas que respondem com xingamentos, essas são o meu principal alvo.
Essa que termino de escrever, é de uma senhora que começou o tratamento a pouco tempo. Coloco a carta em um envelope branco e ponho na caixa. Olho em direção ao relógio para saber que horas são, os ponteiros marcam dezesseis horas e quinze minutos. Com cuidado, guardo as duas cartas na caixa azul e, depois, coloco-a sob a minha escrivaninha. Pretendo levá-las pessoalmente amanhã na clínica. Esse é um ritual que faz parte da minha vida há algum tempo, todas as sextas-feiras, sem desculpa ou exceção, entro em um ônibus e sigo o meu destino. Meus pais não sabem dessa minha aventura, eu uso o pretexto de ir até a casa de uma amiga. Na verdade, não estou mentindo, pois a casa dela fica somente há algumas ruas da clínica e, realmente, eu vou lá.
A rotina é a mesma. Deixo a pequena caixa na portaria, pois não sou autorizada a entrar, verifico se há mais respostas direcionadas a mim e vou a casa da minha melhor amiga. Algumas vezes já aconteceu de ela me ajudar com a minha escapatória, mas como eu sempre digo, é apenas um meio para chegar a um bem maior. Sobre os meus pais, minha mãe é médica e vive fazendo plantões ou viajando para ajudar a salvar vidas, meu pai é engenheiro tecnológico, na maioria das vezes trabalha em casa. Mas ambos têm sempre muito serviço, por isso não temos muitos dias seguidos juntos e nem conversas completas, sempre são deixadas para depois e esquecidas. Eu não os culpo, sei que estão fazendo o propósito deles, assim como eu faço o meu.
Tiro o celular do carregador e procuro na lista de contatos o número da minha mãe. Pela terceira vez hoje, tento ligar para ela. Eu sei que provavelmente ela está ocupada, mas eu estou com saudades. Faz um mês que a minha mãe está trabalhando em outro hospital, longe da minha cidade, eu gostaria de poder conversar com ela mais vezes, já que não posso vê-la. Raramente ela retorna as minhas ligações, pois ela prefere mensagens por estar sempre estar ocupada. O trabalho dela é ótimo, ajudar as pessoas sem esperar absolutamente nada em troca é admirável, entretanto, não quero que ela se esqueça de mim. Novamente, como nas minhas tentativas anteriores, a chamada cai na caixa postal. Um suspiro cansado e frustrado escapa de mim. Coloco o aparelho na escrivaninha e procuro algo para fazer, tenho que me ocupar de alguma forma enquanto espero qualquer sinal da minha mãe, seja uma ligação ou uma mensagem.
Depois de ouvir a playlist inteira da minha banda favorita, sou obrigada a levantar da cama para comer alguma coisa. Calço as pantufas e vou diretamente para a cozinha, lavo as mãos e separo alguns ingredientes para fazer um sanduíche rápido. Um sanduíche natural, é claro, minha mãe não permite que entre porcarias, segundo ela, para a nossa casa. Desde que eu me entendo por gente, ela preza pela nossa alimentação.
— Filha? — olho por cima dos ombros e vejo o meu pai parado, com os braços cruzados sobre o peito e um ar cansado nos olhos — O que está fazendo acordada uma hora dessas? Achei que já estava dormindo.
— Estou preparando um sanduíche para mim, estou com fome e não consigo dormir. Além do mais, ainda não desisti de falar com a mamãe.
Papai engole em seco disfarçadamente.
— Aceita? — estendo o prato de porcelana para ele com o sanduíche que acabei de preparar — Pode ficar, eu faço outro para mim.
Ele hesita por um instante, mas por fim aceita. Coloco o prato novamente na bancada de mármore da pia e começo a preparar outro sanduíche, dessa vez, espero poder comer.
— Hum... pai? — chamo por ele enquanto guardo o pão na geladeira — Eu posso ir na casa da Júlia amanhã? Precisamos resolver algumas questões de um trabalho da escola.
Não é totalmente uma mentira, pois eu realmente tenho um trabalho de biologia em dupla com ela, porém, a minha principal intenção é levar as cartas à clínica.
Papai desvia seus olhos do sanduíche e me encara, sentado em uma das banquetas da mesa no centro da cozinha.
— Bom, se é um trabalho da escola, eu não posso te impedir. — ele dá de ombros — Só peço que tome cuidado.
— Pai, eu não sou criança, tenho dezesseis anos, posso cuidar de mim mesma. Não se preocupe.
Sento ao seu lado em outra banqueta. Comemos em silêncio, apenas aproveitando a companhia um do outro. Não posso desperdiçar os momentos que o meu pai está aqui, principalmente agora que a minha mãe está trabalhando em outra cidade. Eu sempre me achei muito parecida com o meu pai, não apenas fisicamente, com a pele escura, os olhos castanhos e os cabelos cacheados. Também temos semelhanças em nossas personalidades. Acredito que é pelo fato da minha mãe passar mais tempo no hospital, exercendo a sua profissão, do que aqui em casa. Por esse motivo me apeguei mais ao meu pai, me tornando mais parecida com ele e também por sempre querer seguir seus passos.
— O senhor sabe quando a mamãe volta para a casa? Ou pelo menos conseguiu conversar com ela hoje? Tentei falar com ela, mas como sempre, as ligações caem na caixa postal.
Ao contrário de mim, ele não me encara, apenas se levanta, pega o meu prato sobre a mesa e o leva para a pia. Logo depois lava as mãos e só então olha nos meus olhos.
— Conversei com ela apenas ontem. Sua mãe está muito ocupada. O hospital nunca para. — ele enxuga as mãos na perna da sua calça de pijama azul claro, que faz par com a camisa de algodão da mesma cor em que ele está usando — mas não se preocupe, está bem? Logo, logo, ela estará de volta.
Meu pai se aproxima de mim para me abraçar. Passo os meus braços ao redor da sua cintura e ficamos abraçados; ele de pé à minha frente e eu sentada, na altura dos seus ombros.
— Pronto — deposita um beijo sobre meus negros cabelos cacheados — Agora, por favor, vá dormir, Gabe. Já está tarde. Amanhã você tenta falar com a sua mãe novamente.
Ele vai para o quarto e eu fico sentada por mais algum tempo. Penso em minha mãe e em tudo que anda acontecendo. Acho melhor voltar para o quarto e tentar dormir, preciso voltar para a clínica amanhã e pode ser que tenham mais cartas para serem respondidas.
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Cartas ao Vento
Short StoryGabriela é uma adolescente de dezesseis anos que escreve cartas com o intuito de ajudar pessoas com transtornos psicológicos. Uma vez por semana a garota ai até a clínica da sua cidade para mostrar sua solidariedade e compreensão a essas pessoas. E...