APENAS SONHOS E MEMÓRIAS

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Era a primeira noite que Florence não colocaria sua meia arrastão nem seu batom vermelho ou qualquer acessório e maquiagem. Escolheu sua melhor camisola de seda, a última que havia comprado e naquela noite desfrutaria da presença que alguém que há muito não desfrutava: ela mesma.

Preparou seu jantar. Colocou suas músicas. Nada além dos seus pés descalços acariciando o piso da cozinha. Nada além do seu próprio cheiro e sua própria voz rodopiando pelo pequeno apartamento. Depois de 22 anos, Flo iria finalmente passar uma noite em paz, sem a necessidade de ser ou de satisfazer ninguém.

Algumas músicas lembravam sua infância feliz, que parecia uma realidade tão distante, quase como se fosse um sonho. Era triste perceber que o que havia de melhor na sua vida eram as lembranças e apenas elas, porque não importa quantas vezes as pessoas mudem ou quantas vá embora ou machuquem umas às outras; as memórias permancem intactas. Sua mãe cantando na igreja permanecia intacta. Suas amigas brincando permaneciam a mesma. O seu único amor, apesar de como havia terminado mal, continuava ali.

Sentia um misto de melancolia, nostalgia e tristeza. Pela primeira vez não precisaria reprimir esses sentimentos e fingir que era impermeável a tudo, que era apenas uma máquina programada. Às vezes ela mesma se esquecia que tinha sentimentos, de tanto esconder tudo que sentia, porque os homens odiavam sentimentalismo e se esqueciam que antes de ser prostituta, antes de ser uma mulher forte e agressiva, Florence era, sobretudo, um ser humano.

Suspirou, pensando em tudo isso. Não poderia mudar o que havia se tornado. Não poderia abrir uma brecha no tempo e voltar no tempo. Não conseguiria sair daquela vida. Contudo também não a suportaria por mais tempo. Apenas deitou-se e adormeceu.

Afinal ainda podia sonhar.

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