回憶

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Eu me lembro do primeiro e último jantar na casa dos pais da Lisa.

Me recordo do quanto ela foi corajosa de dirigir até lá e me apresentar como sua namorada, na frente de sua família, mesmo conhecendo as opiniões que cada um de seus parentes carregava sobre relacionamentos homossexuais. No meu ouvido, ela sussurrava o modo de como ela chamava cada um deles quando era criança, com apelidos horríveis e engraçados, algo que poderia partir somente de sua cabeça brilhante. Tenho plena certeza de que ela me contou aquilo só para me distrair dos olhares que eles direcionavam para nós duas.

Suas ideias eram inexplicáveis, talvez eu jamais possa descrever como sua mente funcionava e esse era um dos detalhes nela que me faziam querer ouvir sua voz, independente do momento que nos cobria.

Quando estávamos brigadas e eu fazia questão de ouvi-la resmungar pelos cantos do apartamento, como se ele fosse imenso e não desse para saber o que tanto ela sussurrava, dizendo o quanto queria assistir séries abraçada comigo.

Quando eu estava triste, e ela cantava músicas infantis, antigas, que seu pai a ensinou.

E até quando eu estava feliz e a fazia rir, só para ouvir sua risada e perpetuar ainda mais, as melhores sensações do mundo que eu podia sentir apenas quando estava com ela.

Só fazia chorar, lembrando de tudo no banco do carro de Irene.

Meus pais não foram me ver no hospital, na verdade, nenhum membro da minha família realmente colocou os pés lá.

Eles telefonaram somente para saber se eu estava viva e me recuperando, mas, não se propuseram a me visitar.

Não me importava tanto assim, quando a única pessoa que eu queria que segurasse minha mão naquele ambiente angustiante, era ela.

Irene sabia disso, e entendia perfeitamente. Durante todo o caminho de volta para casa, dois dias depois de eu acordar e receber alta, ela simplesmente ouviu meus soluços carregados de pesar, enquanto me levava para casa sem tentar me consolar com palavras simples.

Provavelmente foi a única a me acompanhar no coma e nas cirurgias.

-Chegamos!-falou, estacionando, encostando sua cabeça no banco e olhando para o estacionamento vazio.

O inchaço ao redor dos meus olhos, devido ao choro contínuo, auxiliava ainda mais a imagem de saudade e tristeza que eu portava nas últimas horas de consciência indesejada.

-Vou subir com você, levo suas coisas, vamos!-disse, tirando o cinto.

Ao sair do carro, ela abriu a cadeira de rodas e me ajudou a sentar nela, pegando uma das malas, colocando-a em meu colo.

-Não sabe o tanto que tive que brigar com o zelador do seu prédio para que ele arrumasse o elevador!-contou, empurrando-me para dentro do mesmo.

-Fazia anos que ninguém usava!-lamentei.

-Você sabe que é temporário!-lembrou.

-Se Lisa estivesse aqui, com certeza tornaria essa experiência decadente em uma situação hilária e divertida!

-Eu não duvido disso!-afirmou, apertando os botões.

Ficamos em silêncio, vendo a luz falha do elevador piscar constantemente, até a as portas se abrirem e podermos sair daquele cubículo aterrorizante.

Ao abrir a porta, dei de cara com um apartamento que seria só meu agora.

Sem uma Lili na varanda, doida para jogar vasos de plantas nos parabrisas dos vizinhos mal educados.

Sem Lalisa, para fumar sentada no chão, ouvindo e apreciando as gotas de chuva atrevidas invadirem o piso do nosso apartamento, através das janelas abertas.

E muito menos sem minha Manoban, a deusa dos meus prazeres mais profundos, desde a linha tênue entre o profano e o mais puro pensar que ela cativou em mim enquanto pôde.

Eu queria ser esperançosa como ela, isso bastaria nos primeiros dias longe dela, carregando a hipótese de que uma hora ou outra, seu corpo seria encontrado e eu a veria abrir a garrafa de sua cerveja favorita com os dentes até ficarmos velhas e termos que usar um abridor de garrafas para isso.

Quando perdemos um brinquedo, imaginamos o tanto de vezes que ainda poderíamos ter brincado com ele.

Quando finalmente terminamos o ensino médio, nos arrependemos de não ter feito mais amigos, de não ter mandado tudo a merda ou simplesmente, de não ter aproveitado mais.

Porém, quando se perde alguém que você ama, aquele alguém que não foi um objeto e um momento em sua vida, mas sim uma peça-chave, com pulmões e um coração audacioso, não há como pensar em mais nada a não ser nas memórias que não vão se repetir no dia seguinte, nem nunca mais.

Olhei para a minha mesa, e lá, havia fartura. Diversos pratos diferentes, um suco de cor laranja e pratos bem alinhados.

Surgindo de trás do balcão, abaixada para me surpreender, estava Seulgi.

-Você está aqui!-afirmei.

Queria poder me levantar e abraçá-la, eu estava feliz por finalmente vê-la.

Até meu olhar pousar em sua jaqueta, aquela que estava na poltrona do hospital. Aquela que eu queria que estivesse no corpo da Lisa, e então, ela estaria me recepcionando, dizendo que poderíamos sim comprar um lustre na loja de antiguidades do outro lado da rua.

Mas, não era ela, não era dela.

Seulgi estava em casa, com Irene, e eu digo, com toda a sinceridade e dor que em mim navegam, que sinto uma enorme inveja delas.

Por quê?

Porque após as tempestades furiosas de emoções, angústias, saudades, veio a bonança para elas, exclusivamente, delas.

Sinto que isso não vá me ocorrer, e eu viverei nesse eterno naufrágio torturante, infindável, interminável, doloroso e desesperador, até o dia em que eu me deite uma última vez para apreciar o lençol de nossa cama.

-Eu estou tão feliz de te ver, Jen!-ela disse, se abaixando na minha frente.

-Eu estava com saudades!-falei, tentando conter meu queixo, que tremia de forma absurda.

Olhando-me com um olhar de suporte, ela deu aquele meio sorriso que costumava dar quando brigava com Lisa durante uma partida de baralho.

Como se sua mão fosse a cura para a dor do mundo, ela a ergueu, e acariciou meu rosto, tentando absorver o desalento que me amofinava.

-Fiz seu suco favorito, trouxe o whisky caso queira fazer como costumávamos anos atrás, quando você misturava os dois no almoço para os seus pais não perceberem!

Essa era uma de suas técnicas quase infalíveis de tentar afastar memórias lancinantes e por fim, trazer outras com o único objetivo de aquecer meu coração nem que seja por misericordiosos segundos.

-Obrigada!

Nunca imaginei que uma palavra fosse ter tanto significado para mim, quanto essa que eu costumava dizer todos os dias. Mal sabia eu, que teria que usá-la nos próximos anos para equilibrar sentimentos de ingratidão e contentamento.

KILL THIS LOVE | jenlisaOnde histórias criam vida. Descubra agora