IV - Claro que Esconde no Escuro

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Na manhã seguinte, Gerrard estava deitado na cama larga de Françoir, que dormira no chão durante os dois últimos dias. Este também planejara uma aula, pelo menos, inesquecível. Observando pela janela da casa de tijolos e conferindo a posição do Sol, não tardaria a se levantar e deixar sua casa por um breve período. Além disso, queria trazer consigo a maçã da árvore do desejo. Seria mais seguro se ele mesmo recolhesse a fruta e mostrasse ao homem simples do que este visitar a árvore e se encontrar tentado.
Após isso, Françoir planejava ter uma conversa com o jovem homem de roupas largas, que aparecera na sua casa e fora recebido com uma estaca de madeira. Queria saber o que aconteceu com ele naquela noite e os detalhes dos acontecimentos e, principalmente, como sobreviveu. Em seguida, o levaria a próxima aula, onde estudariam uma criatura bem maior.
Ao acordar, Gerrard percebeu que o homem de colete não permanecia na casa. Queria muito perguntar por que fora abandonado durante a aula do dia anterior e por que ele havia saído novamente. Releu novamente a carta que guardava todos seus sentimentos, envolvida por um envelope manchado com sangue. Escrita no papel estava uma melodia um tanto contagiante invadindo cada vez mais os espaços ocupados pelos pensamentos do homem simples.
Desejava sair daquele lugar e entregar a carta a qualquer custo. Quem sabe ela não esquecera do beijo que marcara a infância deles? Amaldiçoou Vigor Treyor por mordê-la e obrigá-la a se tornar um monstro. Mas ele amaria ela de qualquer jeito, e quando voltasse veria sua mãe preocupadíssima e muito doente, seu irmão fazendo o possível para cuidar dela e o pai deles sem sair mais para caçar. Pai?
Seus pensamentos agora rumavam distantes de sua volta à vila e se dirigiam ao questionamento sobre bem-estar de seu pai.
Matheus Prietum era um homem de pavio curto, ignorante e totalmente explosivo. Sempre que notava estar fazendo mal àqueles em sua volta, afastava-se da vila, alegando ir caçar. Nessa altura, talvez ele estivesse pela floresta lotada de monstrose criaturas perigosas, sem o mínimo de conhecimento ou defesa que pudesse utilizar contra eles.
Isto foi o suficiente para inquietar Gerrard e fazê-lo desejar aprender os conteúdos das aulas rapidamente. Esperou, então, Françoir, enquanto formulava a pergunta exata para ele, que se aproximava com algo vermelho em sua mão.
Abriu a porta e despejou a fruta na mesa, olhando Gerrard com a boca entreaberta que permitia ver os dentes, ou a falta deles, olhos pouco arregalados e sem expressão (essa era, para o homem simples, sua cara de bobo, que mantinha a maior parte do dia).
- Por que saiu novamente pela manhã, me abandonado exatamente como ontem?- perguntou rapidamente Gerrard, antes que o homem gordo iniciasse sua explicação sobre o fruto.
- Não o abandonei, e, se o tivesse feito estaria em boas mãos, considerando que uma barreira nos protege das criaturas. Tenho meus motivos pessoais para sair por uns minutos, e faço isso todos os dias. - se justificou, fazendo uma breve pausa para mudar de assunto - Mas agora, preciso que preste atenção nessa maçã. Deixe ela invadir seus pensamentos e trazer à tona o seu maior desejo.
A maçã sugou a atenção de Gerrard assim que este a encarou. Uma parte dele queria sair de seu corpo, e levá-lo junto até a fruta. Ele a desejava assim como beijar Kaia, como ver seu pai, encontrar sua mãe salva e voltar para a vila. Sem ao menos perceber, não estava mais na cama e, em poucos segundos, notou que sua mão havia entrado em seu campo de visão. O desejo dentro dele movia seu braço e anseiava ter a maçã. Françoir a escondeu atrás de seu corpo e o homem simples retomou a consciência.
- Bom, com isso, eu quis mostrar como essa maçã é poderosa e como mexe com nossos desejos mais profundos. - informou segurando a fruta e observando atentamente Gerrard tentar compreender como fora parar a centímetros de Françoir. - Todos humanos são incompletos, por esse motivo, lá no fundo, qualquer um deseja algo. Quanto mais deseja e desejos, a fruta o atrai. Há uma árvore na floresta, inclusive escassa dessas maçãs. Vampiros e outros monstros, quando prestes a morrer de fome, são atraídos pela fruta e ela os sacia. - fez uma breve pausa antes de se dirigir ao que realmente lhe interessava - Agora, quero que saiba que tenho somente dois desejos: rever minha sobrinha está no vilarejo e saber o que aconteceu com você ao cruzar a floresta. Preciso saber como o mágico o salvou e pelo que já passou.
- E por que deseja isso? Por que é um de seus maiores desejos - perguntou Gerrard.
- Você não entende porque sabe pouco sobre o mágico, mas entenda, você nem o cenhecia há uns três dias e ele o salvou durante uma noite inteira mesmo estando fraco. Depois, você chega aqui e ele cria uma barreira em volta desse terreno. - estava começando a alterar o tom - Você tem uma ligação especial com ele. Em toda minha vida, ele só me ajudou apenas uma vez, e olha que converso com ele todos os dias. Você é especial. Ele o quer vivo e me escolheu para lhe guiar. E se há alguém que pode me ajudar a voltar àquela vila e rever minha sobrinha novamente, é você. Então, se me contar o que aconteceu, ficarei grato e lhe darei esta maçã. Mas, se não me contar, vou comê-la e ficarei sabendo do mesmo jeito.
O homem gordo estava ficando vermelho de tantas emoções que liberava. Seria bem mais simples se ele comesse a maçã, além de que Gerrard não precisaria reviver os acontecimentos. Porém, cada célula de seu corpo desejava aquela fruta, principalmente seu coração. E foi isso que pesou em sua decisão: o desejo. O tal desejo que movia todas as ações dos dois homens.
Sim.
E depois narrou sofridamente a noite de dois dias atrás, mas quem falava mais alto era o desejo.

Entre uma barreira e um mundoOnde histórias criam vida. Descubra agora