Inconformidades

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Aurora detinha um sono cuja leveza o fazia delicado o suficiente para ser quebrado pelo barulho de gotas de chuva nas vidraças de seu quarto, da mesma forma, crescera habituada ao acordar pontualmente ás cinco da manhã, haviam batidas de relógio já tatuadas em sua mente para que pudesse começar o dia no horário correto. Tinha lembranças claras de sua rígida infância, onde seu pai impusera uma estrita rotina para ela e seu irmão, e estes horários deveriam ser cumpridos à partir do nascer do sol.

  Era o amanhecer de uma quarta-feira particularmente primaveril, três dias que se seguiam do velório, quieta, em sua cama, a já acordada Aurora observava o sol banhando a superfície das pinturas que revestiam o quarto em seu pé direito alto, ainda vestida em sua camisola, nunca fora agitada, muito menos desesperada para levantar-se daquela situação, para Caleb, seu irmão, era diferente, quando acordava a casa não teria mais sossego, era possível sentir por uma força invisível a sua energia através das paredes. Aurora esperava estar arrumada pelas seis, logo, levantou-se organizando com cautela a bagunça causada pela sua instável dormida, e diria que esta só era desorganizada visto que não era possível controlar suas ações quando em outro plano, além de sua compreensão. E, como prometeu para si mesma, finalizou sua rotina matinal ás seis da manhã, quando os sinos da catedral tocavam e sinalizavam para os trabalhadores que era a hora do ofício, e o início de mais um dia. Aurora fez questão de levar o seu bonnet para o primeiro contato social daquela manhã, era um dia ensolarado em Manchester, algo tão raro como um em um milhão, quando o sol conseguia a proeza de perfurar a camada espessa de névoa na atmosfera industrial daquela cidade e trazer um pouco de alegria para os seus cidadãos, ouvira Sra. Hope dizer que por volta de dez anos não via um dia como aqueles em Manchester.

— Vocês, jovens, deveriam aproveitar esta manhã para passear pelo comércio. Sophie! Faço questão que leve minha cara Aurora para conhecer a cidade, a pobre menina é tão pálida, lhe faria bem um pouco de luz solar para que tenha um pouco mais de vivacidade.

Sra. Evans sorriu embaraçada pelo comentário da mãe, mesmo que Aurora risse delicadamente do engraçado comentário.

— Devemos ir mamãe, Mindy também detém grande conhecimento das ruas e direções daqui, posso ter certeza que até mais do que eu, seria adorável que nos acompanhasse após o café da manhã.

  Diante dos slums, à margem de Manchester, Graham Pigeon testemunhava o sofrimento contínuo de uma matriarca, em uma residência tampouco luxuosa, onde crianças vestidas de trapos de lã, que antes estavam famintas, bebericavam goles de chá trazidos pelo caridoso jovem. Para os pobres de Manchester, era impossível ocultar a tristeza, isto seria uma tarefa impossível, uma família cuja fonte de renda seria mirrada, de forma ainda mais acentuada quando não haviam figuras masculinas ou a mulher não tinha estabilidade o suficiente para ir às fábricas, pessoas expostas à situações de salubridade eram ignoradas, se sustentavam por sindicatos reprimidos, embora as atrocidades sociais de Manchester fossem de conhecimento mundial, o que atraiu Engels na cidade em 1842, ninguém faria nada pela vida daqueles camponeses, então estes iriam se destacar por meio de cooperativas e greves, as ruas daqueles locais eram como chiqueiros para humanos, no horário de pico, era o local mais próximo ao inferno na terra.

— Ele tem febre, Mary. Acredito que alta. — Relatou Graham, ao checar a temperatura corporal de uma das crianças que caíam sobre a cama que de maneira miraculosa era o espaço de dormida de seis pessoas. A mãe, Mary, tossia ao fundo, e ouvia o garoto.

— Eu não tenho dinheiro para remédios. Ah meu pobre menininho, ele não merece esse sofrimento, Sr. Pigeon, ele não fez nada para isso. Perdi o emprego para outros pobretões como os irlandeses que chegaram no último inverno, e não posso criticar os coitados, não me fizeram nada, mas sou imensamente grata ao sindicato por tudo que têm feito por nós, e no inverno fica tudo pior...

Aurora (Série "Victoria")Onde histórias criam vida. Descubra agora