II - A mensagem

12 4 4
                                    


.........................................................

II

A mensagem

O mercado estava vazio naquele dia. Artur andava devagar e calmo, sem nenhum guarda-chuva, enquanto uma garoa caía retocando as poças d'agua e o orvalho das coisas.

As ruas pelo centro da Serra das Luzes estavam bem vazias, um outro transeunte se arriscava. Próximo ao prédio da prefeitura um guardinha tentava expulsar um cachorro que havia invadido o local, e não havia outra coisa mais importante a se fazer por ali. Não haviam grandes prédios nem muitos carros, a maior parte do comércios não eram grandes franquias. Karina Moda, Britney Sapatos, Lanchonete dois irmãos... Nada ali era mais grandioso que em qualquer outra cidadezinha.

O único charme que conservava eram as características arquitetônicas da época do Barão da Serra, por volta do início do século XX e que se mantinha na maioria da cidade. As ruas de pedra e os detalhes característico nas fachadas das casas traziam ares dos tempos passados, mas mesmo isso era de uma forma simples.

De fato, as únicas construções que se impunham de forma diferente era a antiga casa do próprio Barão da Serra, o poderoso latifundiário que praticamente fundou a cidade, a Igreja de São Bento, no centro e envolta pela praça nova – como era conhecida a praça principal – e o Colégio São Bento, de propriedade da Igreja. Havia uma outra construção, longe dali, que trazia características mais imponentes e que já foi um colégio interno para meninas, mas que teve seu funcionamento revertido para um manicômio.

Não se sabe o motivo mas Serra das Luzes passou tem uma população de loucos muito alta, mais de 200 pessoas vivem isoladas na Instituição Psiquiátrica de São Bento e considerando que a população local é de pouco mais de 20 mil habitantes, esse número tornou-se extremamente expressivo. Poderia ser algo espantoso, e o era, mas isso era abafado por todos, tanto pela dor dos parentes que tinham um dos seus como interno, quanto pelo medo das autoridades na cidade ficar conhecida como município dos loucos.

Tirando a parte dos loucos, a cidade era pacata, sem grandes acontecimentos, poucos casos de roubo ou furto, nenhum homicídio registrado em mais de cinco anos, pouco visitada por turistas... Todos se conheciam desde a primeira geração.

A calmaria da cidade se ilustrava em seu povo, e cada pequeno acontecimento chamava a atenção e era motivo de especulações e conversas fervorosas nas calçadas, como o Centro de Pesquisas em Psiquiatria que havia se instalado na cidade há alguns meses e ainda assim criava burburinhos. Uma senhora de aparência bem gentil, dona Amélia, gordinha e de cabelos brancos como as avós de filmes, chamou a atenção de Artur que acabara de passar pelas instalações do local, o casarão do Barão da Serra.

─ Arturzinho! Ei, Arturzinho! - a senhora acenava rispidamente para chamar a atenção do jovem garoto – Ei, você passou lá pelos doutores agora?

─ Bom dia dona Amélia – A senhora não tentava disfarçar a euforia e Artur bem sabia que quando ela chamava as pessoas na rua daquela forma era porque estava impaciente para contar ou saber de algo – passei sim, agorinha mesmo.

─ Meu filho de deus, você viu alguma coisa estranha? - os olhos da senhora se arregalavam exageradamente enquanto o seu tom de voz, antes exaltado, diminuía gradativamente para um quase-sussuro – Nem lhe conto, disseram que ontem teve um bafafá lá, porque eles quiseram discutir com a igreja pra poder estudarem os doidos.

─ Desculpe dona Amélia, mas eu passei por lá e não vi nada.

─ Pois meu filho, disseram que não vão deixar mais eles ir ver os doidos não, o pessoal da igreja veio aí avisar e disseram que eles não vão mais deixar não. Mas cala-te boca, porque esse povo vem de fora, a gente não sabe nem de onde se saiu, e quer vir aqui estudar os doidos. Eu tenho pra mim que isso é pra ver se o povo é doido mesmo, pra cortar o aposento.

─ Eu não sei dona Amélia – Artur já não tentava mais disfarçar o seu desinteresse pela conversa – tenho que ir meu avô está esperando.

─ Tu vai levar a feira dele né? Ele faz feira de quinze em quinze dias, eu sou mais fazer logo a do mês pra ficar descansada só no bem bom – deu uma gargalhada estridente que chegou a contagiar o rapaz fechado que já ia embora – Diga que eu mandei um abraço, vai com deus.

Odiava ter que parar para conversar com as pessoas, coisa que sempre acontecia quando ia pra cidade por conta do prestígio do seu avô, mas odiava menos quando eram velhinhos. Gente velha sabe das coisas. Luís era bem visto por ter servido na ditadura militar – o que para Artur era motivo de desgosto – condecorado na cidade por ter ajudado a expulsar a ameaça comunista do país. A maioria sequer sabia o que era isso, mas haviam de concordar que deveria ser algo ruim.

Seguia para casa a pé, e embora fosse distante – ficava na parte baixa da cidade – era bom pra esfriar a cabeça. Tropeçou algumas vezes, derrubou uma das sacolas... Estava desleixado, e ficou ainda mais quando sentiu o celular vibrar em seu bolso, na mesma hora pôs as sacolas de lado e encheu-se de esperança com a mensagem de Rute.

"Cheguei bem, Portugal é lindo. Beijos."

Como aquelas palavras poderiam ser tão tranquilizantes e inquietantes ao mesmo tempo?Pensou por alguns segundos se deveria responder mas achou melhor só fazê-lo quando chegasse em casa. Queria responder imediatamente, mas sabia o quanto aquilo lhe causava dor e preferiria não chorar naquele momento. Uma de suas vizinhas, certa vez, passou a chorar desesperadamente por todos os lugares, até que finalmente descobriram um distúrbio mental e a internaram no manicômio. Ele certamente não arriscaria passar por isso.

Já próximo de sua casa, sentiu o celular vibrar novamente, e embora tivesse sido apenas uma impressão, a mensagem de Rute permanecia lá, como se esperasse sua resposta, inquietando seu coração com dúvidas e incertezas. Como pode uma paixão ter lhe consumido tanto em menos de dois anos de convivência? O jeito entusiasmado, a forma como se impunha, a coragem e determinação... Tudo em Rute parecia lhe completar, pareciam ser feitos um para o outro... E agora sequer poderia saber quando, ou se, a veria novamente.

Inesperadamente um vento frio tomou conta do ambiente. A névoa sombreou todo o caminho, como sempre acontecia às vésperas de uma grande tempestade. Artur pegou as sacolas, algumas haviam se sujado no barro da estrada, e acelerou seus passos em direção a casa. Parou a alguns passos da casa com um som agudo vindo de não sei aonde.

─ O que houve? - a voz rouca do avô deu-lhe um susto.

─ Não foi nada vô, mas tive a impressão de ouvir um miado. Deve ter sido algum gato andando por aí - o garoto achou melhor ignorar a situação – trouxe tudo o que o senhor pediu, mas a banana estava bem madura então tem que comer logo.

Já terminava o almoço, ao som dos velhos discos de Roberto Carlos que seu avô adorava, quando finalmente encorajou-se a responder Rute. Tentou antes, duas vezes, mas esperou para que ela "se redimisse" e lhe dissesse mais coisas, um eu te amo, talvez. Bobo, parecia não a conhecer... Deveria ser grato dela tê-lo respondido. Na maior parte do tempo ela era solta, livre. Poderiam dizer que ela era fria, desapegada, mas Artur sabia que era quente.

Anos antes, no dia em que gravaram seus nomes no ipê da praça antiga, prometeram jamais mentir um para o outro mesmo que fosse doloroso. Por isso, talvez, ele tivesse consciência de a dor que sentia naquele momento era necessária, por desde aquele dia saber que o sonho da garota era conhecer seu pai em Portugal. Assim era ela, fiel aos seus sonhos e capaz de tudo para realizá-los. Decidiu respondê-la sendo ele mesmo.

"Que bom que chegou bem. Quando tiver on me manda uma mensagem, tô com saudades de vc. Te amo muito."

Nas muitas conversas que tiveram, quase todas deitados embaixo da árvore, ela sempre falava sobre a vontade de reencontrar seu pai e de como as lembranças que tinha dele eram cheias de ternura e afeto. Veio morar na cidade, ainda pequena, com sua mãe para cuidar de uma tia que havia sido internada no manicômio local e somente agora pode realizar o sonho de viajar para a cidade de seu pai para conhecê-lo. Comprou a passagem num dia e no outro já se despediu e foi, inesperadamente... Ou talvez algo planejado que não quis revelar antes. Acreditar que ela havia falado a verdade era o certo a se fazer.

Você leu todos os capítulos publicados.

⏰ Última atualização: Apr 08, 2020 ⏰

Adicione esta história à sua Biblioteca e seja notificado quando novos capítulos chegarem!

UngidoOnde histórias criam vida. Descubra agora