Sudeste: Cartas aos Loucos

101 24 255
                                    

Barbacena,
Campo das Vertentes,
Minas Gerais, 2027

Helena olhava atentamente o papel em sua mão. Ainda era difícil acreditar que tinha achado aquilo. Aquelas folhas foram um presente para seu trabalho de TCC. Mas quem é Helena? Ela é nosso intermediária, entre a vida e a morte. E na cidade de Barbacena, tínhamos nossa conexão com quem já se passou. 

"Que trem é esse? Onde cê achou?" As palavras de Raiana tiravam Helena do transe.

"Consegui uma permissão pra procurar por vestígios que podiam ter sido escondidos pelos pacientes, e achei isso. Tava dentro de uma caixa de metal enterrada no jardim. Custaram a deixar que uma estudante de arqueologia escavasse o jardim do museu. O professor Carlos teve que solicitar ele mesmo, mas valeu muito a pena a espera." Helena se orgulhou de seu achado. 

"O que você pretende fazer com isso?"

"Pretendo dar voz a alguém, ou melhor, revelar uma voz. Só porque eles não se encontram mais aqui não quer dizer que eles sejam incapazes de deixar seu recado e precisem de nós para isso. Só precisam que alguém revele o que está oculto. Não é novidade revelar e dar ouvidos a o que diz um sobrevivente, e tão pouco aos que já se passaram, mas para essas pessoas é sim." 

As duas jovens manuseavam com muito cuidado e com suas luvas os frágeis papéis retirados de uma caixa metálica que Helena desenterrou dos jardins do museu da loucura de Barbacena. Dentro havia um saco plástico, e dentro do saco plástico haviam papéis, que pareciam folhas de agenda. Cinco no total, para revelar cinco vozes ao mundo. 

Cada papel tinha um relato diferente, mas todos escritos pela mesma letra, em um lápis de ponta bem grossa, o que não deixava a letra tão legível. Mas por sorte, Raiana tinha um curso de paleografia que foi muito útil. 

Com a transcrição completa, começaram a ler os textos dos papéis que acharam. 

Relato 1

Oi, eu não sei se você vai me ler, mas se um dia me acharem, eu sou inocente. Eu não fiz nada. Eu só tava vivendo a minha vidinha, e me botaram nesse diacho de casa de doido. Eu não sou doido. Por favor, se um dia alguém achar esse caderninho, fala pra minha esposa Margarete que eu amo ela. É tudo culpa daquele Fedaputa do Coronel Samaritano. Se fez de amigo e era um baita amigo da onça! Me meteu nessa fria. Foi ele que me chamou pro negócio. Eu não queria, mais nois tava tudo com fome lá em casa. Não tinha uma comida na geladeira.

O desgraçado me botou num esquema de roubar bois dos outros. Aí quando a polícia bateu na porta da casa dele falando que tinha boi dos outros no curral dele, o infeliz mandou os homem vim pra cima do pobre pião aqui! Quando eu disse que foi culpa do meu chefe, ele disso pro policial que eu devia era ser doido, e que eu alucinava dizendo que espírito falava pra eu roubar coisas. E eu vim parar aqui. Se um dia eu sair, eu vou meter uma bala na cabeça daquele Filho de Rapariga.

Relato 2

Oi, eu sou a Raquel. Eu vim aqui deixar claro que eu não devia estar aqui. Eu não sou louca, eu não me prostituia por mal. Não sou pecadora do diabo. Me botaram aqui por fazer programa. Mas é a unica escolha que eu tinha. Por favor, se alguém ler, saibam que eu não era uma puta que gostava de dar pros outros. Eu to chorando enquanto eu escrevo isso. Todos da família agora sabem e acham que sou um monstro, eu sou gente, eu tenho alma. Não me deixem como a imagem de uma puta, se eu morrer aqui, alguém tem que saber que eu era uma pessoa que amava e era amada. Por favor, eu não quero morrer.

Relato 3

Eu chamo Ana. Eu matei meu marido, ele me batia. Mereço a prisão? Talvez. Sei que tenho que pagar pelos meu atos, e morte ainda é morte. Só que eu sofri muito nas mãos dele. Eu fugi. Ele me achou e me bateu. Eu matei ele e fui dada como louca. Porque mulher que vai contra o marido já é anormal, imagina uma que mata ele. Mas eu não preciso de tratamento de choque. Eu não preciso de que um homem venha na minha cela compartilhada ler trechos de livros que justifiquem uma superioridade masculina. Eu queria me matar, pra ver se assim meu corpo é usado em universidade ou se é derretido em ácido.

Relato 4

Eu sou a Rita, vou ser breve. Eu amei sim uma mulher. Eu sempre vou amar mulheres. Me colocar numa cela com um pervertido sexual que me abusa não vai mudar quem eu sou. Então vão pro quinto dos infernos, seus médicos malucos.

Relato 5

Eu sou o Dirceu. Eu tenho 17 anos. Eu sou surdo. Meu pai me botou aqui. Na visão dos médicos, eu ouvi uma menina que eu gosto chamada Marília dizer que amava outro, e por isso eu furei meus tímpanos. E os psiquiatras acreditaram nessa historiazinha de amor inspirada em Marília de Dirceu. Meu pai furou eles. Um dia ele bebeu, chegou em casa, chutou o cachorro, e aí foi pro quarto. Eu acordei no meio da noite com a minha mãe gritando. Eu fui até lá, e o desgraçado tava forçando ela a colocar aquilo que ele chama de pinto na boca. Eu fui tentar parar ele. Ele era mais forte que eu. E pegou duas agulhas e enfiou nos meus ouvidos. Eu não sei o que ele tá fazendo com a minha mãe agora, mas sei que não é coisa boa. Eu só rezo todos os dias por ela. Queria que alguém soubesse porque fiquei surdo. O real motivo. Antes que eu morra aqui.

Helena não tinha palavras para as coisas que lia junto de Raiana, e se sentia na obrigação de que isso fosse revelado, de que essas vozes finalmente fossem ouvidas por alguém. 

"Quando é a sua defesa de Mestrado?" Raiana falou após limpar uma lágrima que corria por seu rosto. 

"Oi?"

"Você ouviu, isso não vai parar por aqui, se prepara pra dissertação, e se prepara que isso aqui não vai ficar com você pra sempre também. Vai ir parar em algum arquivo. Garanta que a voz do Dirceu e dos outros seja ouvida sem sofrerem nenhuma violência, sem serem bestializados, sem que pareçam pobres vítimas que não foram capazes de deixar seu recado, e sem desumanizar. Tem gente que vai se interessar no que você tem a dizer." Helena ouviu tudo com um sorriso no rosto. Tinha um propósito para além de um mero grau acadêmico a se ganhar. 


E Helena não sabia, mas atrás dela, um ser invisível estava sorrindo. Ele não ouvia, mas sabia do que Helena falava. E se sentia completo.

Hospital Colônia de Barbacena, 1964

Dirceu olhava pra suas mãos sujas de terra. Conseguiu enterrar a caixa, um dia alguém poderia revelar o que ele tem a dizer. Um dia alguém ao menos iria saber. Ele já estava há um ano em Barbacena. Há um ano longe de São João Del Rei, onde sua mãe estava. Lembrava de quando embarcou no trem pra Barbacena, e da dor da despedida ao ver sua mãe pela última vez.

Naquela tarde, Dirceu entrou em uma sala para um tratamento, e nunca mais foi visto. 

Rosa dos VentosOnde histórias criam vida. Descubra agora