Um comediante, água e um fantasma

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Cada ser humano nasce com um desejo. Ao nos relacionar com o mundo, criamos nossas opiniões e conceitos. Os conceitos crescem e invadem o espaço dos desejos, até que os consomem quase que por completo. Os desejos vivem em nós quase como sem tetos, com o decorrer da maturidade. Toda essa desigualdade interna estampa em nosso rosto uma profunda velhice espelhada por sua maneira de pensar. De conforto já não são mais úteis as palavras.

Com estes pensamentos, alguém que é dito por conseguir enfrentar a vida e conquistar os seus sonhos, admira os seus traços da velhice diante o espelho do banheiro. Este é Mateus, que ganha a vida distraindo as pessoas dos fatos que tanto as incomodam interior e exteriormente. Ele sabe o seu papel como comediante, e por isso sempre cobrou o devido valor e conquistou a sua vida expressando total fidelidade aos seus desejos interiores: a arte de fazer as pessoas rirem.

Não está com sono, apesar do cansaço. O seu único desejo nesta noite é ficar deitado em sua cama vendo as horas passarem e o dia se aproximar. As noites, para ele, não servem mais para o descanso. Elas o cansam, esgotando o seu psicológico. Questionando-o. Por que estampar a felicidade que não corresponde à realidade?

Com a ausência da luz, a noite estampa a verdadeira escuridão de sua forma. Ele vai até à cozinha ouvindo o som da chuva dançando com o vento. Enche um copo com água e vai em direção ao sofá. Ele não tem a intenção de se distrair com algum conteúdo de humor da televisão. Ainda mais porque é o seu próprio rosto que ele encontraria em um destes canais.

Olhando para a tela preta da televisão, começa a sentir o vento frio e úmido que passa por baixo da porta e o alcança. E com os mesmos movimentos cansados e sem vida que o levaram do quarto ao sofá, ele retorna para pegar sua coberta. Os seus joelhos mal dobravam ao caminhar, arrastando os pés sobre o chão frio.

Ao chegar em seu quarto, o desânimo é consumido pelo espanto, há alguém sob a coberta sentado à beirada de sua cama. 

- Quem é você? - Mateus diz

A figura se vira para revelar a sua forma abstrata. Levanta-se da cama e sai da coberta, indo em direção à Mateus.

- Você já me conhece faz muito tempo, mas não me surpreendo por ter me esquecido. 

Alguns estranhariam a confiança com que Mateus se permitiu a aproximação da forma, mas ele diria que a reconheceu. A vibração de vida era algo que não via há muito tempo, apesar de lhe parecer familiar. Deixou o copo de água sobre o chão e olhou para o espelho do quarto. 

Reconheceu nele apenas uma casca cobrindo uma massa cinzenta. O fantasma mais vivo do que o humano se aproximou e colocou a mão sobre sua face. Mateus, apesar do medo, não resistiu e permitiu ceder o seu interior.

3 Coisas, Um contoWhere stories live. Discover now