"A vida que poderia ter sido e que não foi" - Manuel Bandeira
Firme, formosa e funestamente jocosa. A cidade esgueirava-se. E os olhos seguiam-na. A bem da verdade, que visão estranha formava. Um emaranhado de casas amontadas uma por sobre as outras. Os muros de pedra, tão difíceis de ver, já não tinham serventia. A cidade explodira.
Dir-se-ia que tudo por água abaixo iria, hora ou outra. Cedo ou tarde, os edifícios se engoliriam e juntos pereceriam. Mentira pura. Era luta horrenda de feia. Não havia união, era apenas aperto. Aperto e sufoco. Era uma pilha de corpos. Não havia como por tudo abaixo. O mundo sucumbiria junto. E seria o fim. Era um grude que só. Era. E estava. E assim, foi.
Que beleza olhar as coisas em seu potencial. Não precisava de permissão pra fazer. Sabia olhar assim. Bastava erguer os olhos, deixa-los passear por aquele horizonte. Um formigueiro miserável. Da altura, às terras baixas junto ao mar, a cidade enchia-lhe a visão. Era isso. E estava. Indissolúveis de sua condição tão pequenina, os patinhos nadavam em rodeio, um atrás do outro. Se não fossem e estivessem, tudo poderiam. Pudessem... que bonito! Seria. Diziam-lhes que a água era fresca. Dela não havia para que sair. A imensidão do mar, adiante, era atraente. Mas perigosa. A lagoa, tão pequenina. Mas oferecia tudo que precisavam. A vastidão do oceano prometia liberdade, sem garantias de que conforto pudessem encontrar. Ou, os limites da lagoa. Mas a água dali era fresca, diziam-lhes. Que beleza, olhar as coisas em seu potencial.
Mas elas eram. E estavam.
Riria, se tão tenebroso não o fosse. Tinha a corda no pescoço.
Sem que pudesse contê-lo, um soluço angustiado e profundo escaparia-lhe garganta afora, amargando-lhe de vez o sufoco da forca. Só havia final.
Mas ouvia um riso. De fato, havia um riso. E vinha de lá de baixo. Muito abaixo. Entre os patinhos e o mar. Ecoava, lá de muito baixo. O abismo zombava de toda sua imagem final. Zombeteava-lhe, amargamente, de toda a sua impotência. Do abismo, entretanto, projetavam-se às alturas, a imensidão de torres escuras. E impedia-lhes aquele mar por se desbravar. E incriminavam-no, praguejando. E os patinhos nadavam, briguentos, em rodeio, um atrás do outro. Tudo era. E estava.
O cavalo guinchou.
Acima dele, manteve-se encolhido junto a cela.
Foi descendo.
O cheiro podre tomou o ar.
As casas começaram a se aproximar, deformadas e esguias, feito um exército rígido e escuro de cadáveres.
Do céu, uma luz tímida iluminava a manhã. Cinzenta.
As nuvens haviam amontoado-se no céu, mas ainda não derramaram água. Ouvira que a chuva era frequente em Tavancy. Não via como pudesse ser o contrário, tamanha a sujeira a ser lavada. Mas não importava. Chovesse o que chovesse, a água do céu jamais levaria daquela terra, tão sólida crosta. Em se molhando, o grude se inchava. E era só.
A neblina tênue adensaria-se com a chegada iminente do outono.
Eram tempos pra loucos.
Não havia encanto algum. Tolice. Bobagem. Sabia bem em que se metia.
Teria de atravessar o calvário para alcançar. Seguia adiante.
O cavalo trotava por sobre o lodo preto.
Em breve ele próprio também se contaminaria.
Por entre as vielas escuras e mal-cheirosas, a esgueirar.
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Bacanal Febril
General FictionVENCEDOR EM MELHOR DRAMA NO CONCURSO RLD; 3º lugar em Melhor Sinopse no RLD; 2º lugar em Melhor Sinopse no Concurso WIB. Ambientada na medieval e decadente cidade pequeno-burguesa de Tavancy, a trama acompanha as desventuras do recém chegado poeta G...