Muitas eram as diferenças entre os reinos independentes que marcavam as fronteiras de Drack'Unnar. Cada qual com sua coleção de crenças e peculiaridades que davam formas à sua cultura e criavam uma espécie de patriotismo rústico entre os nativos de cada nação e que vinha ganhando mais força nas últimas décadas. Mesmo o mais simplório camponês tinha consciência do lugar a que pertencia e conhecimentos gerais sobre seus governantes e leis que o regia.
No entanto, algo bastante comum entre todos os reinos eram as lendas. Não apenas sobre os heróis épicos cujos feitos mudaram o destino do mundo e sobre os quais a verdade havia sido praticamente soterrada sob séculos de distorções e hipérboles. Não somente as criaturas aterrorizantes do Abismo Sombrio, muitas vezes lembradas pelos mais velhos para tentar explicar fenômenos desconhecidos ou forçar crianças teimosas à obediência. Haviam também as lendas locais, pessoas comuns e desconhecidas da maioria, cuja simples existência era envolvida em um certo ar de mistério que estimulava a criação de boatos fomentados e propagados entre o próprio populacho.
Não era incomum, por exemplo, encontrar histórias sobre um certo velho louco da taverna agraciado com a capacidade de prever o futuro ou o pedinte embriagado que passa a maior parte do tempo jogado na sarjeta, mas que tivera um passado de nobreza opulenta cujas ostentações indiscriminadas provocaram uma grande tragédia - que variava dependendo de quem contava a história - mas que invariavelmente resultava em sua derrocada. Havia a herbanária conhecida por salvar tantas vidas com sua medicina sem cobrar quase nada, mas que poucos sabiam ser na verdade uma bruxa amante de demônios. Ninguém poderia dizer o que era ou não verdade e por isso tornavam-se lendas. E lendas eram inúmeras. Praticamente uma para cada um dos milhares de vilarejos que pontilhavam o vasto continente, muitos deles tão pequenos que sequer apareciam em mapas.
Em Bosque das Videiras a lenda era o Oleiro.
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O inverno ainda dava sinais de presença fria quando o primeiro vaso de barro foi encontrado por dois lavradores nos limites do bosque aos pés do antigo poço. Era belo e muito bem acabado. Muito melhor do que os vendidos pela Sra. Zenith, que todos consideravam uma sovina. No vaso havia uma assinatura, o que era um sinal de orgulho por parte do artesão. Os lavradores, porém, mal conseguiram decifrar a péssima caligrafia do bilhete onde estava escrito: "Peça mais. Pague com o que puder".
Quando contaram o caso na Cerveja Roxa, única taverna do vilarejo, todos acreditaram se tratar de uma grande pilhéria. Muito provavelmente um golpe idealizado por um vigarista criativo e por demais otimista da ingenuidade alheia. Mas semanas se passaram e como não poderia deixar de ser, a curiosidade levou o primeiro a arriscar.
Tratava-se de alguém a mando da própria Sra. Zenith, que parecia farta do burburinho sobre a qualidade da tal peça. No mesmo local do aparecimento misterioso foi deixado um bilhete encomendando uma ânfora de barro e três escamas como pagamento antecipado pelo serviço. E para a surpresa dos envolvidos, na noite seguinte lá estava o objeto, belo como poucos.
A Sra. Zenith fez o mesmo nos dias que se sucederam e, certo como a alvorada, as encomendas eram entregues exatamente conforme o pedido. Ela precisava admitir, os trabalhos do misterioso Oleiro eram mesmo melhores que os dela e o preço era muito menor. Os boatos se alastraram como fogo em palhoça e não demorou para que os aldeões começassem a deixar bilhetes com suas encomendas, com os respectivos pagamentos. Eram panelas, bacias, potes ou mesmo pequenas esculturas de animais. Pagavam com o que podiam e recebiam tudo exatamente conforme desejado.
A curiosidade aumentava e muitos tentavam ficar de tocaia na expectativa de surpreender o Oleiro, o que nunca acontecia. Quando era vigiado não aparecia. Parecia ser ele a vigiar o vilarejo e não o contrário. Havia quem jurasse ter visto de longe um homem muito alto e curvo, envolto por um manto escuro nos arredores do bosque, próximo de onde as encomendas eram deixadas, mas poucos deram ouvidos para esses boatos. A verdade era que ninguém sabia quem (ou o que era) o Oleiro do Bosque das Videiras.
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A Derradeira Caçada Livro II - Herança dos Reis
FantasiVinte anos depois do fim da Guerra do Exílio, Connor, Ivan e Cassius desejam se tornar cavaleiros. Sua missão é peregrinar pelo mundo e provar seu valor. No caminho, conhecem as mudanças e consequências causadas pela guerra, reencontram velhas amiza...